terça-feira, 12 de março de 2013

ISTOÉ Independente - Paulo Moreira Leite

ISTOÉ Independente - Paulo Moreira Leite
Paulo Moreira Leite
Desde janeiro de 2013, é diretor da ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA, correspondente em Paris e em Washington. É autor do livro A mulher que era o general da casa -- Histórias da resistência civil à ditadura.

Chávez e a doença de seus inimigos

A morte de Hugo Chávez cumpriu a indispensável função de revelar a imensa dificuldade de seus adversários em fazer uma crítica política a seu governo.


 O esforço para construir um retrato faccioso e negativo de sua passagem pelo governo de um dos países mais pobres do continente, que deixou em situação social muito melhor do que recebeu, explica-se por essa razão.
 
Apenas cidadãos que sempre dormiram em casas com comida na mesa e roupa lavada podem não perceber a importância de determinadas conquistas obtidas na última década e meia.
 
Quem lembra que a melhoria básica das condições de existência “não é suficiente” deveria explicar por que, antes, nem o “insuficiente” era possível.
 
Não custa lembrar a regra de que fome no estômago dos outros é estatística, concorda?  
 
Há muito tempo a oposição interna e externa a Chávez deixara de vir acompanhada de uma alternativa concreta de política econômica e distribuição de renda. 
 
Ele sempre era condenado com definições terminais -- como “populista” e “autoritário” -- sem que elas essas fossem devidamente submetidas a um exame das condições concretas da política venezuelana.
 
Algo mais profundo sempre me incomodou na postura recente dos adversários de Chávez – uma certa impaciência com o câncer. Sem aquela hipocrisia que os bons costumes ensinam e a boa educação recomenda, nem fingiam torcer por sua recuperação. Numa demonstração mórbida de impotência, a cada viagem a Cuba, a cada nova cirurgia, a cada visita de parentes e amigos, deixavam claro que apenas se perguntavam quando o tumor iria completar  um serviço que não eram capazes de realizar pelo instrumentos mais nobre  vida pública – o voto.
 
A desumanização dos adversários é a forma mais selvagem de luta política, nós sabemos. Ela permite o rebaixamento de escrúpulos mais convencionais e dispensa lealdades que se reservam mesmo para os adversários. 
 
Os adversários de Chávez costumam criticá-lo a partir de dois adjetivos. Um deles, “populista”, é um chavão que deveria ser reservado para crianças que ainda não completaram o processo de alfabetização.  Como explica o professor Jorge Ferreira, autor de uma biografia indispensável sobre Goulart:
 
- Populista é o adversário que tem mais voto.
 
Com isso, Ferreira quer dizer o óbvio: na incapacidade de derrotar um rival, o mais fácil é dizer que não passa de um demagogo. Já vimos este filme tantas vezes, não é mesmo? 
 
Mas o professor argentino Ernesto Laclau, um dos mais importantes intelectuais latino-americanos, tem outra contribuição a este debate. No livro “A Razão Populista”, Laclau rompe com uma tradição de pensamento elitista, que envolveu até diversos intelectuais de esquerda nos anos 60 e 70, que denunciavam Goulart e Getúlio como “aliados da burguesia” para mostrar  que aquilo que se costuma chamar de populismo nada mais é do que  uma política que procura combinar a defesa dos  interesses nacionais com a melhoria das condições de vida do povo.
 
Concordo com quem observa que Chávez poderia ter avançado mais na reconstrução da economia venezuelana, diminuindo a dependência em relação ao petróleo. Mas a honestidade intelectual obriga a lembrar que isso é muito mais fácil de falar do que fazer. Implica em deixar de elevar os salários e cortar gastos que geram bem-estar imediato da população em nome de investimentos futuros.
 
Não há almoço grátis em economia. Num país com um dos piores índices de desigualdade da já desigual América do Sul, seria complicado distribuir renda, guardar um bom pedaço do excedente para investimentos – e ainda garantir apoio da maioria da população nas urnas, num governo sob pressão intensa e permanente de adversários internos e externos. É mais fácil, como mostra a experiência de tantos países, arrochar os salários e reprimir o povo. Chávez teve o mérito de experimentar uma opção diversa. Você pode dizer que isso era o melhor para sua sobrevivência política. Concordo. 
 
Mas seus aliados poderiam argumentar que a alternativa era sacrificar a vida do povo – em nome de um futuro melhor que, sabemos muito bem, raras vezes se alcança, não é?
 
Outra palavra frequente é o “autoritarismo” de Chávez. A repetição desse chavão procura fazer esquecer que Chávez promoveu 15 eleições ou referendos em 14 anos de governo – ganhou 14. Como a maioria dessas disputas foi acompanhada de perto por observadores internacionais, que jamais apontaram para fraudes ou coisa parecida, até por uma questão de humildade seria conveniente admitir que essas vitórias expressavam a vontade do povo – aquele que vota com o estômago, com o cérebro, com o coração, com a vida de todo dia, e não com as estatísticas. 
 
Lembrando que a democracia não é obra do governo, mas envolve o funcionamento do Estado e também a atuação de todas as instituições, inclusive ligadas à oposição, eu gostaria de perguntar como é que se podem definir os adversários de Chávez. Não custa lembrar que em 2002, apenas, Chávez foi vítima de duas tentativas de golpe de Estado, com apoio do empresariado local, da embaixada dos Estados Unidos – e de quem mais você quiser.
 
Na primeira tentativa, Chávez foi preso por 72 horas, até que uma reação popular garantiu sua volta ao cargo. Na segunda, o país foi colocado à beira do colapso pela alta burocracia da PDVSA, que cortou o abastecimento de todos os combustíveis num país onde o petróleo acende lâmpadas em casa, move a indústria e o comércio, além de fazer andar carros e ônibus. Com apoio internacional, os golpistas conseguiram até impedir que aliados tradicionais de Chávez vendessem petróleo ao país.
 
Eu me pergunto – eu acho que é um debate real – qual o tipo de tratamento democrático é possível garantir num ambiente golpista, de confronto e ruptura institucional permanente. (Não custa lembrar que, nos anos seguintes, a oposição criou o costume de boicotar eleições, com a única finalidade de produzir impasses e tentar questionar a legitimidade das vitórias inevitáveis de Chávez. De uma forma ou de outra, nunca deixou de investir em rupturas com a ordem democrática.)
 
A principal reação de Chávez aos golpistas não incluiu prisões em massa nem outras medidas drásticas, tão comuns e muitas vezes justificáveis em horas traumáticas, em qualquer parte do mundo quando se derrota um golpe de Estado. Limitou-se a não renovar a concessão de um canal de televisão, a RCTV, quando ela venceu. Vamos combinar: para quem sofreu dois golpes de Estado num único ano, até que não foi uma opção sangrenta. Os chavistas fizeram tudo dentro da lei para punir uma empresa que havia se valido de uma concessão pública para sabotar a democracia. Não gosto de nenhuma medida que reduz o grau de liberdade num país. Mas na vida concreta, os primeiros a ameaçar os direitos dos golpistas foram eles mesmos, vamos combinar.
 
Eu estava em Caracas quando a RCTV perdeu a concessão. Não é preciso justificar a medida, mas é bom entender o quadro político. Só havia reação indignada na imprensa internacional. A população reagiu com indiferença, como se quisesse lembrar que nem sempre é fácil defender a liberdade de inimigos da democracia. Estive em comícios em defesa da RCTV. Reuniam funcionários preocupados com o fim de seus empregos e políticos de oposição. Só.
 
O câncer de Chavez abriu a seus adversários uma oportunidade que eles não foram capazes de conquistar pela luta política. Resta saber como se portarão daqui para frente, diante da provável vitória de Nicolás Maduro nas eleições presidenciais. A grande pergunta é saber se serão capazes de curar-se de falta de apego à democracia.

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