sábado, 16 de julho de 2011

Folha de S.Paulo - Economia: O preço de tudo e o valor de nada - 03/04/2011

Folha de S.Paulo - Economia: O preço de tudo e o valor de nada - 03/04/2011: "O preço de tudo e o valor de nada

Como refundar o mercado no pós-crise

RESUMO
A partir da crise mundial e das noções de preço e valor, dois autores especulam sobre alternativas ao modelo econômico vigente: Eduardo Porter defende a incorporação de fatores humanos (como os impulsos irracionais) na formação dos preços; Raj Patel preconiza um sistema que incorpore o bem-estar e a 'socialização dos mercados'.

OSCAR PILAGALLO

A IMAGEM DO MERCADO como eficiente entidade reguladora de preços saiu bastante chamuscada da crise econômica internacional deflagrada pelo estouro da bolha imobiliária nos EUA em 2008.
Num primeiro momento, identificaram-se, à esquerda, claros sinais de que o capitalismo fora atingido em um de seus fundamentos, enquanto, à direita, admitia-se maior regulamentação dos agentes econômicos como forma de evitar novas bolhas. Passados mais de dois anos do início da depressão mundial, as primeiras reflexões sobre a extensão de suas consequências apontam para um consenso: preços nem sempre guardam uma relação próxima com valores.
Essa é a conclusão a que chegam dois pensadores de diferentes perspectivas ideológicas: Eduardo Porter, adepto do pensamento liberal, autor de 'The Price of Everything' (o preço de todas as coisas, a ser publicado em português neste ano pela Objetiva) , e Raj Patel, um crítico do fundamentalismo do mercado, que escreveu 'O Valor de Nada'.
As divergências entre os dois não são pequenas, nem estão limitadas aos efeitos da crise. É exemplar da distância entre eles a abordagem sobre um assunto aparentemente tão pouco econômico quanto o transplante de rins. Porter, fiel à ideia do título de seu livro, de que tudo tem um preço, avaliza a proposta do economista Gary Becker de que deveria haver um mercado que viabilizasse a venda do órgão. Becker, que ganhou o Nobel de economia por outras contribuições, chega até a calcular o preço do rim (US$ 15.200 ou R$ 24,8 mil), baseado no tempo de recuperação e risco do doador. Para Patel, tal noção é simplesmente 'muito perturbadora'.
Apesar dos enfoques discrepantes, Porter e Patel caminham lado a lado numa parte do trajeto que levaria a um novo modelo econômico. Em 'The Price of Everything' [ed. William Heinemann, 304 págs., R$ 20], Porter, jornalista do 'New York Times' e que morou em São Paulo nos anos 90, quando editava a edição brasileira da revista 'América Economia', defende que o egoísmo sobre o qual se ergueu o capitalismo deve dar lugar a um modelo que projete um mundo 'onde a distribuição relativa de prosperidade seja frequentemente mais importante do que a satisfação individual'.
Porter vai mais longe ao dizer que um novo modelo deveria considerar os impulsos irracionais na formação de preços, pois, afinal, 'as pessoas desejam não o querem comprar, mas o que pensam querer', vítimas que são de manipulações do mercado, cuja oferta atende mais aos interesses da indústria do que do consumidor.
Um modelo econômico que levasse em conta esse fator humano transformaria a economia numa 'disciplina matematicamente menos elegante', diz Porter, mas refletiria melhor o mundo real. Ele afirma que os dois anos desde a eclosão da crise são um tempo insuficiente para que se ache um novo equilíbrio entre a ação governamental e a iniciativa privada - até porque os cidadãos desconfiam tanto dos governos quanto dos banqueiros. De qualquer maneira, fica a lição pós-crise: 'Nunca mais deveremos aceitar sem questionamento a noção de que os preços determinados por mercados desregulados são inevitavelmente corretos'.

FÉ NO MERCADO
Raj Patel não apenas critica os mercados, mas propõe uma alternativa. Economista britânico naturalizado americano, Patel é consultor da ONU e ativista de causas populares como o direito dos povos à alimentação. Em 'O Valor de Nada' [tradução de Vania Cury, Editora Zahar, 240 págs., R$ 49], ele atribui a crise de 2008 à exacerbação do espírito do capitalismo. 'A ideia de que os mercados devem saber mais é um artigo de fé de certo modo recente, e foi necessária uma grande dose de trabalho ideológico e político para incluí-la na sabedoria convencional dos governos.'
Patel registra que a crise recente despertou o debate visando à regulamentação dos mercados. Mas não deixa de perguntar: 'Em nome de que interesses essa regulamentação deverá funcionar?'. Sem responder diretamente, o escritor suspeita, com desapontamento, que o eixo de um novo modelo continuaria privilegiando o lucro das corporações e o egoísmo dos agentes econômicos. Para ele, isso seria um equívoco na medida em que estariam sendo ignoradas as pesquisas que mostram que o bem-estar da sociedade depende também da valorização de virtudes como 'compaixão, equidade, confiança, altruísmo e reciprocidade'. Patel não tem dúvida: 'Quanto maior for o nosso bem-estar psicológico, maior será nossa felicidade'.
O reino budista do Butão, o primeiro país a criar o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), é sempre um parâmetro para o debate sobre felicidade. Eduardo Porter acredita que a felicidade no reino tem pouco a ver com os itens intangíveis do índice. 'O Butão pode ser feliz', afirma, 'mas isso tem a ver mais com sua riqueza material'.
O autor compara: o PIB per capita do Butão, que em 1980 era 10% maior do que o da Índia, hoje é 75% maior. Para Patel, porém, a felicidade butanesa é tributária daquelas virtudes decorrentes da generosidade. Nesse sentido, a recente queda do índice até corroboraria a tese, uma vez que ocorreu depois de autorizada a televisão via satélite, que expôs a população local ao mundo inacessível de bens de consumo, gerando 'profundo ressentimento'.
Qual a alternativa defendida por Raj Patel? O economista não propõe um modelo fechado, mas indica suas inclinações ao elogiar programas como o orçamento participativo, introduzido na prefeitura de Porto Alegre no final dos anos 80 na gestão do PT e que hoje ultrapassou a identidade partidária. Essa política, admirada pelo Banco Mundial, é atualmente implementada em mais de 300 cidades no mundo inteiro, contabiliza o economista. 'Pense nisso como um comunitarismo moderno', ele sugere.
Outra referência são as comunidades zapatistas do México, que ele visitou em 2009. Os zapatistas, conhecidos pelas máscaras escuras que usam para esconder o rosto, declararam guerra ao governo mexicano em 1994.
De lá para cá, os rebeldes construíram hospitais e escolas em seus territórios. 'Sua maior vitória, no entanto, foi ter arquitetado aquilo que já se aclamou como o experimento mais bem-sucedido de democracia e justiça', escreve Patel.
A base da democracia zapatista é o povoado, que em geral tem até cem famílias, as quais escolhem responsáveis para representá-las nas várias instâncias do governo. Os escolhidos servem no quartel-general da Junta do Governo por uma semana em cada seis, por um período de três anos, e não serão mais escolhidos, o que garante a rotatividade permanente. Ou seja, 'os povos indígenas estão se engajando na democracia sem o seu sintoma mais infeccioso -as eleições'.

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No universo das corporações, Patel valoriza iniciativas como a do Creative Commons, que privilegia a propriedade comum em vez da propriedade privada. Elogia igualmente a Wikipédia, a enciclopédia disponível na internet. O economista vê no movimento pelo software livre e na Wikipédia 'um modo de socialização e comunhão que nos encoraja a compartilhar'.
Raj Patel diz não ser contra a propriedade. 'A propriedade pessoal é importante, e, de acordo com parâmetros razoáveis, ninguém deveria ser negado a isso.' Também afirma não ser contra o mercado. Eles representam uma boa maneira de 'descentralizar a tomada de decisões, e fica difícil imaginar uma democracia saudável na qual as pessoas possam ser livres sem mercados'. Para ele, o que precisa acabar é a crença 'de que os mercados são a única forma de avaliar o nosso mundo'.
Patel adverte que o que propõe não é um 'socialismo de mercado'. Prefere o termo 'mercados socializados'. O economista adverte: 'A concentração de recursos e poder nas mãos de poucas pessoas e entidades econômicas milita contra o sucesso da democracia'. Para ele, propriedades e mercados deveriam sempre estar subordinados 'às considerações democráticas de igualdade e sustentabilidade'.
Embora haja muito de utópico no pensamento de Raj Patel, suas ideias, como possibilidade de horizonte, não deixam de ter serventia para o debate sobre o preço do capitalismo e o valor da democracia.

Raj Patel pergunta: 'Em nome de que interesses a regulamentação dos mercados deverá funcionar?' Ele suspeita que continuaria privilegiando o lucro e o egoísmo

Dois anos após o início da depressão mundial, as primeiras reflexões sobre suas consequências sugerem um consenso: preços nem sempre guardam uma relação próxima com valores

Eduardo Porter diz que um novo modelo deveria considerar os impulsos irracionais na formação de preços, pois 'as pessoas desejam não o que querem comprar, mas o que pensam querer'

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