Ha 30 anos nascia o Movimento Anti-Utilitarista nas Ciências Sociais- MAUSS | Brasil Autogestionário: "Ha 30 anos nascia o Movimento Anti-utilitarista nas Ciências Sociais
Por Paulo Marques.
Foi no ano de 1981,durante um colóquio sobre o Dom no Centro Thomas-More, em Arbresle, próximo à Lyon,na França que Alain Caillé percebe a recorrência de um discurso dominante, de que apenas o cálculo do interesse,consciente e racional para uns, escondido nos recônditos do inconsciente para outros, que prevalecia em todas as disciplinas das ciências sociais.
Decide então criar uma associação sem fins lucrativos e dispor de um órgão de difusão das ideias contrárias a essa lógica dominante. Buscava estimular um pensamento “antiutilitarista”. Surgia assim o Movimento anti-Uitilitarista nas Ciências sociais-, cuja sigla MAUSS é uma homenagem a principal referência teórica do movimento, o antropólogo MArcel Mauss.
Marcel Mauss,foi o autor do clássico “Ensaio sobre a dádiva” (1925)que apresenta a tese segundo qual as sociedades arcaicas não se baseiam na troca mercantil – que elas simplesmente ignoram -, mas sobre qualquer coisa muito mais complexa, que ele chama de a tripla obrigação: dar, receber, retribuir. Como toda dádiva obriga, o dom se torna um poderoso operador social. O dom em questão, é preciso lembrar, não advém da caridade. Ele não é o efeito de um altruísmo oposto ao egoísmo econômico.
Como explica o própio Caillé, trata-se de um dom “agonístico”, “uma forma de guerra”, mas de uma guerra “de generosidade”. O mais importante, todavia, e que, segundo o reconhecimento dos membros do movimento resume melhor seu projeto, está na conclusão o pai da antropologia moderna: o homem não foi sempre um animal econômico. O Homo oeconomicus seria então uma invenção moderna.
Uma tese igualmente partilhada pelo economista e antropólogo de origem húngara Karl Polanyi (1886-1964), outra figura de referência do movimento. Contrariamente ao que pensa a maioria dos historiadores, sublinha, “o mercado é uma instituição recente”. Na maior parte das sociedades, o econômico está “encravado” no social, impedindo toda autonomização do Homo oeconomicus. E assim ele se mantém sob controle.
Antigo assistente de Claude Lefort, cofundador, junto com Cornelius Castoriadis, da revista Socialismo ou Barbárie, Alain Caillé é hoje o principal teórico e militante do chamado Anti-utilitarismo.
Mas o que é o anti-utilitarismo?
Como seu nome indica, o movimento anti-utilitarista é, desde o princípio, um movimento de oposição. O antiutilitarismo é primeiramente um antieconomismo. Ele recusa a generalização do Homo oeconomicus como modelo explicativo de toda ação humana. Ele contesta a ideia de que não haveriam nem sociedades nem grupos, mas apenas indivíduos animados por seus interesses egoístas.
E qual o espaço dessa teoria no campo anticalitalista? O que tem de diferença em relação às teorías revolucionárias do século XIX como o socialismo, comunismo, o anarquismo, que pautaram o movimento social e pautam até hoje?
O que Alain Caillé quer dizer quando defende uma “democracia asociacionista”, e o que seria o “convivialismo”?
Todas estas questões, certamente, não estarão isentas de críticas por parte dos mais ortodoxos, e como antes de tudo somos anti-ortodoxos, acreditamos que é importante conhecer essa contribuição teórica que vem adquirindo grande espaço, principalmente a partir de estudos sobre a prática da Outra Economia na América Latina.
Com este objetivo publicamos uma entrevista com Alain Caillé que de forma muito clara e objetiva, apresenta os pressupostos do anti-utilitarismo.
10 questões à Alain Caillé [Entrevista]
Publicado na Revista do MAUSS em 24 março 2011 por Valéry Rasplus*
Meu quarto convidado é Alain Caillé, professor de sociologia e economista da Universidade de Paris X, onde dirige a especialização Sociedade, Economia, Política e Trabalho (SEPT) do Mestrado em Ciências Sociais e Sociologia (escola doutoral “Economia, Organizações e Sociedade”, da qual é membro do diretório) e anima o GÉODE (Grupo de estudos e de observação da democracia), laboratório de sociologia política que se fundiu ao laboratório de filosofia política contemporânea de Paris X – Nanterre, para constituir o SOPHIAPOL (sociologia, filosofia e antropologia políticas), do qual é co-diretor, junto à Christian Lazzeri. É o fundador do movimento anti-utilitarista nas ciências sociais e dirige a Revue du MAUSS.
Valéry Rasplus: Desde 1981 seu nome está associado à revista do Mauss (inicialmente, Le bulletin do MAUSS [1981-1988], em seguida La Revue du MAUSS trimestrielle [1988-1993] e finalmente La Revue du MAUSS semestrielle). Como surgiu a ideia de criar esta revista que hoje está plenamente inserida no cenário intelectual francês e internacional?
Alain Caillé: O ponto de partida foi o seguinte: em 1981 eu vi o anúncio de um colóquio sobre a dádiva em L’Arbresle, que reuniria filósofos, economistas, psicanalistas etc. Fascinado há anos pelo Ensaio sobre a dádiva de Mauss (e por Karl Polanyi), principalmente porque ele parecia refutar tudo o que me haviam ensinado nas ciências econômicas (à época eu era doutor em ciências econômicas, mas igualmente assistente de sociologia na Universidade de Caen), resolvi comparecer ao colóquio. Alguns de nós se surpreenderam ao perceber que nenhum dos palestrantes parecia ter lido Mauss. E mais ainda, com a convergência entre economistas e psicanalistas sobre a ideia de que o dom não existe, que não passa de ilusão e ideologia, uma vez que não se tem nada sem nada. Esta forma de pensar era perfeitamente congruente com a evolução recente da sociologia, sobre a qual alertei em um artigo de Sociologia do trabalho: “A sociologia do interesse é interessante?” (1981), no qual apontei a surpreendente convergência, ao menos em um ponto essencial, entre autores aparentemente diametralmente opostos: Raymond Boudon e Michel Crozier, do lado liberal; Pierre Bourdieu, do lado neomarxista. Para uns, como para outros, a integralidade da ação social se explicava por cálculos de interesse, conscientes para os dois primeiros, inconscientes para o terceiro. Todos os três, para além de suas diferenças gritantes, comungavam assim do que eu chamei de axiomática do interesse, tão bem representada em L’Arbresle. Para esta sociologia então dominante, o homo sociologicus era, no fundo, apenas uma variante, um avatar ou um disfarce do homo oeconomicus. De acordo com o que alguns de nós constataram em L’Arbresle decidimos, Gerald Berthoud, professor de antropologia da Universidade de Lausanne, e eu, criar uma espécie de boletim informativo ou uma coleção periódica de working papers capaz de favorecer os intercâmbios entre economistas, antropólogos, sociólogos, filósofos etc. que partilhavam deste espanto e desta inquietude face à evolução do pensamento nas ciências sociais e na filosofia política. Realmente, em toda parte – nós o descobriríamos pouco a pouco –, passou-se de uma perspectiva abertamente holística, que havia dominado durante os Trinta Gloriosos[1], a um individualismo tanto ontológico quanto metodológico. E esta visão hiper-individualista caminhava junto ao triunfo generalizado da axiomática do interesse. As mudanças se viam tanto em filosofia política, seguindo o turbilhão de A teoria da justiça de John Rawls (1971) – questionando-se como “homens econômicos ordinários”, mutuamente indiferentes, podem definir as normas de justiça – quanto em biologia, onde floresciam a teoria do gene egoísta ou a sociobiologia. Em economia, os “novos economistas” trilhavam seus avanços e a nova microeconomia, baseada na teoria dos jogos, oferecia ao modelo econômico generalizado sua lingua franca. Em resumo: durante dois séculos os economistas haviam afirmado que o modelo do homo oeconomicus, o indivíduo calculador racional, apreensivo em relação aos seus próprios interesses, era notoriamente irrealista – apesar de permitir ao menos explicar o que acontece no mercado de bens e serviços –, relegando o estudo das outras facetas do humano e do social a outras disciplinas. A partir dos anos 70, eles começaram a proclamar que o modelo econômico permite também explicar a totalidade da ação social – o amor, o crime, a fé, a relação do saber etc. E, em suma, sociólogos, biólogos ou filósofos lhes davam razão. Nós iniciávamos então uma revolução no campo do pensamento. Ou melhor, uma contra-revolução intelectual que andava ao lado de uma revolução na divisão do trabalho intelectual e científico. Foi apenas após esse movimento que compreendemos que esta evolução intelectual contra-revolucionária havia antecipado e legitimado o triunfo da globalização neoliberal. Se os homens não são mais que homo oeconomicus, então, de fato, todas as esferas da sociedade deveriam ser organizadas segundo as regras do mercado e submetidas à lei do rendimento financeiro máximo. E todo o resto é literatura. Todo o trabalho do MAUSS durante estes trinta anos consistiu em buscar nas ciências sociais e na filosofia moral e política por fundamentos que escapassem à axiomática do interesse, i.e., não utilitaristas. Ou, mais precisamente, anti-utilitaristas. Nós acreditamos tê-los encontrado na descoberta de Mauss: todas as sociedades primeiras, arcaicas e tradicionais, mutatis mutandis, se basearam naquilo que Mauss chamava a tríplice obrigação de dar, receber e retornar. Nesse processo ele identificava igualmente, e corretamente, creio eu, “a rocha da moral eterna”. Todavia, é necessário precisar este ponto, uma vez que somos constantemente obrigamos a aí retornar. Se opor à axiomática do interesse, ser anti-utilitarista, não significa desdenhar das considerações da utilidade, pôr em dúvida a força dos interesses e, menos ainda, postular que os humanos são “altruístas” (basta ler Ensaio sobre a dádiva para se convencer do contrário). Porém, o interesse, que prefiro chamar de o interesse por si, é apenas um dos quatro motores principais da ação – e não o único motivo –, ao lado da obrigação (social ou biológica), do interesse pelos demais (da empatia) e da liberdade-criatividade. O interesse por si não explica tudo e não deve dominar tudo. É preciso saber a parte que lhe cabe, mas também as partes que cabem a outras considerações, ou até se opor completamente, em último caso. Daí a dimensão “anti” do anti-utilitarismo.
Valéry Rasplus: O que me tocou – guardadas as devidas proporções – quando da leitura dos números e dos autores, foi o interesse que esta revista poderia suscitar tanto em alguém íntimo das teorias situacionistas como Jean-Pierre Voyer, quanto em um “neodireitista” como Alain de Benoist – ambos já escreveram na Revista do MAUSS. Como você explica esta grande diferença de atração?
Alain Caillé: É que a história do anti-utilitarismo é tão antiga quanto a do utilitarismo (cf., por exemplo, Le bonheur et l’utile. Histoire raisonné de la philosophie morale et politique, sob a direção de A. Caillé, Ch. Lazzeri e M. Senellart, Champs/Flammarion, 2 tomos). Há, portanto, tantas variedades dentro do anti-utilitarismo quanto dentro do utilitarismo (cf., por exemplo, a diferença entre um R. Boudon e um P. Bourdieu). O MAUSS pôde então servir de atrator, mais ou menos estranho, a autores de fronteiras bem diferentes. Hoje nós ecoamos, entre outros e, por exemplo, tanto do lado católico – daquilo que resta –, quanto do que resta do comunismo! Mais geralmente, e mais profundamente, o que nós fazemos e ensaiamos pensar se dirige à todos que não se resignam ao não-sentido, à insignificância, como dizia Castoriadis, e que recusam a redução da vida em sociedade a um conjunto de procedimentos formais: o mercado financeiro, o Direito, as regras administrativas, a avaliação quantificada do mérito ou da utilidade social etc. Porém, a tradição de pensamento político na qual nos inserimos, de nossa parte, é aquela de um socialismo associacionista e liberal, ou democrático, aquele que se estende de Leroux à Jaurès (de quem Mauss era um dos companheiros mais próximos) e que nós tentamos atualizar.
Valéry Rasplus: Você explica que a concepção maussiana da dádiva é propriamente política. Como você concebe uma boa política?
Alain Caillé: A concepção maussiana da dádiva é de fato política. Dar é o ato político por excelência, uma vez que permite transformar os inimigos em aliados, fazendo com que haja algo ao invés de nada, vida ao invés de morte, ação ou obra ao invés de vazio. Mas, reciprocamente, o político é propriamente “donatista”. O político pode ser considerado como a integral das decisões pelas quais os membros de uma comunidade política aceitam dar e se dar uns aos outros, ao invés de se afrontar; se confiar ao invés de se desafiar. A política é apenas a interpretação, mais ou menos correta, fiel e bem-sucedida do político. Uma comunidade política pode ser concebida como o conjunto daqueles que recebem e a quem se dá. E uma comunidade democrática, como aquela na qual as dádivas entre cidadãos são feitas primeiramente enquanto dons ao espírito da democracia (e não aos ancestrais, a Deus ou a qualquer entidade transcendente). A boa política é, antes de tudo, aquela que favorece o desenvolvimento da democracia desejada primeiramente por ela mesma – e não por razões instrumentais –, enquanto permite à maioria se ver reconhecida como doadora ou como tendo doado qualquer coisa. O que supõe que ela esteja capacitada a fazê-lo e que suas “capacidades” sejam então maximizadas. Concretamente, a boa política é aquela que contribui para instilar e instituir a autonomia política da sociedade civil associacionista, que não é naturalmente dada e não é auto-explicativa. A filosofia republicana francesa, solidária, tomava o indivíduo não como um ponto de partida – diferentemente do liberalismo econômico, o liberismo –, mas como um objetivo, e aspirava a educá-lo de forma que ele conquistasse sua autonomia face ao Estado instituidor. Essa palavra de ordem é sempre atual, mas deve ser completada pela instituição da autonomia do mundo das associações. Se vamos entrar em mais detalhes, então me sinto tentado a retomar um fragmento do “Manifesto por uma economia política institucionalista” (publicado em La Revue Du MAUSS semestrielle nº 30, 2007), na qual transparecia um grande acordo entre os animadores de diversas escolas econômicas heterodoxas sobre os seguintes pontos (que aqui cito):
“Não pode haver eficácia econômica durável sem que seja edificada uma comunidade política e ética durável, forte e viva. E não pode haver comunidade política durável e viva que não partilhe de certos valores centrais e da mesma noção de o que é justo. Se não for assim, ela não é também uma comunidade moral. Nenhuma comunidade política moderna pode ser edificada sem se referir a um ideal de democracia. A característica de um regime e de uma sociedade democrática é que eles se preocupam de forma efetiva em dar poder (empowerment) ao maior número de pessoas possível e que o provam ajudando-lhes a desenvolver suas capacidades. Nenhuma comunidade política pode ser edificada e perdurar se não partilhar de certos valores centrais, e não pode ser viva se a maioria de seus membros não estiver persuadida – através de qualquer forma de common knowledge e de convicção partilhada – que o maior número dentre eles (e especialmente os líderes políticos e culturais) os respeita de fato. É a partilha mais ou menos maciça dos valores comuns que torna mais ou menos forte o sentimento de que a justiça reina, este sentimento que é o cimento primeiro da legitimidade política. Se a existência, a durabilidade e a sustentabilidade da comunidade política não são consideradas evidentes, mas, ao contrário, como alguma coisa que deve ser produzida e reproduzida, então parece imediatamente necessário estender a Teoria da justiça de John Rawls. Porque não basta dizer que as desigualdades só são justas à medida que contribuem para a melhoria de vida dos mais mal colocados (mesmo que isto seja importante). Convém acrescentar que as desigualdades apenas são suportadas quanto não são excessivas ao ponto de explodirem e despedaçarem a comunidade moral e política. Se a democracia não é vista apenas como um sistema político e constitucional; se, de forma geral, a pensamos em relação à dinâmica do empoderamento (empowerment) das pessoas, então não basta imaginar um sistema de divisão de poderes e de contra-poderes dentro de um sistema político (ainda que seja absolutamente necessário), entre o executivo, o legislativo e o judiciário (ao que seria necessário acrescentar o quarto poder, o da mídia). É igualmente necessário instaurar um sistema de equilíbrio dos poderes entre o Estado, o Mercado e a Sociedade, assim como, do estrito ponto de vista econômico, entre a troca mercantil, a redistribuição estatal e a reciprocidade social.”
Valéry Rasplus: Você se encontra próximo a atores políticos ou partidos políticos com visões semelhantes e possíveis soluções evocadas pelo MAUSS?
Alain Caillé: Infelizmente, não. Ou quase. O MAUSS se coloca à esquerda, ou no turbilhão ou na tradição da esquerda. Mas temos muitos problemas em encontrar atores políticos que exprimam o que nós tentamos pensar. Dito isto, não somos os únicos; este é o caso de um grande número de franceses. Ou ainda, digamos que existe hoje uma grande distância entre o político e a política. Mais precisamente, me parece que existe um enorme espaço não ocupado, não pensado, não formulado, não representado à esquerda do PS e à direita da esquerda de esquerda onde me parece que potencialmente nos situamos – estando entendido que a representação bi-dimensional da política, sobre o único eixo direita/esquerda é infinitamente muito simples. Ao eixo da igualdade é preciso acrescentar aquele da liberdade e, diagonalmente, aquele do espaço e do tempo da solidariedade[2]. Ora, não podemos excluir a possibilidade de que este espaço ainda tão virgem não esteja em pouco tempo bastante povoado. Por exemplo: nós defendemos há muito tempo (em harmonia com a concepção da democracia exposta neste momento) a idéia de que é preciso instaurar conjuntamente um rendimento mínimo incondicional e um rendimento máximo (ainda que elevado). A primeira proposta passa com dificuldade; a segunda, em hipótese alguma. Apresentando esta idéia há alguns anos ao PS ou à ATTAC, eu a vi ser escanteada nos dois casos. Depois de alguns meses, ela se tornou uma proposição cada vez mais partilhada.
Valéry Rasplus: Muitas pessoas públicas (políticos, economistas etc.) evocam a moralização mais ou menos crítica da economia mercadológica capitalista. A moral e a economia podem realmente entrar em acordo?
Alain Caillé: Desde Mandeville e Adam Smith (apesar de suas críticas à Mandeville) a legitimidade da economia de mercado se destina a residir em seu amoralismo, i.e., no fato de que ela pode e deve funcionar sem que os agentes econômicos se preocupem com a sorte de seus congêneres ou concidadãos. Mas este amoralismo se faz passar por um moralismo superior. Se todo o mundo se comporta assim, de forma amoral, então deve resultar – nos ensina a ciência econômica padrão – a maior prosperidade possível e, logo, a maior felicidade da maioria. O que há de mais moral e mais altruísta, em suma, do que o egoísmo generalizado? Ora, nós sabemos bem, nós vemos bastante bem que não é assim que isso funciona. Podemos reintroduzir na economia a moral que daí foi expulsa? Esta questão levanta duas respostas principais: a primeira, que faz apelo aos bons sentimentos e à filantropia e, hoje, ao empreendedorismo social. A segunda, que confia apenas nas regulações políticas do mercado. Pessoalmente, aceito as duas, acrescentando, como muitos outros, uma terceira solução: a economia social e solidária, esta vertente econômica da sociedade civil associacionista elevada ao seu mais alto grau.
Valéry Rasplus: Existe uma relação entre o anti-utilitarismo e o decrescimento?
Alain Caillé: Sim, muitas e complexas relações. Um dos defensores mais conhecidos do decrescimento é meu amigo Serge Latouche, membro do MAUSS desde o princípio, e que apresentamos freqüentemente no movimento, de forma amical e humorística, como o anti-papa do MAUSS. Recentemente ele fez a honra de me nomear, reconvencionalmente, o anti-papa do decrescimento. Para ele, o anti-utilitarismo leva necessariamente ao decrescimento. Esse não é meu sentimento. Eu não acredito de fato nesse slogan. E acredito menos ainda que se trate, de fato, de um verdadeiro slogan, cujo conteúdo concreto é dos mais obscuros. Ou ainda, naquilo que os próprios decrescentes chamam de um “mot-obus”, uma palavra de ordem, cujo mérito principal é provocar e incitar a discussão, mas donde não é preciso realmente pesquisar o conteúdo. S. Latouche, aliás, se apresenta como “a-crescente”, agnóstico da questão do crescimento, mais que decrescente. Apesar desta evolução, eu tenho contra a corrente do decrescimento duas objeções principais: 1. Só se pode propor aos humanos que renunciem a crescer economicamente se lhes sugerirmos outras vias de expansão de sua capacidade de viver e de agir. Quais? 2. O decrescimento não sabe o que fazer com a base do ideal democrático moderno. A idéia de auto-organização em pequenas entidades auto-suficientes é totalmente ilusória. Dito isto, ao contrário, dois pontos me parecem extremamente evidentes e seguem na mesma direção do que buscam os decrescentes. 1. O consenso democrático não poderá mais se apoiar, nos países ricos, em fortes taxas de crescimento. 2. E eles não poderão durar muito tempo nos países emergentes sem devastar definitivamente a Natureza. É preciso então buscar por fundamentos pós-utilitaristas – pós-crescentistas – à democracia. Uma outra maneira de viver juntos. Nós nos encontramos então, S. Latouche, Patrick Viveret (defensor dos novos indicadores de riqueza e da simplicidade voluntária) e eu, para defender em um livro recente (“De la convivialité. Dialogues sur la société conviviale à venir”. La Découverte, 2011) a idéia de que após o liberalismo, o socialismo ou o comunismo era chegado o tempo do “convivialismo”.
Valéry Rasplus: Retornemos a uma problemática talvez mais antropológica. Os homens e as sociedades podem dispensar os ritos (de iniciação, de passagem, de agregação, de instituição etc.)?
Alain Caillé: Eu, digo, nós, infelizmente não desenvolvemos ainda uma reflexão sobre este ponto essencial. Me parece que os rituais devem ser considerados como formas de encenação e visibilidade da tripla obrigação de dar, receber e retornar que insistem sobre a dimensão da obrigação e sua necessária repetitividade. Se tal é o caso, então a sobrevivência do espírito e da efetividade da dádiva passam de fato pelos ritos, que não saberíamos suprimir sem causar danos. Resta refletir sobre o que poderiam e deveriam ser rituais adaptados ao espírito da democracia, que não se afundem nem em um ritualismo artificial e antiquado, nem no ritualismo do anti-ritualismo e da desritualização obrigatória.
Valéry Rasplus: Eu evoquei há alguns meses a tentativa de David Graeber de traçar um paralelo entre antropologia e anarquismo. Você pensa em publicar um número sobre “anarquia e anti-utilitarismo”?
Alain Caillé: Eu não conhecia esse livro de D. Graeber, de quem já publicamos vários artigos e que considero como um companheiro de estrada precioso para o MAUSS. Seu “Towards an Anthropological Theory of Value”, que tenta pensar ao mesmo tempo o valor no sentido econômico, no sentido lingüístico e no sentido antropológico, é absolutamente admirável. Descobri por acaso, há uns dez anos, que ele tinha publicado em uma revista online americana, In There Times, um artigo intitulado “The New Maussketeers”, “Os novos Maussqueteiros”, que explicava que após o desaparecimento dos grandes nomes da French Theory a única coisa interessante que subsistia na França era… o MAUSS (este artigo se encontra, em francês e em inglês, no site www.revuedumauss.com). Evidentemente, era bastante agradável de ler. E, além disso, Graeber conhecia incrivelmente bem o início, a concepção, portanto algo confidencial, do MAUSS (descobri mais tarde que ele tinha sido assistente de Marshall Sahlins, a quem tínhamos enviado todos os nossos primeiros manuscritos). Menos anedoticamente: Junto a MAUSS, claro, e Karl Polanyi, Pierre Clastres é sem dúvida um dos principais inspiradores do MAUSS. Me parece que seu trabalho foi particularmente bem desenvolvido por Catherine Alès, autora de L’ire et le désir (Karthala), de quem podemos ler um artigo neste mesmo número. Nesse artigo, Graeber mostra como toda sociedade combina diversos modos de distribuição de bens e, logo, diferentes tipos de poder: reciprocitário, comunista, autoritário. Linda demonstração, mas que me parece limitar o alcance do ideal anarquista uma vez que indica que nos seria necessário aprender a combinar diversas lógicas. Mas por que não, realmente, um número sobre antropologia e anarquismo que permitisse medir o que nos resta de Clastres e aquilo que é preciso atualizar?
Valéry Rasplus: Você publicou em 2009 um número especial sobre a universidade em crise, mas o que acontece com a pesquisa?
Alain Caillé: Eu acredito que ela também está em crise. E notadamente no domínio que nos concerne, das ciências humanas e sociais. A hiper-especialização leva, nesse domínio, a um insignificante crescimento (no sentido de Castoriadis) e esta hiper-especialização e esta insignificância são ainda mais acentuadas pela lógica devastadora da avaliação bibliométrica quantitativa do valor das pesquisas. Lógica fortemente contraproducente.
Valéry Rasplus: Com mais de trinta anos de reflexão sobre a dádiva e a contra-dádiva, o que podemos retirar de “útil”, hoje, desta prática de reciprocidade para nossa sociedade?
Alain Caillé: Voltando à questão precedente, o principal problema que se abate sobre nossas sociedades não é apenas a privatização generalizada, i.e., a submissão de todas as esferas de atividade a uma norma mercadológica e financeira hegemônica, mas, no turbilhão desta omnimercantilização e omnifinanceirização, a subordinação de todos os nossos atos a uma lógica da avaliação quantificada. Ora, esta lógica leva sistematicamente à concessão de um privilégio absoluto àquilo que os economistas chamam de as motivações extrínsecas, sobre as motivações intrínsecas. Motivações extrínsecas, aquelas que são indiferentes às especificidades da ação particular: a busca de uma remuneração, do poder ou do prestígio. Motivações intrínsecas, aquelas que dependem da especificidade do domínio da atividade: tudo aquilo que se faz pelo senso de dever, por amizade ou compaixão, por prazer pela ação em questão (fazer pesquisa, escrever, brincar etc.), ou seja, pelo espírito da dádiva. Se esta evolução chegasse ao fim, então nada mais teria sentido. Tudo aquilo que dá valor à vida, i.e., as coisas sem preço, seria reabsorvido e dissolvido em utilidade e instrumentalidade. Que podemos reter dessas considerações para nossas sociedades? O sentido de utilidade do inútil, sem dúvida. Mais especificamente: nossa democracia terá se baseado em fundamentos utilitaristas – os indivíduos se agrupando em sociedade apenas em vista de sua própria vantagem – e sobre a perspectiva de um crescimento econômico infinito. Esta perspectiva não é mais crível. É preciso então imaginar à democracia fundamentos anti ou supra-utilitaristas, i.e., que dão toda sua carga e todo seu valor às motivações intrínsecas da ação. É nesse sentido que nós advogamos, Marc Humbert, Serge Latouche, Patrick Viveret e eu, pelo futuro de um convivialismo, de uma arte de viver juntos, “se afrontando sem se massacrar”, como dizia Mauss, que se apresentaria como o digno sucessor do liberalismo, do comunismo e do socialismo (e do anarquismo).
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CAILLÉ, Alain. 10 questões para Alain Caillé : entrevista concedida à Valéry Rasplus. Tradução de Maíra Albuquerque. Nouvel Obs Blogs. Publicada em 01 de março de 2011. Disponível em : .
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* Tradução de Maíra Albuquerque
[1] NT: No original, Les Trente Glorieuses. Termo cunhado por Jean Fourastié para designar o período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1975, na França. Este período foi marcado por um crescimento rápido da população combinado com prosperidade econômica, alta produtividade, alto consumo e pela criação de um sistema de benefícios sociais altamente desenvolvido.
[2] Sobre o eixo da liberdade, nós buscamos, acredito, o bom equilíbrio entre liberdade individual e liberdade coletiva. Sobre o da solidariedade, o com equilíbrio entre a solidariedade entre os vivos, os mortos e as gerações futuras, assim como com a natureza e as culturas, compreendidas em sua diversidade.
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