sábado, 9 de janeiro de 2016

Boaventura: crise da política e futuro da esquerda

Boaventura: crise da política e futuro da esquerda



Boaventura: crise da política e futuro da esquerda


Para Boaventura, são “a melhor expressão da presença das
inovações latino-americanas na nova esquerda europeia”
Diante dos riscos de barbárie, agora presentes em toda parte,
voltam a surgir iniciativas inovadoras. Terão êxito? Como evitar
repetição de erros trágicos?





Por Boaventura de Sousa Santos


O futuro da esquerda não é mais difícil de prever que qualquer outro
facto social. A melhor maneira de o abordar é fazer o que designo por
sociologia das emergências. Consiste esta em dar atenção especial a
alguns sinais do presente por ver neles tendências ou embriões do que
pode vir a ser decisivo no futuro. Neste texto, dou especial atenção a
um fato que, por ser incomum, pode sinalizar algo de novo e importante.
Refiro-me aos pactos entre diferentes partidos de esquerda.


Os Pactos


A família das esquerdas não tem uma forte tradição de pactos. Alguns
ramos desta família têm mais tradição de pactos com a direita do que com
outros ramos da família. Dir-se-ia que as divergências internas na
família das esquerdas são parte do seu código genético, tão constantes
têm sido ao longo dos últimos duzentos anos. Por razões óbvias, as
divergências têm sido mais extensas ou mais notórias em democracia. A
polarização vai por vezes ao ponto de um ramo da família não reconhecer
sequer que o outro ramo pertence à mesma família. Pelo contrário, em
períodos de ditadura têm sido frequentes os entendimentos, ainda que
terminem mal termina o período ditatorial. À luz desta história, merece
uma reflexão o facto de em tempos recentes termos vindo assistir a um
movimento pactista entre diferentes ramos das esquerdas em países
democráticos. A Europa do Sul é um bom exemplo: a unidade em volta do
Syriza na Grécia, apesar de todas as vicissitudes e dificuldades; o
governo liderado pelo Partido Socialista em Portugal com o apoio do
Partido Comunista e do Bloco de Esquerda no rescaldo das eleições de 4
de Outubro de 2015; alguns governos autonômicos em Espanha, saídos das
eleições de 2015 e, no momento em que escrevo, a discussão sobre a
possibilidade de um pacto a nível nacional entre o Partido Socialista, o
Podemos e outros partidos de esquerda em resultado das eleições
legislativas de 6 de dezembro de 2015. Há sinais de que noutros espaços
da Europa e na América Latina possam vir a surgir num futuro próximo
pactos semelhantes. Duas questões se impõem. Porquê este impulso
pactista em democracia? Qual a sua sustentabilidade?


A agressividade da direita é tão devastadora

que as forças de esquerda começam a perceber:

ditaduras do século XXI surgirão

como democracias de baixíssima intensidade

A primeira pergunta tem uma resposta
plausível. No caso da Europa do Sul, a agressividade da direita no poder
nos últimos cinco anos (tanto a nacional, como a que veste a pele das
“instituições europeias”) foi tão devastadora para os direitos de
cidadania e para a credibilidade do regime democrático que as forças de
esquerda começam a ficar convencidas de que as novas ditaduras do século
XXI vão surgir sob a forma de democracias de baixíssima intensidade.
Serão ditaduras que se apresentam como ditamoles ou democraduras:
a governabilidade possível ante a iminência do suposto caos nos tempos
difíceis que vivemos, o resultado técnico dos imperativos do mercado e
da crise que explica tudo sem precisar de ser, ela própria, explicada. O
pacto resulta de uma leitura política de que o que está em causa é a
sobrevivência de uma democracia digna do nome e de que as divergências
sobre o que tal significa têm agora menos premência do que salvar o que a
direita ainda não conseguiu destruir.



A segunda pergunta é mais difícil de responder. Como dizia Espinosa,
as pessoas (e eu diria, também as sociedades) regem-se por duas emoções
fundamentais: o medo e a esperança. O equilíbrio entre elas é complexo
mas precisamos das duas para sobreviver. O medo domina quando as
expectativas de futuro são negativas (“isto está mau mas o futuro pode
ser pior”); por sua vez, a esperança domina quando as expectativas de
futuro são positivas ou quando, pelo menos, o inconformismo com a
suposta fatalidade das expectativas negativas é amplamente partilhado.
Trinta anos depois do assalto global aos direitos dos trabalhadores; da
promoção da desigualdade social e do egoísmo como máximas virtudes
sociais; do saque sem precedentes dos recursos naturais e da expulsão de
populações inteiras do seus territórios e da destruição ambiental que
isso significa; do fomentar da guerra e do terrorismo para criar Estados
falidos e tornar as sociedades indefesas perante a espoliação; da
imposição mais ou menos negociada de tratados de livre comércio
totalmente controlados pelos interesses das empresas multinacionais; da
supremacia total do capital financeiro sobre o capital produtivo e sobre
vida das pessoas e das comunidades – depois de tudo isto, combinado com
a defesa hipócrita da democracia liberal, é plausível concluir que o
neoliberalismo é uma máquina imensa de produção de expectativas
negativas para que as classes populares não saibam as verdadeiras razões
do seu sofrimento, se conformem com o pouco que ainda têm e sejam
paralisadas pelo pavor de o perder.


Constituição e Hegemonia


O movimento pactista no interior das esquerdas é o produto de um
tempo, o nosso, de predomínio absoluto do medo sobre a esperança.
Significará isto que os governos saídos dos pactos serão vítimas do seu
êxito? O êxito dos governos pactuados à esquerda irá traduzir-se na
atenuação do medo e no devolver de alguma esperança às classes
populares, ao mostrar, por via de uma governação pragmática e
inteligente, que o direito a ter direitos é uma conquista civilizacional
irreversível. Será que, no momento em que voltar a luzir a esperança,
as divergências voltarão à superfície e os pactos serão deitados para o
lixo? Se tal acontecer, isso será fatal para as classes populares, que
rapidamente voltarão ao silenciado desalento perante um fatalismo cruel,
tão violento para as grandes maiorias quanto benévolo para as
pequeníssimas minorias. Mas será também fatal para as esquerdas no seu
conjunto, porque ficará demonstrado durante algumas décadas que as
esquerdas são boas para remendar o passado mas não para construir o
futuro. Para que tal não aconteça, dois tipos de medidas têm de ser
levadas a cabo durante a vigência dos pactos. Duas medidas que não se
impõem pela urgência da governação corrente e que, por isso, têm de
resultar de vontade política bem determinada. Chamo às duas medidas:
Constituição e hegemonia.


Primeira tarefa: reformas que ampliem a democracia, 

acabem com o monopólio dos partidos, 

garantam direitos sociais e nos preparem para futuros embates

contra o projeto elitista da ditamole

A Constituição é o conjunto de reformas constitucionais ou
infraconstitucionais que reestruturam o sistema político e as
instituições de maneira a prepará-los para possíveis embates com a ditamole
e o projeto de democracia de baixíssima intensidade que ela traz
consigo. Consoante os países, as reformas serão diferentes, como serão
diferentes os mecanismos utilizados. Se nalguns casos é possível
reformar a Constituição com base nos parlamentos, noutros será
necessário convocar Assembleias Constituintes originárias, dado que os
parlamentos seriam o obstáculo maior a qualquer reforma constitucional.
Pode também acontecer que, num certo contexto, a “reforma” mais
importante seja a defesa ativa da Constituição existente mediante uma
renovada pedagogia constitucional em todas as áreas de governação. Mas
haverá algo comum a todas as reformas: tornar o sistema eleitoral mais
representativo e mais transparente; reforçar a democracia representativa
com a democracia participativa.


Os mais influentes teóricos liberais da democracia representativa
reconheceram (e recomendaram) a coexistência ambígua entre duas ideias
(contraditórias) que garantem a estabilidade democrática: por um lado, a
crença dos cidadãos na sua capacidade e competência para intervir e
participar ativamente na política; por outro, um exercício passivo dessa
competência e dessa capacidade mediante a confiança nas elites
governantes. Em tempos recentes, e como mostram os protestos que
abalaram muitos países a partir de 2011, a confiança nas elites tem
vindo a deteriorar-se sem que, no entanto, o sistema político (pelo seu
desenho ou pela sua prática) permita aos cidadãos recuperar a sua
capacidade e competência para intervir ativamente na vida política.
Sistemas eleitorais enviesados, partidocracia, corrupção, crises
financeiras manipuladas – eis algumas das razões para a dupla crise de
representação (“não nos representam”) e de participação (“não merece a
pena votar, são todos iguais e nenhum cumpre o que promete”). As
reformas constitucionais visarão um duplo objetivo: tornar a democracia
representativa mais representativa; complementar a democracia
representativa com a democracia participativa. De tais reformas
resultará que a formação da agenda política e o controlo do desempenho
das políticas públicas deixam de ser um monopólio dos partidos e passam a
ser partilhados pelos partidos e por cidadãos independentes organizados
democraticamente para o efeito.


O segundo conjunto de reformas é o que designo por hegemonia.
Hegemonia é o conjunto de ideias sobre a sociedade e interpretações do
mundo e da vida que, por serem altamente partilhadas, inclusivamente
pelos grupos sociais que são prejudicados por elas, permitem que as
elites políticas, ao apelarem para tais ideias e interpretações,
governem mais por consenso do que por coerção, mesmo quando governam
contra os interesses objetivos de grupos sociais maioritários. A ideia
de que os pobres são pobres por culpa própria é hegemônica quando é
defendida, não apenas pelos ricos, mas também pelos pobres e pelas
classes populares em geral. Nesse caso são, por exemplo, menores os
custos políticos das medidas que visam eliminar ou restringir
drasticamente o rendimento social de inserção.


As aprendizagens globais


A luta pela hegemonia das ideias de sociedade que sustentam o pacto
entre as esquerdas é fundamental para a sobrevivência e consistência
desse pacto. Essa luta trava-se na educação formal e na promoção da
educação popular, nos mídia, no apoio aos mídia alternativos, na
investigação científica, na transformação curricular das universidades,
nas redes sociais, na atividade cultural, nas organizações e movimentos
sociais, na opinião pública e na opinião publicada. Através dela,
constroem-se novos sentidos e critérios de avaliação da vida social e da
ação política ( a imoralidade do privilégio, da concentração da riqueza
e da discriminação racial e sexual; a promoção da solidariedade, dos
bens comuns e da diversidade cultural social e econômica; a defesa da
soberania e da coerência das alianças políticas; a proteção da natureza)
que tornam mais difícil a contra-reforma dos ramos reacionários da
direita, os primeiros a irromper num momento de fragilidade do pacto.
Para que esta luta tenha êxito é preciso impulsionar políticas que, a
olho nu, são menos urgentes e menos compensadoras. Se tal não ocorrer, a
esperança não sobreviverá ao medo.


Na América Latina, governos de esquerda não enfrentaram

nem questão da Constituição, nem da hegemonia. 

No caso do Brasil, isso é ainda mais dramático

e ameaça todos os avanços da última década

Se algo se pode afirmar com alguma certeza sobre as dificuldades por
que estão a passar as forças progressistas na América Latina é que elas
assentam no facto de os seus governos não terem enfrentado nem a questão
da Constituição nem a questão da hegemonia. No caso do Brasil, este
fato é particularmente dramático. Ele explica em parte que os enormes
avanços sociais dos governos da era Lula sejam agora tão facilmente
reduzidos a meros expedientes populistas e oportunistas, inclusivamente
por parte daqueles que deles beneficiaram. Explica também que os muitos
erros que cometeram ( foram muitos, a começar pela desistência da
reforma política e da regulação dos mídia, e alguns erros deixam feridas
abertas em grupos sociais importantes, tão diversos quanto os
camponeses sem terra nem reforma agrária, os jovens negros vítimas do
racismo, os povos indígenas ilegalmente expulsos dos seus territórios
ancestrais, povos indígenas e quilombolas com reservas homologadas mas
engavetadas, militarização das periferias das grandes cidades,
populações rurais envenenadas por agrotóxicos, etc) não sejam
considerados erros, passem em claro e até sejam convertidos em virtudes
políticas ou, pelo menos, sejam aceites como consequências inevitáveis
de uma governação realista e desenvolvimentista.


As tarefas não cumpridas da Constituição e da hegemonia explicam
ainda que a condenação da tentação capitalista por parte dos governos de
esquerda se centre na corrupção e, portanto, na imoralidade e na
ilegalidade do capitalismo e não na injustiça sistemática de um sistema
de dominação que se pode realizar em perfeito cumprimento da legalidade e
da moralidade capitalistas.


A análise das consequências da não resolução das questões da
Constituição e da hegemonia é relevante para prever e prevenir o que se
pode passar nas próximas décadas, não só na América Latina, como também
na Europa e noutras regiões do mundo. Entre as esquerdas
latino-americanas e da Europa do Sul tem havido nos últimos vinte anos
canais de comunicação importantes que estão ainda por analisar em todas
as suas dimensões. Desde o início do orçamento participativo em Porto
Alegre (1989), várias organizações de esquerda na Europa, Canadá e Índia
(são estas as de que tenho conhecimento) começaram a dar muita atenção
às inovações políticas que emergiam no campo das esquerdas em vários
países da América Latina. A partir do final da década de 1990, com a
intensificação das lutas sociais, a subida ao poder de governos
progressistas e as lutas por Assembleias Constituintes, sobretudo no
Equador e na Bolívia, tornou-se claro que uma profunda renovação da
esquerda estava em curso e da qual havia muito que aprender.


Os traços principais dessa renovação eram os seguintes: a democracia
participativa articulada com a democracia representativa, uma
articulação de que ambas saiam fortalecidas; o intenso protagonismo de
movimentos sociais de que o Fórum Social Mundial de 2001 foi uma mostra
eloquente; uma nova relação entre partidos e movimentos sociais; a
entrada saliente na vida política de grupos sociais até então
considerados residuais, nomeadamente camponeses sem terra, povos
indígenas e povos afro-descendentes; a celebração da diversidade
cultural, o reconhecimento do caráter plurinacional dos países e o
propósito de enfrentar as insidiosas heranças coloniais sempre
presentes. Este elenco é suficiente para evidenciar o quanto as duas
lutas a que me tenho estado a referir (a Constituição e a hegemonia)
estavam presentes neste vasto movimento que parecia refundar para sempre
o pensamento e a prática de esquerda, não só na América Latina, como em
todo o mundo.


A crise financeira e política, sobretudo a partir de 2011, e o
movimento dos indignados foram os detonadores de novas emergências
políticas de esquerda na Europa do Sul em que as lições da América
Latina estavam bem presentes, sobretudo a nova relação
partido-movimento, a nova articulação entre democracia representativa e
democracia participativa, a reforma constitucional e, no caso da
Espanha, a questão da plurinacionalidade. O partido espanhol Podemos
representa melhor do que qualquer outro esta aprendizagem, ainda que os
seus dirigentes tenham estado desde a primeira hora bem conscientes das
diferenças substanciais entre o contexto político e geopolítico europeu e
o latino-americano.


As esquerdas europeias aprenderam com as muitas inovações

das esquerdas latino-americanas. Mas estas “esqueceram” 

suas próprias criações e caíram nas armadilhas

da velha política, onde são facilmente batidas

O modo como essas aprendizagens se vão plasmar no novo ciclo político
que está a emergir na Europa do Sul é, por agora, uma incógnita. mas
desde já é possível especular o seguinte. Se é verdade que as esquerdas
europeias aprenderam com as muitas inovações das esquerdas
latino-americanas, não é menos verdade (e trágico) que estas se
“esqueceram” das suas próprias inovações e que, de uma ou de outra
forma, caíram nas armadilhas da velha política onde as forças de direita
facilmente mostram a sua superioridade dada a longa experiência
histórica acumulada.


Se as linhas de comunicação se mantêm nos dias de hoje, e sempre
salvaguardando a diferenças dos contextos, talvez seja tempo de as
esquerdas latino-americanas aprenderem com as inovações que estão a
emergir entre as esquerdas da Europa do Sul. Entre elas saliento as
seguintes: manter viva a democracia participativa dentro dos próprios
partidos de esquerda como condição prévia à sua adoção no sistema
político nacional em articulação com a democracia representativa; pactos
entre forças de esquerda (não necessariamente apenas partidos) e nunca
com forças de direita; pactos pragmáticos não clientelistas (não se
discutem pessoas ou postos de governo mas políticas e medidas de
governação), nem de rendição (articulando linhas vermelhas que não podem
ser ultrapassadas com a noção de prioridades, ou, como se dizia dantes,
distinguindo as lutas primárias das secundárias); insistência na
reforma constitucional para blindar os direitos sociais e tornar o
sistema político mais transparente, mais próximo e mais dependente de
decisões cidadãs sem ter de esperar por eleições de quatro em quatro
anos (reforço do referendum); e, no caso espanhol, tratar
democraticamente a questão da plurinacionalidade.


A máquina fatal do neoliberalismo continua a produzir medo em larga
escala e, sempre que falta matéria prima, ceifa a esperança que pode
encontrar nos recessos mais recônditos da vida política, social das
classes populares, tritura-a, processa-a e transforma-a em medo do medo.
As esquerdas são a areia que pode emperrar essa engrenagem majestática
de modo a abrir as brechas por onde a sociologia das emergências fará o
seu trabalho de formular e amplificar as tendências, os “ainda não”, que
apontam para um futuro digno para as grandes maiorias. Para isso, é
preciso que as esquerdas saibam ter medo sem ter medo do medo. Saibam
furtar rebentos de esperança à trituração neoliberal e plantá-los em
terrenos férteis onde cada vez mais cidadãos sintam que podem viver bem,
protegidos, tanto do inferno do caos iminente, como do paraíso das
sirenes do consumo obsessivo. Para que isto aconteça, a condição mínima é
que as esquerdas permaneçam firmes nas duas lutas fundamentais, a
Constituição e a hegemonia.

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