domingo, 13 de agosto de 2017

“A dívida pública é um mega esquema de corrupção

“A dívida pública é um mega esquema de corrupção institucionalizado” — CartaCapital



“A dívida pública é um mega esquema de corrupção institucionalizado”


por Renan Truffi



publicado
09/06/2015 04h34,


última modificação
09/06/2015 17h32

Para ex-auditora da Receita, convidada pelo Syriza para analisar a
dívida grega, sistema atual provoca desvio de recursos públicos para o
mercado financeiro






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Dois meses antes de o governo Dilma Rousseff anunciar oficialmente o corte de 70 bilhões de reais do Orçamento por conta do ajuste fiscal, uma brasileira foi convidada pelo Syriza, partido grego de esquerda que venceu as últimas eleições,
para compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega com outros 30
especialistas internacionais. A brasileira em questão é Maria Lucia
Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do
movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil. Mas o que o ajuste tem
a ver com a recuperação da economia na Grécia? Tudo, diz Fattorelli. “A dívida pública é a espinha dorsal”.


Enquanto o Brasil caminha em direção à austeridade, a estudiosa participa da comissão que vai investigar os acordos, esquemas e fraudes na dívida pública que levaram a Grécia, segundo o Syriza, à crise econômica e social.
“Existe um ‘sistema da dívida’. É a utilização desse instrumento
[dívida pública] como veículo para desviar recursos públicos em direção
ao sistema financeiro”, complementa Fattorelli.


Esta não é a primeira vez que a auditora é acionada para esse tipo de missão. Em 2007, Fattorelli foi
convidada pelo presidente do Equador, Rafael Correa, para ajudar na
identificação e comprovação de diversas ilegalidades na dívida do país. O
trabalho reduziu em 70% o estoque da dívida pública equatoriana.


Em entrevista a CartaCapital, direto da
Grécia, Fattorelli falou sobre como o “esquema”, controlado por bancos e
grandes empresas, também se repete no pagamento dos juros da dívida
brasileira, atualmente em 334,6 bilhões de reais, e provoca a
necessidade do tal ajuste.


Leia a entrevista:

CartaCapital:
 O que é a dívida pública?


Maria Lucia Fattorelli: A dívida pública, de forma técnica,
como aprendemos nos livros de Economia, é uma forma de complementar o
financiamento do Estado. Em princípio, não há nada errado no fato de um
país, de um estado ou de um município se endividar, porque o que está
acima de tudo é o atendimento do interesse público. Se o Estado não
arrecada o suficiente, em princípio, ele poderia se endividar para o
ingresso de recursos para financiar todo o conjunto de obrigações que o
Estado tem. Teoricamente, a dívida é isso. É para complementar os
recursos necessários para o Estado cumprir com as suas obrigações. Isso
em principio.


CC: E onde começa o problema?

MLF: O
problema começa quando nós começamos a auditar a dívida e não
encontramos contrapartida real. Que dívida é essa que não para de
crescer e que leva quase a metade do Orçamento? Qual é a contrapartida
dessa dívida? Onde é aplicado esse dinheiro? E esse é o problema. Depois
de várias investigações, no Brasil, tanto em âmbito federal, como
estadual e municipal, em vários países latino-americanos e agora em
países europeus, nós determinamos que existe um sistema da dívida. O que
é isso? É a utilização desse instrumento, que deveria ser para
complementar os recursos em benefício de todos, como o veículo para
desviar recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Esse é o
esquema que identificamos onde quer que a gente investigue.


CC: E quem, normalmente, são os beneficiados por esse
esquema? Em 2014, por exemplo, os juros da dívida subiram de 251,1
bilhões de reais para 334,6 bilhões de reais no Brasil. Para onde está
indo esse dinheiro de fato?

MLF: Nós sabemos quem
compra esses títulos da dívida porque essa compra direta é feita por
meio dos leilões. O processo é o seguinte: o Tesouro Nacional lança os
títulos da dívida pública e o Banco Central vende. Como o Banco Central
vende? Ele anuncia um leilão e só podem participar desse leilão 12
instituições credenciadas. São os chamados dealers. A lista dos dealers nós
temos. São os maiores bancos do mundo. De seis em seis meses, às vezes,
essa lista muda. Mas sempre os maiores estão lá: Citibank, Itaú,
HSBC...é por isso que a gente fala que, hoje em dia, falar em dívida
externa e interna não faz nem mais sentido. Os bancos estrangeiros estão
aí comprando diretamente da boca do caixa. Nós sabemos quem compra e,
muito provavelmente, eles são os credores porque não tem nenhuma
aplicação do mundo que pague mais do que os títulos da dívida
brasileira. É a aplicação mais rentável do mundo. E só eles compram
diretamente. Então, muito provavelmente, eles são os credores.


CC: Por quê provavelmente?


MLF: Por que nem mesmo na CPI da Dívida Pública,
entre 2009 e 2010, e olha que a CPI tem poder de intimação judicial, o
Banco Central informou quem são os detentores da dívida brasileira. Eles
chegaram a responder que não sabiam porque esses títulos são vendidos
nos leilões. O que a gente sabe que é mentira. Porque, se eles não sabem
quem são os detentores dos títulos, para quem eles estão pagando os
juros? Claro que eles sabem. Se você tem uma dívida e não sabe quem é o
credor, para quem você vai pagar? Em outro momento chegaram a falar que
essa informação era sigilosa. Seria uma questão de sigilo bancário. O
que é uma mentira também. A dívida é pública, a sociedade é que está
pagando. O salário do servidor público não está na internet? Por que os
detentores da dívida não estão? Nós temos que criar uma campanha
nacional para saber quem é que está levando vantagem em cima do Brasil e
provocando tudo isso.


CC: Qual é a relação entre os juros da dívida pública e o ajuste fiscal, em curso hoje no Brasil?


MLF: Todo mundo fala no corte, no ajuste, na austeridade e
tal. Desde o Plano Real, o Brasil produz superávit primário todo ano.
Tem ano que produz mais alto, tem ano que produz mais baixo. Mas todo
ano tem superávit primário. O que quer dizer isso, superávit primário?
Que os gastos primários estão abaixo das receitas primárias. Gasto
primários são todos os gastos, com exceção da dívida. É o que o Brasil
gasta: saúde, educação...exceto juros. Tudo isso são gastos primários.
Se você olhar a receita, o que alimenta o orçamento? Basicamente a
receita de tributos. Então superávit primário significa que o que nós
estamos arrecadando com tributos está acima do que estamos gastando,
estão está sobrando uma parte.


CC: E esse dinheiro que sobra é para pagar os juros dívida pública?

MLF:
Isso, e essa parte do superávit paga uma pequena parte dos juros
porque, no Brasil, nós estamos emitindo nova dívida para pagar grande
parte dos juros. Isso é escândalo, é inconstitucional. Nossa
Constituição proíbe o que se chama de anatocismo. Quando você contrata
dívida para pagar juros, o que você está fazendo? Você está
transformando juros em uma nova divida sobre a qual vai incidir juros. É
o tal de juros sobre juros. Isso cria uma bola de neve que gera uma
despesa em uma escala exponencial, sem contrapartida, e o Estado não
pode fazer isso. Quando nós investigamos qual é a contrapartida da
dívida interna, percebemos que é uma dívida de juros sobre juros. A
divida brasileira assumiu um ciclo automático. Ela tem vida própria e se
retroalimenta. Quando isso acontece, aquele juros vai virar capital.
 E, sobre aquele capital, vai incidir novos juros. E os juros seguintes,
de novo vão se transformados em capital. É, por isso, que quando você
olha a curva da dívida pública, a reta resultante é exponencial. Está
crescendo e está quase na vertical. O problema é que vai explodir a
qualquer momento.


CC: Explodir por quê?


MLF: Por que o mercado – quando eu falo em mercado, estou me referindo aos dealers
– está aceitando novos títulos da dívida como pagamento em vez de
receber dinheiro moeda? Eles não querem receber dinheiro moeda, eles
querem novos títulos, por dois motivos. Por um lado, o mercado sabe que o
juros vão virar novo título e ele vai ter um volume cada vez maior de
dívidas para receber. Segundo: dívida elevada tem justificado um
continuo processo de privatização. Como tem sido esse processo? Entrega
de patrimônio cada vez mais estratégico, cada vez mais lucrativo. Nós
vimos há pouco tempo a privatização de aeroportos. Não é pouca coisa os
aeroportos de Brasília, de São Paulo e do Rio de Janeiro estarem em mãos
privadas. O que no fundo esse poder econômico mundial deseja é
patrimônio e controle. A estratégia do sistema da dívida é a seguinte:
você cria uma dívida e essa dívida torna o pais submisso. O país vai
entregar patrimônio atrás de patrimônio. Assim nós já perdemos as
telefônicas, as empresas de energia elétrica, as hidrelétricas, as
siderúrgicas. Tudo isso passou para propriedade desse grande poder
econômico mundial. E como é que eles [dealers] conseguem esse
poder todo? Aí entra o financiamento privado de campanha. É só você
entrar no site do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e dar uma olhada em
quem financiou a campanha desses caras. Ou foi grande empresa ou foi
banco. O nosso ataque em relação à dívida é porque a dívida é o ponto
central, é a espinha dorsal do esquema.


CC: Como funcionaria a auditoria da dívida na prática? Como diferenciar o que é dívida legítima e o que não é?


MLF: A auditoria é para identificar o esquema de geração de
dívida sem contrapartida. Por exemplo, só deveria ser paga aquela dívida
que preenche o requisito da definição de dívida. O que é uma dívida? Se
eu disser para você: ‘Me paga os 100 reais que você me deve’. Você vai
falar: “Que dia você me entregou esses 100 reais?’ Só existe dívida se
há uma entrega. Aconteceu isso aqui na Grécia. Mecanismos financeiros,
coisas que não tinham nada ver com dívida, tudo foi empurrado para as
estatísticas da dívida. Tudo quanto é derivativo, tudo quanto é garantia
do Estado, os tais CDS [Credit Default Swap - espécie de seguro contra
calotes], essa parafernália toda desse mundo capitalista
'financeirizado'. Tudo isso, de uma hora para outra, pode virar dívida
pública. O que é a auditoria? É desmascarar o esquema. É mostrar o que
realmente é dívida e o que é essa farra do mercado financeiro,
utilizando um instrumento de endividamento público para desviar recursos
e submeter o País ao poder financeiro, impedindo o desenvolvimento
socioeconômico equilibrado. Junto com esses bancos estão as
grandes corporações e eles não têm escrúpulos. Nós temos que dar um
basta nessa situação. E esse basta virá da cidadania. Esse basta não
virá da classe politica porque eles são financiados por esse setor. Da
elite, muito menos porque eles estão usufruindo desse mecanismo. A
solução só virá a partir de uma consciência generalizada da sociedade,
da maioria. É a maioria, os 99%, que está pagando essa conta. O Armínio
Fraga [ex-presidente do Banco Central] disse isso em depoimento na CPI
[Comissão Parlamentar de Inquérito] da Dívida, em 2009, quando
perguntado sobre a influência das decisões do Banco Central na vida do
povo. Ele respondeu: “Olha, o Brasil foi desenhado para isso”. 



CC: Quanto aproximadamente da dívida pública está na mão
dos bancos e de grandes empresas? O Tesouro Direto, que todos os
brasileiros podem ter acesso, corresponde a que parcela do montante?


MLF:
Essa história do Tesouro Direto é para criar a impressão que a dívida
pública é um negócio correto, que qualquer um pode entrar lá e comprar.
E, realmente, se eu ou você comprarmos é uma parte legítima. Agora, se a
gente entrar lá e comprar, não é direto. É só para criar essa ilusão.
Tenta entrar lá para comprar um título que seja. Você vai chegar numa
tela em que vai ter que escolher uma instituição financeira. E essa
instituição financeira vai te cobrar uma comissão que não é barata. Ela
não vai te pagar o juros todo do título, ela vai ficar com um pedaço. O
banco, o dealer, que compra o título da dívida é quem
estabelece os juros. Ele estabelece os juros que ele quer porque o
governo lança o título e faz uma proposta de juros. Se, na hora do
leilão, o dealer não está contente com aquele patamar de juros,
ele não compra. Ele só compra quando o juros chega no patamar que ele
quer. Invariavelmente, os títulos vêm sendo vendidos muito acima da
Selic [taxa básica de juros]. Em 2012, quando a Selic deu uma abaixada e
chegou a 7,25%, nós estávamos acompanhando e os títulos estavam sendo
vendidos a mais de 10% de juros. E eles sempre compram com deságio. Se o
título vale 1000 reais, ele compra por 960 reais ou 970 reais, depende
da pressão que ele quer impor no governo aquele dia. Olha a diferença.
Se você compra no Tesouro Direto, você não vai ter desconto. Pelo
contrário, você vai ter que pagar uma comissão. E você também não vai mandar nos juros. É uma operação totalmente distinta da operação direta de verdade que acontece lá no leilão.


CC: Por que é tão difícil colocar a auditoria em prática? Como o mercado financeiro costuma reagir a uma auditoria?


MLF: O mercado late muito, mas na hora ele é covarde. Lá no
Equador, quando estávamos na reta final e vários relatórios preliminares
já tinham sido divulgados, eles sabiam que tínhamos descoberto o
mecanismo de geração de dívida, várias fraudes. Eles fizeram uma
proposta para o governo de renegociação. Só que o Rafael Correa [atual
presidente do Equador] não queria negociar. Ele queria recomprar e botar
um ponto final. Porque quando você negocia, você dá uma vida nova para a
dívida. Você dá uma repaginada na dívida. Ele não queria isso. Ele
queria que o governo dele fosse um governo que marcasse a história do
Equador. Ele sabia que, se aceitasse, ficaria subjugado à dívida. Ele
foi até o fim, fez uma proposta e o que os bancos fizeram? 95% dos
detentores dos títulos entregaram. Aceitaram a oferta de recompra de no
máximo 30% e o Equador eliminou 70% de sua dívida externa em títulos. No
Brasil, durante os dez meses da CPI da Dívida, a Selic não subiu. Foi
incrível esse movimento. Nós estamos diante de um monstro mundial que
controla o poder financeiro e o poder político com esquemas
fraudulentos. É muito grave isso. Eu diria que é um mega esquema de
corrupção institucionalizado.


CC: O mercado financeiro e parte da imprensa costumam
classificar a auditoria da dívida de calote. Por que a auditoria da
dívida não é calote?



MLF: A auditoria vai investigar e não tem poder de decisão do
que vai ser feito. A auditoria só vai mostrar. No Equador, a auditoria
só investigou e mostrou as fraudes, mecanismos que não eram dívidas,
renúncias à prescrição de dívidas. O que é isso? É um ato nulo. Dívidas
que já estavam prescritas. Uma dívida prescrita é morta. E isso
aconteceu no Brasil também na época do Plano Brady, que transformou
dívidas vencidas em títulos da dívida externa. Depois, esses títulos da
dívida externa foram usados para comprar nossas empresas que foram
privatizadas na década de 1990: Vale, Usiminas...tudo comprado com
título da dívida em grande parte. Você está vendo como recicla? Aqui, na
Grécia, o país está sendo pressionado para pagar uma dívida ilegítima. E
qual foi a renegociação feita pelo [Geórgios] Papandréu
[ex-primeiro-ministro da Grécia]? Ele conseguiu um adiamento em troca de
um processo de privatização de 50 bilhões de euros. Esse é o esquema. Deixar de pagar esse tipo de dívida é calote? A
gente mostra, simplesmente, a parte da dívida que não existe, que é
nula, que é fraude. No dia em que a gente conseguir uma compreensão
maior do que é uma auditoria da dívida e a fragilidade que lado está do
lado de lá, a gente muda o mundo e o curso da história mundial.


CC: Em comparação com o ajuste fiscal, que vai cortar 70
bilhões de reais de gastos, tem alguma estimativa de quanto a auditoria
da dívida pública poderia economizar de despesas para o Brasil?


MLF:
Essa estimativa é difícil de ser feita antes da auditoria, porém, pelo
que já investigamos em termos de origem da dívida brasileira e desse
impacto de juros sobre juros, você chega a estimativas assustadoras.
Essa questão de juros sobre juros eu abordei no meu último livro. Nos
últimos anos, metade do crescimento da divida é nulo. Eu só tive
condição de fazer o cálculo de maneira aritmética. Ficou faltando fazer
os cálculos de 1995 a 2005 porque o Banco Central não nos deu os dados. E
mesmo assim, você chega a 50% de nulidade da dívida, metade dela.
Consequentemente para os juros seria o mesmo [montante]. Essa foi a
grande jogada do mercado financeiro no Plano Real porque eles
conseguiram gerar uma dívida maluca. No início do Plano Real os juros
brasileiros chegaram a mais de 40% ao ano. Imagina uma divida com juros
de 40% ao ano? Você faz ela crescer quase 50% de um ano para o outro. E
temos que considerar que esses juros são mensais. O juro mensal, no mês
seguinte, o capital já corrige sobre o capital corrigido no mês
anterior. Você inicia um processo exponencial que não tem limite, como
aconteceu na explosão da dívida a partir do Plano Real. Quando o Plano
Real começou, nossa dívida estava em quase 80 bilhões de reais. Hoje ela
está em mais de três trilhões de reais. Mais de 90% da divida é de
juros sobre juros.


CC: E isso é algo que seria considerado ilegal na auditoria da dívida pública?


MLF: É mais do que ilegal, é inconstitucional. Nossa
Constituição proíbe juros sobre juros para o setor público. Tem uma
súmula do Supremo Tribunal Federal, súmula 121, que diz que ainda que
tenha se estabelecido em contrato, não pode. É inconstitucional. Tudo
isso é porque tem muita gente envolvida, favorecida e mal informada.
Esses tabus, essa questão do calote, muita gente fala isso. Eles tentam
desqualificar. Falamos em auditoria e eles falam em calote. Mas estou
falando em investigar. Se você não tem o que temer, vamos abrir os
livros. Vamos mostrar tudo. Se a dívida é tão honrada, vamos olhar a
origem dessa dívida, a contrapartida dela.


CC: Ao longo da entrevista, a senhora citou diversos
momentos da história recente do Brasil, o que mostra que esse problema
vem desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e passou pelas gestões
Lula e Dilma. Mas como a questão da dívida se agravou nos últimos anos? A
dívida externa dos anos 1990 se transformou nessa dívida interna de
hoje?



MLF: Houve essa transformação várias vezes na nossa história.
Esses movimentos foram feitos de acordo com o interesse do mercado.
Tanto de interna para externa, como de externa para interna, de acordo
com o valor do dólar. Esses movimentos são feitos pelo Banco Central do
Brasil em favor do mercado financeiro, invariavelmente. Quando o dólar
está baixo, e seria interessante o Brasil quitar a dívida externa, por
precisar de menos reais, se faz o contrário. Ele contrai mais dívida em
dólar. Esses movimentos são sempre feitos contra nós e a favor do
mercado financeiro.


CC: E o pagamento da dívida externa, em 2005?


MLF: O que a gente critica no governo Lula é
que, para pagar a dívida externa em 2005, na época de 15 bilhões de
dólares, ele emitiu reais. Ele emitiu dívida interna em reais. A dívida
com o FMI [Fundo Monetário Internacional] era 4% ao ano de juros. A
dívida interna que foi emitida na época estava em média 19,13% de juros
ao ano. Houve uma troca de uma dívida de 4% ao ano para uma de 19% ao
ano. Foi uma operação que provocou danos financeiros ao País. E a nossa
dívida externa com o FMI não era uma dívida elevada, correspondia a
menos de 2% da dívida total. E por que ele pagou uma dívida externa para
o FMI que tinha juros baixo? Porque, no inconsciente coletivo, divida
externa é com o FMI. Todo mundo acha que o FMI é o grande credor. Isso,
realmente, gerou um ganho político para o Lula e uma tranquilidade para o
mercado. Quantos debates a gente chama sobre a dívida e as pessoas
falam: “Esse debate já não está resolvido? Já não pagamos a dívida
toda?’. Não são poucas as pessoas que falam isso por conta dessa
propaganda feita de que o Lula resolveu o problema da dívida. E o
mercado ajuda a criar essas coisas. Eu falo o mercado porque, na época,
eles também exigiram que a Argentina pagasse o FMI. E eles também
pagaram de forma antecipada. Você vê as coisas aconteceram em vários
lugares, de forma simultânea. Tudo bem armado, de fora para dentro, na
mesma época.



CC: O que a experiência grega de auditoria da dívida poderia ensinar ao Brasil, na sua opinião?


MLF: São muitas lições. A primeira é a que ponto pode chegar
esse plano de austeridade fiscal. Os casos aqui da Grécia são
alarmantes. Em termos de desemprego, mais de 100 mil jovens formados
deixaram o país nos últimos anos porque não têm emprego. Foram para o
Canadá, Alemanha, vários outros países. A queda salarial, em média, é de
50%. E quem está trabalhando está feliz porque normalmente não tem
emprego. Jornalista, por exemplo, não tem emprego. Tem até um jornalista
que está colaborando com a nossa comissão e disse que só não está
passando fome por conta da ajuda da família. A maioria dos empregos
foram flexibilizados, as pessoas não têm direitos. Serviços de saúde
fechados, escolas fechadas, não tem vacina em posto de saúde. Uma
calamidade terrível. Trabalhadores virando mendigos de um dia para o
outro. Tem ruas aqui em que todas as lojas estão fechadas. Todos esses
pequenos comerciantes ou se tornaram dependentes da família ou foram
para a rua ou, pior, se suicidaram. O número de suicídios aqui,
reconhecidamente por esse problema econômico, passa de 5 mil. Tem vários
casos de suicídio em praça pública para denunciar. Nesses dias em que
estou aqui, houve uma homenagem em frente ao Parlamento para um homem
que se suicidou e deixou uma carta na qual dizia que estava entregando a
vida para que esse plano de austeridade fosse denunciado.

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