A despesa pública e seus “bois de piranha”
“O equacionamento responsável da despesapública no Brasil reclama uma atenção cuidadosa para todos os principais
itens relacionados com os gastos públicos, sem esquecer ou
desconsiderar nenhum deles. Com certeza, existe muito trabalho e margem
de redução de dispêndios”
“Boi de piranha é uma expressão popular brasileira. Essa
expressão designa uma situação onde um bem menor e de pouco valor é
sacrificado para que em troca outros bens mais valiosos não sofram dano.
Também pode referir ao sacrifício de um indivíduo na tentativa de
livrar outro indivíduo (ou organização) de alguma dificuldade. A
expressão origina-sedo meio pecuarista, em referência a uma situação
onde criadores de gado, ao atravessar um rio infestado de piranhas,
abateriam um dos touros, já velho e/ou doente, atirando seu corpo,
sangrando, ao rio, para atrair os peixes carnívoros enquanto os peões
cruzavam o rio com o restante do rebanho” (https://goo.gl/paJuyM).
Se observado com cuidado o noticiário da grande imprensa (redes de
televisão, rádios, jornais e suas projeções no ambiente eletrônico) nos
últimos meses, seriam três os mais “pesados” itens nas despesas
públicas: a) gastos com a Previdência Social (com um deficit
monstruoso e crescente); b) despesas com agentes públicos, notadamente
servidores públicos (remunerações, auxílios, benefícios e toda sorte de
“privilégios”) e c) a corrupção generalizada (que desvia os recursos que
faltam para a prestação adequada de serviços públicos nas áreas de
educação, saúde, segurança pública, cultura, lazer, etc).
Esses “elementos” funcionam, ao menos parcialmente, como verdadeiros
“bois de piranha”. Embora inegavelmente significativos e carregando
graves distorções (os dois primeiros itens, até porque o terceiro é uma
distorção em si), como adiante tratado, são utilizados com enorme
eficiência midiática para esconder grupos de despesas ou redutores de
receitas bem mais relevantes.
O debate em torno das contas da Previdência Social (ou da Seguridade
Social, como define a Constituição) não é fácil. Análises realizadas
pelo governo, por organizações da sociedade civil e por especialistas
apontam para conclusões completamente díspares. Apuram-se déficits e superavits,
dependendo dos dados e métodos de contabilização utilizados. Para além
do debate em torno dos números da Previdência Social, existem dois
elementos que dificultam enormemente a propaganda governamental no
sentido da falência das contas previdenciárias. A Desvinculação de
Receitas da União (DRU), efetivada por mais de vinte anos, subtraiu
vultosos recursos da Seguridade Social para outros fins. A pergunta,
então, é inevitável: qual o sentido de desviar recursos de uma área
deficitária para outras áreas de atuação do Poder Público?
Os fundos previdenciários, previstos pela Emenda
Constitucional n. 20, de 1998, não foram constituídos pelos sucessivos
governos. Esses importantes instrumentos de gestão financeira das contas
previdenciárias permitiriam, com razoável precisão e facilidade,
identificar a situação atual do sistema. Destaque-se que o relatório
resumido da execução orçamentária da União em 2016 indica: a) o
pagamento de 481,1 bilhões de reais em benefícios previdenciários; b) um
deficit de 138 bilhões de reais no âmbito do regime geral de
Previdência Social e c) um déficit de 77 bilhões de reais no âmbito do
regime próprio de Previdência Social dos servidores públicos federais.
Os gastos com as remunerações dos servidores públicos são
consideráveis e integram um dos principais itens da despesa pública (não
o mais relevante). Em 2016, segundo o relatório resumido da execução
orçamentária da União, foram pagos 255,2 bilhões de reais em relação a
pessoal e encargos sociais. Uma importante ponderação precisa ser
realizada. “A cada 100 trabalhadores brasileiros, 12 são servidores
públicos. A média é a mesma verificada nos demais países da América
Latina, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE). Já nos países mais desenvolvidos, o percentual costuma
ser quase o dobro — nesses locais, a média é de 21 funcionários a cada
100 empregados. Em nações como Dinamarca e Noruega, mais de um terço da
população economicamente ativa está empregada no serviço público”
(https://goo.gl/0oIHkC).
Existem graves problemas a serem equacionados nessa área com impactos
na redução de despesas e atuação republicana da máquina estatal. Entre
outros, destacam-se os seguintes: a) necessidade de redução drástica
(quase completa) de cargos comissionados; b)supressão de benefícios
indevidos (como o auxílio-moradia no Judiciário e no Ministério Público,
utilização de carros oficiais e aviões da Força Aérea Brasileira (FAB),
nos três Poderes, etc) e c) fixação dos padrões remuneratórios das
principais carreiras do serviço público (nos três Poderes e nas Funções
Essenciais à Justiça) de forma conjunta, com definição das relações
existentes entre elas e com sensibilidade social para os patamares
fixados.
Reclamações crescentes são ouvidas acerca do custo de manutenção do
Legislativo e do Judiciário. O relatório resumido da execução
orçamentária da União em 2016 consigna gastos de: a) 7 bilhões de reais
com a função Legislativa e b) 31,2 bilhões de reais com a função
judiciária. Esses valores são pouquíssimos expressivos ante uma despesa
global da ordem de 1,8 trilhão de reais. As razões para racionalização
de despesas do âmbito do Legislativo e do Judiciário passam por:
a)supressão de privilégios e distorções; b) redução de estruturas
excessivas e desnecessárias e c) adoção de padrões republicanos de
funcionamento da máquina estatal. A vertente da redução de despesas
públicas é evidentemente secundária nessas searas.
Segundo estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo (Fiesp), o custo médio estimado da corrupção no Brasil está
localizado entre 1,38% a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB)
(https://goo.gl/hFYxoj). Tomando o PIB de 2016 como parâmetro, teríamos
algo na casa de 86 a 143 bilhões de reais em termos de corrupção. Essa
projeção, importa destacar, envolve o numerário efetivamente empregado
em práticas ilegais, os recursos que as empresas deixam de investir em
atividades produtivas e a fuga decapitais. Entre outras medidas
estruturais para uma enorme redução das práticas de corrupção estão: a) a
supressão quase completa das cadeias de comando e obediência definidas
pelas nomeações políticas para cargos comissionados e b) o
fortalecimento significativo de medidas preventivas, como aquelas
efetivadas pelos controles internos e pela advocacia pública.
As bilionárias despesas com o serviço da dívida pública são
praticamente“esquecidas” no debate realizado pela grande imprensa, pelo
governo e pelo Parlamento. Nesse campo, registra-se o pagamento de cerca
de 511 bilhões de reais em juros (nominais) pela União em 2016 (8,1% do
PIB). Em 2015, o valor desembolsado foi de aproximadamente 446 bilhões
de reais (7,4% do PIB). Já em 2014, o montante gasto foi de cerca de 313
bilhões de reais (5,4% do PIB). Os dados foram obtidos no site do Banco
Central do Brasil (https://goo.gl/gBhrpQ). Decididamente, a
administração da dívida pública e suas adjacências financeiras reclamam
presença destacada na discussão em torno da despesa pública.
Entre outras medidas, voltadas para a redução do estoque e do
serviço,deveriam ser consideradas e submetidas a irrestrita
transparência e controle social: a) uma séria auditoria (exigência do
art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); b) a
gestão de sua evolução,inclusive com a supressão de mecanismos indevidos
que viabilizam o seu contínuo crescimento; c) a fixação da taxa de
juros Selic (somente a manutenção de uma brutal transferência de renda
da maioria da população para segmentos sociais extremamente minoritários
justifica o patamar atual); d) a gestão responsável das reservas
monetárias internacionais; e e) a revisão da política de realização de
operações compromissadas e todas as formas de “ajuste de liquidez”.
A sonegação tributária, segundo vários estudos e análises, como
aquele que sustenta o sonegômetro do Sindicato Nacional dos Procuradores
da Fazenda Nacional (Sinprofaz) (https://goo.gl/wMWAI), atinge o
patamar de 500 bilhões de reais por ano. Uma atuação planejada,
organizada e enérgica nessa área certamente produziria um fluxo
considerável de recursos novos para o caixa do Poder Público.
As renúncias de receitas tributárias em conjunto (realizadas e
projetadas), entre os anos de 2010 e 2018, alcançarão o patamar de 501,4
bilhões de reais. Somente no ano de 2015, as desonerações observadas
representaram aproximadamente 106,7 bilhões de reais. Esses dados
constam de análises efetivadas pela Receita Federal do Brasil.
Os subsídios de várias naturezas concedidos pelo governo constituem
um capítulo especial em matéria de gastos públicos. A maior parte desses
benefícios não aparecem expressamente no orçamento discutido e aprovado
no Congresso Nacional.
“Segundo o Ministério da Fazenda, de 2003 a 2016 os subsídios
embutidos em operações de crédito e financeiras somaram quase R$ 1
trilhão – 420 bilhões do total foram para o setor produtivo” (Folha de S.Paulo, dia 6 de agosto de 2017).
Essa revelação rendeu a seguinte e inusitada manifestação da
jornalista Míriam Leitão: “Governo transfere mais recursos para os ricos
do que para os pobres./As evidências se acumulam. Novos levantamentos
esclarecem o grande problema do Brasil. Aqui, a transferência de
dinheiro público beneficia especialmente os mais ricos, as grandes
empresas. Mesmo o governo que falava em justiça social manteve a
política e a ampliou quando esteve no poder. A falta de transparência é
outro problema./(…) Esse sempre foi um problema no Brasil: o governo
transfere mais recursos aos ricos do que aos pobres, e em geral de forma
pouco transparente. Isso é preciso entender. Até o governo que chegou
falando em reduzir a desigualdade social fez o mesmo de sempre, e até em
maior escala./É assim que o Brasil se torna um dos mais desiguais do
mundo. Dinheiro público, dinheiro do trabalhador é transferido paras
empresas. Às vezes na base de propina”. (https://goo.gl/KNgTrF)
Esses quatro últimos elementos, entre outros também
relevantes,praticamente somem do debate travado no seio da sociedade. Os
“bois de piranha” representados pelas despesas previdenciárias,
remuneratórias e com esquemas de corrupção consomem praticamente todo o
tempo utilizado pela grande mídia e pelo governo. Essas outras questões,
igualmente relevantes ou mais importantes, literalmente desaparecem do
radar do cidadão e seus beneficiários agradecem efusivamente.
O equacionamento responsável da despesa pública no Brasil reclama uma
atenção cuidadosa para todos os principais itens relacionados com os
gastos públicos, sem esquecer ou desconsiderar nenhum deles. Com
certeza, existe muito trabalho e margem de redução de dispêndios,
deforma republicana, sensata e razoável, em todas as principais searas
(sem exceções) de efetivação do gasto público (direto ou na forma de
redutores das receitas).
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