20/03/2013
Mídia, ditadura e regulação: quem é quem
Trinta e seis anos após ter sido atribuída a um ataque cardíaco, a morte do ex-presidente João Goulart, ocorrida no exílio, em 6 de dezembro de 1976, volta ao noticiário e, mais uma vez, associada à palavra assassinato.
Antigas, as suspeitas devem ser esclarecidas de uma vez por todas com a realização da autópsia, que o regime militar que o derrubou nunca permitiu.
A ditadura só autorizou o sepultamento do ex-presidente, em São Borja, em um túmulo a 40 metros do de Getúlio Vargas, com féretro blindado.
Mesmo assim, na última hora, o então ministro do Exército, Sylvio Frota, da extrema direita militar, tentou anular a autorização expedida pela cúpula do governo Geisel.
Era tarde. Morto, Jango retornava do exílio.
O caixão lacrado, conduzido em carro a alta velocidade, cruzou a fronteira de Uruguaiana a 120 km por hora, vindo de Mercedes, na Argentina, onde ficava a estância dos Goulart.
Ladeava-o um aparato militar com ordens expressas de não permitir manifestações populares.
Inútil.
Quando chegou a São Borja, a população em peso estava nas ruas e cercou o cortejo; o caixão foi conduzido à catedral e daí cruzou a cidade em marcha solene até o cemitério.
'Jango, Jango, Jango!' Gritos guardados no fundo do peito desafiaram a tensão de um enterro vigiado por tropas, e o aviltamento da figura do ex-presidente, alimentado pela mídia antes, durante e depois de 1964.
Independente da autópsia que venha a ser feita, a verdade é que Jango já havia sido assassinado uma primeira vez 12 anos e oito meses antes dessa cena.
A autópsia de sua morte política não foi devidamente informada à população.
Os que derrubaram seu governo escreveram o laudo da história com a caneta dos vencedores.
Continuam a escrever, graças ao monopólio das comunicações, hoje mais forte do que aquele que detinham há 49 anos, quando deram o golpe.
Confiantes nesse poder de convencimento, invertem os termos da equação. Hoje, são eles, os golpistas de ontem, a denunciar os 'grilhões dos regimes autoritários', embutidos nos projetos de regulação da mídia, que o governo Dilma decidiu engavetar, na ingênua e temerária suposição de uma indulgência eleitoral que não terá.
Quase meio século após o golpe de 64 e dez anos de experiência à frente do Estado deveriam ter sido suficientes para os governantes do PT aprenderem que a 'síndrome de Estocolmo' que rege a sua relação com a mídia, antes de ser uma forma de astúcia política, é uma doença letal para a democracia.
Seu recuo, ademais, sanciona o jogral de vozes empregadas no lustro acadêmico do assalto à memória e ao futuro das liberdades e direitos que se alega defender.
Se em 1964 o golpismo dispunha dos intelectuais americanófilos do IBAD para legitimar a sua arenga, em sua nova roupagem requisita talentos delivery de extração ardilosa.
À promissora vaga de 'intelectual de estimação dos salões conservadores', concorrem currículos, para citar um caso, cujo atestado de excelência inclui o desfrutável título de ex- petista e esquerda arrependida.
A história, ressalve-se, não é feita em preto e branco.
O cardeal Bergoglio que o diga. Diretores de jornais que apoiaram o golpe, em diferentes momentos estenderam a mão a perseguidos pelo regime militar.
Importa, todavia, avaliar o papel das instituições.
A mídia, enquanto instituição, foi - é – parte interessada no assalto ao poder que interrompeu um governo democrático, suspendeu as liberdades e garantias individuais, prendeu, matou, torturou e censurou a própria liberdade de expressão.
Foi dela a iniciativa de convocar o medo e a mentira e alimentar o linchamento de reputações.
O conjunto foi decisivo para levar uma parte da classe média a apoiar a ação golpista.
E mesmo assim, apenas uma parte.
O acervo do Ibope, catalogado pelo Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, reúne pesquisas de opinião pública feitas às vésperas do golpe.
Os dados, cuidadosamente ocultados então, assumem seu real significado cotejados com a atuação do parato midiático, ontem e hoje.
As enquetes levadas às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia já era tangida ao matadouro pelos que bradavam em sua defesa, mostram que:
a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como ótimo (15%), bom (30%) e regular (24%). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo, fazendo eco dos jornais.
b) 49,8% cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à reeleição, em 1965 (seu mandato expirava em janeiro de 1966); 41,8% rejeitavam essa opção.
c) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13 de março.
Em um comício que reuniu 150 mil pessoas na Central do Brasil (o país tinha 72 milhões de habitantes) Jango assinou, então, decretos que expropriavam as terras nas margens das rodovias para fins de reforma agrária, bem como nacionalizavam refinarias de petróleo.
As pesquisas sigilosas do Ibope formam apenas o arremate estatístico de um jornalismo que ocultou elementos da equação política, convocou, exortou, manipulou, incentivou e apoiou a derrubada violenta do Presidente da República, em 31 de março de 1964.
Não se deduza disso que a democracia brasileira espelhava a placidez de um lago suíço.
Num certo sentido, vivia-se, como agora, o esgotamento de um ciclo e o difícil parto do seguinte.
As reformas de base – a agrária, a urbana, a fiscal, a educacional — visavam destravar potencialidades e recursos de um sistema econômico exaurido.
O impulso industrializante de Vargas, dos anos 30 a meados dos anos 50, e o do consumo , fomentado por Juscelino, mostravam claros sinais de esgotamento.
Trincas marmorizavam todo tecido social e produtivo.
À vulnerabilidade externa decorrente da frágil capacidade exportadora, sobrepunha-se uma seca de crédito junto ao sistema financeiro internacional.
O déficit público era ascendente; idem, a espiral preços /salários; o PIB anêmico e a inflação de 25% no trimestre pré-golpe completavam a encruzilhada de uma sociedade em transe.
O conjunto tinha como arremate a guerra fria, exacerbada na América Latina pela vitória da revolução cubana, que desde 1959 irradiava uma agenda alternativa de desenvolvimento.
O efeito na vida cotidiana era enervante. Como o seria no Chile, nove anos depois; como o é hoje, em certa medida, na Venezuela do ex-presidente Chávez.
O mercado negro de produtos essenciais testava a paciência dos consumidores. Óleo, trigo, açúcar, carne faltavam ciclicamente nos grandes centros urbanos.
Fruto, em parte, de uma escassez provocada pela sabotagem empresarial.
As reformas progressistas de Jango estavam longe de caracterizar o alvorecer comunista alardeado pelos jornais. Tratava-se de superar entraves e privilégios de uma máquina capitalista entrevada em suas próprias contradições.
Jango pretendia associar a isso um salto de cidadania e justiça social, ampliando o acesso à educação e aos direitos no campo.
O que importa reter, como traço de atualidade inescapável, é o comportamento extremado do aparato midiático diante desse projeto.
Convocada a democracia a discutir o passo seguinte da história brasileira, os centuriões da legalidade optaram pelo golpe.
Deram ao escrutínio popular um atestado de incapacidade para formar os grandes consenso, indispensáveis à emergência de um novo ciclo de desenvolvimento.
Jango foi assassinado aí, pela primeira vez.E de forma explícita.
Se o fizeram de novo em dezembro de 1976, cabe averiguar de uma vez por todas.
Mas, sobretudo, parece claro que o tema das relações entre mídia e ditadura não pode mais se restringir aos bastidores das comissões da verdade. Assim como o binômio 'mídia e regulação' não deveria ser tratado pelo governo como matéria de barganha, em busca de indulgência junto a um poder que, em última instância, deseja-lhe a mesma sorte de Jango.
O governo tem obrigação de se perguntar se zela pela democracia arduamente reconquistada quando tergiversa, se acanha e se omite diante dos contrapesos previstos na Constituição para impedir que o monopólio asfixie a verdadeira liberdade de expressão.
Não há revanchismo nessa agenda.
Pauta-a a necessidade de dotar a democracia das salvaguardas de memória, pluralidade e participação social, que a preservem de uma recaída da intolerância, como a de 1964, que subtraiu à sociedade a prerrogativa de decidir o seu próprio destino.
Os que derrubaram Jango festejaram seu feito em editoriais gordurosos de cinismo.
O de "O Globo, veiculado pela família Marinho, dois dias depois do golpe, expõe um ponto de vista que consagra um método.
A julgar pela experiência recente, não se pode dizer que caiu em desuso.
Leia abaixo, o editorial de “O Globo” de 02 de abril de 1964:
“Ressurge a Democracia”
' Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.
Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada.
Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo.
As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna, “são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI.”
No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente, o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei.
Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.
A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.
Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.”
---------------------------------------
*Obs: texto atualizado em 21/03;às 18hs20m
Antigas, as suspeitas devem ser esclarecidas de uma vez por todas com a realização da autópsia, que o regime militar que o derrubou nunca permitiu.
A ditadura só autorizou o sepultamento do ex-presidente, em São Borja, em um túmulo a 40 metros do de Getúlio Vargas, com féretro blindado.
Mesmo assim, na última hora, o então ministro do Exército, Sylvio Frota, da extrema direita militar, tentou anular a autorização expedida pela cúpula do governo Geisel.
Era tarde. Morto, Jango retornava do exílio.
O caixão lacrado, conduzido em carro a alta velocidade, cruzou a fronteira de Uruguaiana a 120 km por hora, vindo de Mercedes, na Argentina, onde ficava a estância dos Goulart.
Ladeava-o um aparato militar com ordens expressas de não permitir manifestações populares.
Inútil.
Quando chegou a São Borja, a população em peso estava nas ruas e cercou o cortejo; o caixão foi conduzido à catedral e daí cruzou a cidade em marcha solene até o cemitério.
'Jango, Jango, Jango!' Gritos guardados no fundo do peito desafiaram a tensão de um enterro vigiado por tropas, e o aviltamento da figura do ex-presidente, alimentado pela mídia antes, durante e depois de 1964.
Independente da autópsia que venha a ser feita, a verdade é que Jango já havia sido assassinado uma primeira vez 12 anos e oito meses antes dessa cena.
A autópsia de sua morte política não foi devidamente informada à população.
Os que derrubaram seu governo escreveram o laudo da história com a caneta dos vencedores.
Continuam a escrever, graças ao monopólio das comunicações, hoje mais forte do que aquele que detinham há 49 anos, quando deram o golpe.
Confiantes nesse poder de convencimento, invertem os termos da equação. Hoje, são eles, os golpistas de ontem, a denunciar os 'grilhões dos regimes autoritários', embutidos nos projetos de regulação da mídia, que o governo Dilma decidiu engavetar, na ingênua e temerária suposição de uma indulgência eleitoral que não terá.
Quase meio século após o golpe de 64 e dez anos de experiência à frente do Estado deveriam ter sido suficientes para os governantes do PT aprenderem que a 'síndrome de Estocolmo' que rege a sua relação com a mídia, antes de ser uma forma de astúcia política, é uma doença letal para a democracia.
Seu recuo, ademais, sanciona o jogral de vozes empregadas no lustro acadêmico do assalto à memória e ao futuro das liberdades e direitos que se alega defender.
Se em 1964 o golpismo dispunha dos intelectuais americanófilos do IBAD para legitimar a sua arenga, em sua nova roupagem requisita talentos delivery de extração ardilosa.
À promissora vaga de 'intelectual de estimação dos salões conservadores', concorrem currículos, para citar um caso, cujo atestado de excelência inclui o desfrutável título de ex- petista e esquerda arrependida.
A história, ressalve-se, não é feita em preto e branco.
O cardeal Bergoglio que o diga. Diretores de jornais que apoiaram o golpe, em diferentes momentos estenderam a mão a perseguidos pelo regime militar.
Importa, todavia, avaliar o papel das instituições.
A mídia, enquanto instituição, foi - é – parte interessada no assalto ao poder que interrompeu um governo democrático, suspendeu as liberdades e garantias individuais, prendeu, matou, torturou e censurou a própria liberdade de expressão.
Foi dela a iniciativa de convocar o medo e a mentira e alimentar o linchamento de reputações.
O conjunto foi decisivo para levar uma parte da classe média a apoiar a ação golpista.
E mesmo assim, apenas uma parte.
O acervo do Ibope, catalogado pelo Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, reúne pesquisas de opinião pública feitas às vésperas do golpe.
Os dados, cuidadosamente ocultados então, assumem seu real significado cotejados com a atuação do parato midiático, ontem e hoje.
As enquetes levadas às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, quando a democracia já era tangida ao matadouro pelos que bradavam em sua defesa, mostram que:
a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como ótimo (15%), bom (30%) e regular (24%). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo, fazendo eco dos jornais.
b) 49,8% cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à reeleição, em 1965 (seu mandato expirava em janeiro de 1966); 41,8% rejeitavam essa opção.
c) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13 de março.
Em um comício que reuniu 150 mil pessoas na Central do Brasil (o país tinha 72 milhões de habitantes) Jango assinou, então, decretos que expropriavam as terras nas margens das rodovias para fins de reforma agrária, bem como nacionalizavam refinarias de petróleo.
As pesquisas sigilosas do Ibope formam apenas o arremate estatístico de um jornalismo que ocultou elementos da equação política, convocou, exortou, manipulou, incentivou e apoiou a derrubada violenta do Presidente da República, em 31 de março de 1964.
Não se deduza disso que a democracia brasileira espelhava a placidez de um lago suíço.
Num certo sentido, vivia-se, como agora, o esgotamento de um ciclo e o difícil parto do seguinte.
As reformas de base – a agrária, a urbana, a fiscal, a educacional — visavam destravar potencialidades e recursos de um sistema econômico exaurido.
O impulso industrializante de Vargas, dos anos 30 a meados dos anos 50, e o do consumo , fomentado por Juscelino, mostravam claros sinais de esgotamento.
Trincas marmorizavam todo tecido social e produtivo.
À vulnerabilidade externa decorrente da frágil capacidade exportadora, sobrepunha-se uma seca de crédito junto ao sistema financeiro internacional.
O déficit público era ascendente; idem, a espiral preços /salários; o PIB anêmico e a inflação de 25% no trimestre pré-golpe completavam a encruzilhada de uma sociedade em transe.
O conjunto tinha como arremate a guerra fria, exacerbada na América Latina pela vitória da revolução cubana, que desde 1959 irradiava uma agenda alternativa de desenvolvimento.
O efeito na vida cotidiana era enervante. Como o seria no Chile, nove anos depois; como o é hoje, em certa medida, na Venezuela do ex-presidente Chávez.
O mercado negro de produtos essenciais testava a paciência dos consumidores. Óleo, trigo, açúcar, carne faltavam ciclicamente nos grandes centros urbanos.
Fruto, em parte, de uma escassez provocada pela sabotagem empresarial.
As reformas progressistas de Jango estavam longe de caracterizar o alvorecer comunista alardeado pelos jornais. Tratava-se de superar entraves e privilégios de uma máquina capitalista entrevada em suas próprias contradições.
Jango pretendia associar a isso um salto de cidadania e justiça social, ampliando o acesso à educação e aos direitos no campo.
O que importa reter, como traço de atualidade inescapável, é o comportamento extremado do aparato midiático diante desse projeto.
Convocada a democracia a discutir o passo seguinte da história brasileira, os centuriões da legalidade optaram pelo golpe.
Deram ao escrutínio popular um atestado de incapacidade para formar os grandes consenso, indispensáveis à emergência de um novo ciclo de desenvolvimento.
Jango foi assassinado aí, pela primeira vez.E de forma explícita.
Se o fizeram de novo em dezembro de 1976, cabe averiguar de uma vez por todas.
Mas, sobretudo, parece claro que o tema das relações entre mídia e ditadura não pode mais se restringir aos bastidores das comissões da verdade. Assim como o binômio 'mídia e regulação' não deveria ser tratado pelo governo como matéria de barganha, em busca de indulgência junto a um poder que, em última instância, deseja-lhe a mesma sorte de Jango.
O governo tem obrigação de se perguntar se zela pela democracia arduamente reconquistada quando tergiversa, se acanha e se omite diante dos contrapesos previstos na Constituição para impedir que o monopólio asfixie a verdadeira liberdade de expressão.
Não há revanchismo nessa agenda.
Pauta-a a necessidade de dotar a democracia das salvaguardas de memória, pluralidade e participação social, que a preservem de uma recaída da intolerância, como a de 1964, que subtraiu à sociedade a prerrogativa de decidir o seu próprio destino.
Os que derrubaram Jango festejaram seu feito em editoriais gordurosos de cinismo.
O de "O Globo, veiculado pela família Marinho, dois dias depois do golpe, expõe um ponto de vista que consagra um método.
A julgar pela experiência recente, não se pode dizer que caiu em desuso.
Leia abaixo, o editorial de “O Globo” de 02 de abril de 1964:
“Ressurge a Democracia”
' Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.
Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada.
Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.
Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.
Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo.
As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna, “são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI.”
No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente, o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei.
Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.
A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.
Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.”
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*Obs: texto atualizado em 21/03;às 18hs20m
Postado por Saul Leblon às 16:15
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