O bolsominion é tão burro e otário que acredita na própria mentira
Sem coerência e sem neurônios, a extrema direita esquece o que disse e o que fez
Marcelo Coelho
Está ainda para ser escrito um estudo sobre o
papel da burrice na política brasileira. Comentaristas e historiadores
sempre supõem que um homem de Estado se move por estratégia e cálculo.
Os melhores instrumentos de análise podem se quebrar, entretanto, quando confrontados com os atos de um verdadeiro energúmeno.
O presidente Bolsonaro nem precisaria ter feito aquele discurso. Só a foto dele, com todos os ministros enfileirados, já vale por um atestado clínico.
Qual o sentido de chamar todo o gabinete para ouvir, com cara de
pastel, aquelas explicações sobre a demissão de Moro? Só se reconhecia,
com isso, o tamanho da crise.
O presidente juntou Damares, Weintraub, Araújo, Mourão, Guedes e
companhia, como se estivesse anunciando um grande plano para o Brasil. O
que apresentou foi um discurso disperso, patético, mentiroso e oco, incapaz de responder à única pergunta que importava no momento.
Por que trocar o chefe da Polícia Federal?
Pela versão de Bolsonaro, tratava-se apenas de atender a um pedido do
próprio demitido. E, confessadamente, de pôr alguém na Polícia Federal
com quem ele pudesse se entender, sem interferências de Moro.
Reduzido ao seu ponto básico, o discurso de Bolsonaro é um escândalo.
Mas o presidente é tão falto de inteligência que nem mesmo percebe o que está dizendo.
Há burrices e burrices. Uma das que predominam, hoje em dia, talvez seja efeito do Facebook e das geringonças digitais.
As imagens, as piadinhas e memes se sucedem com tanta rapidez, que o sujeito perde a memória.
Presidentes como Trump ou Bolsonaro escrevem qualquer coisa no Twitter, e no dia seguinte já não se lembram mais.
Abre o comércio, fecha o STF, usa a máscara, tira a máscara, tanto
faz. As falas de Bolsonaro se sucedem como disparos num estande de tiro
esportivo.
Pá, pá, pá. Aí o instrutor pega aquele cartaz com uma silhueta humana
para ver quantas balas chegaram ao alvo. Nosso herói nem mesmo se
interessa pela pontuação que obteve. “Acertei tudo, claro, está OK?”
No “está OK?” se esconde uma insegurança. Mas a insegurança não se
confunde com autocrítica. Estimula, apenas, uma nova rodada de disparos.
Junto com a falta de memória, surge a incapacidade de distinguir
entre o anedótico e o essencial. O discurso do presidente sobre a
demissão de Moro se perdeu, como é notório, em considerações sobre o
aquecimento da piscina, os feitos do “número quatro”, a certidão de
nascimento da sogra.
É claro, aquilo fazia sentido em sua argumentação —ele queria dizer
que foi investigado com base em suposições infundadas. Um advogado
talentoso organizaria o discurso nesse rumo, como quem demonstra um
teorema.
Bolsonaro é incapaz disso; vai pulando de fato em fato, de caso em
caso, de anedota em anedota, como quem clica nas histórias do Instagram
ou vagueia num game tipo “GTA”.
É esse o comportamento mental do bolsominion típico.
Primeiro, ignora o sentido mais amplo de um fenômeno para se aferrar a um detalhe de fácil compreensão.
Aparece um livro sobre educação sexual,
por exemplo. O bolsominion não leu, mas fica sabendo que ali tem uma
ilustração meio estranha. Será o pretexto para gritar, espernear,
denunciar o diabo a quatro.
Mas ninguém vive sem entender as coisas num contexto. Depois de tirar
um fato de seu contexto, o bolsominion terá de achar outro.
Aí entra o papel de alguma grande conspiração internacional, que de tão “evidente” não tem como ser contestada.
Se alguém contestar, entra a terceira fase do processo. Trata-se de
rotular o inimigo: comunista, petralha etc. Os nazistas preferiam falar
em judeus. O tiro sempre “acerta”, porque o atirador é completamente
míope e confunde tudo.
Segue-se a fase autocongratulatória. Moro abandona o barco? Não faz
mal. Ele era falso; e nós estamos lutando “o bom combate”, como diz
Bolsonaro.
Se, apesar de tudo, vier o desmentido, o desastre, o vexame, nenhum
problema. Basta se esquecer do que foi dito e do que foi feito.
“Torturador? Eu?” Como assim?
Os próprios eleitores de Bolsonaro já se esquecem que votaram nele. “Bolsonarista? Eu? Votei no Amoêdo.”
O bolsominion mente. Mas não tem a inteligência do mentiroso comum. É
tão burro que acredita na própria mentira; é otário até quando se
arrepende.
Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances
“Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.
Presença das Forças Armadas junto aos Bolsonaro faz mal à instituição
Militares precisam fazer um exame honesto e profundo de sua relação com o país
Janio de Freitas
Há um ano e 19 dias, o general e já vice-presidente Hamilton Mourão fazia um comentário muito significativo em dois pontos: “Se o governo falhar, a conta irá para as Forças Armadas”.
Aí estava implícito o reconhecimento da índole militarizante, um
retorno sem armas ostensivas, sob o rótulo de governo Bolsonaro, o
Cavalão de Troia. E ali estava explicitado, no destinatário da possível
conta, quem teria a responsabilidade, de fato, pelo que seria o novo
governo.
Justifica-se então a pergunta: o que mais, e mais grave, ainda
precisará ocorrer para que os representantes das Forças Armadas no
governo as desvinculem, afinal, da responsabilidade pela catástrofe
moral e governamental que arrasa este país?
A presença desses representantes junto aos Bolsonaro,
sua trupe e suas relações cavernosas faz mal às Forças Armadas como
instituição, deforma-as outra vez e as desmoraliza. E faz mal ao país
com a aceitação e o apoio, aparentes faces de concordância, aos
desvarios, ligações milicianas,
mentiras, fraudes, traições, incidentes internacionais, destruição de
recursos nacionais, incentivos à violência generalizada, medidas
antissociais, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade
pelos quais Bolsonaro deveria responder. De preferência com algemas,
porque é perigoso.
Os militares precisam fazer um exame honesto e profundo de sua
relação com o país. Sem isso, sua caracterização militar será sempre um
rascunho e sua autoimagem sempre ilusória.
Por décadas, foi este o bordão dos militares em sua claudicante
responsabilidade institucional: “Os militares estão unidos e coesos, e
alheios à política”. Mas estiveram sempre divididos. Por motivos
políticos. O bordão no pós-ditadura, hoje em dia muito repetido, diz que
“os militares têm disciplina e hierarquia”, uma comparação
desqualificante do mundo civil. Quanto aos civis brasileiros, nada a
retocar. Mas, historicamente, nenhum outro segmento feriu tanto a
disciplina, e com tamanha gravidade, quanto os militares.
Com escassos e pequenos intervalos, desde a articulação para derrubar a monarquia
sucederam-se as conspirações, tentativas de golpe, os golpes
consumados, duas ditaduras, sem que a presença civil lhes mudasse a
natureza, de imposição pelas armas. Não é uma história paralela. É a
própria, a verdadeira, com seu roteiro de hostilidades, esperanças e
frustrações, sobre o chão infértil para o civismo.
O mesmo general e vice Hamilton Mourão foi o primeiro (e único,
quando escrevo) dos militares do governo a expor um comentário sobre as
acusações (iniciais) de Sergio Moro a Bolsonaro: “Perder Moro não é bom, mas vida que segue”. Segue para onde?
Nem é preciso mencionar outras atitudes de Bolsonaro: basta a designação do delegado Alexandre Ramagem para dirigir a Polícia Federal. É a confirmação do propósito de Bolsonaro de controlar o que deveria ser a investigação de crimes políticos
orientada pelo Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro não retém nem o
cinismo, este verniz da sua falta de escrúpulos, na escolha de notório
aliado dos seus filhos postos sob inquéritos criminais.
Também esse crime de responsabilidade, esse banditismo intrometido
nas instituições constitucionais, “segue” aceito, e portanto apoiado,
pelos que no governo se confundem com as Forças Armadas? O cerceamento à
ação do Supremo significa o fim do regime de Constituição Democrática.
Não é preciso imaginar o que, afinal, levaria à desvinculação das Forças Armadas com a versão brasileira de Idi Amim Dada. Já chegamos ao máximo. Que, no entanto, segue.
Nem Bolsonaro nem Moro são dignos dos cargos que ocupam
Fernando Haddad
As acusações mútuas que se fizeram Moro e Bolsonaro
são gravíssimas. Moro acusou o chefe de querer interferir politicamente
nas investigações da PF. Bolsonaro acusou seu ministro de concordar com
a troca do diretor-geral apenas depois de ele, Moro, ser indicado para
uma vaga no STF. Como se vê, tudo muito "republicano".
Chama a atenção, entretanto, aquilo que eles admitiram de si mesmos.
Moro negociou sua ida para o ministério em troca de uma pensão para a
família caso viesse a faltar. O homem que ganhou salário de juiz por
mais de vinte anos, não raro acima do teto constitucional, negociou uma
pensão não prevista em lei. Quem pagaria? Como foi acertado esse
arranjo? E os demais brasileiros que arriscam a vida diariamente?
Bolsonaro, por sua vez, disse que, de fato, queria nomear um
diretor-geral com quem ele pudesse interagir diretamente. Assumiu também
que determinou a substituição do superintendente da PF no Rio de
Janeiro, cidade em que atos suspeitos de seus filhos estão sendo
investigados.
Em 2007, a PF deflagrou uma operação que tinha como alvo o
irmão do presidente Lula, conhecido por Vavá. Tarso Genro, então
ministro da Justiça, informou o presidente 11 horas antes da operação.
Segundo relato do ministro, Lula teria dito que, se a operação
respeitasse as formalidades legais, nada teria a dizer.
A operação ocorreu com estardalhaço, sem que o irmão tivesse
conhecimento. Mais tarde, Vavá teria perguntado a Lula se ele tinha sido
informado previamente da operação, ao que ele respondeu: "Quem foi
informado foi o presidente da República, não seu irmão". Vavá faleceu
sem que nada se provasse contra ele. Lula foi impedido de ir ao seu
enterro.
Bolsonaro jamais entenderá a autonomia da PF, reclamada por Moro. Mas
o próprio Moro, bem entendido, tampouco se preocupa em preservá-la. A
troca de favores que teria sugerido ao presidente lembra mais uma
disputa por poder do que uma visão de Estado. Uma vez no STF, a
autonomia da PF não seria mais da sua conta.
Novamente, Moro deixou escapar a admiração aos governos do PT nessa
seara. Já na absurda sentença condenatória que tirou Lula da disputa
presidencial que liderava, pavimentando a vitória daquele a quem
serviria, ele declara que Lula foi o presidente que, como poucos,
fortaleceu as instituições de combate à corrupção. Ontem, repetiu-se: os
governos do PT garantiram a autonomia da PF, sem o que a Lava Jato não
se realizaria.
O que Moro demora a conceder é que quem deu autonomia à PF o fez
porque nada temia, e nem imaginava que instituições da República se
deixassem instrumentalizar contra quem as fortaleceu.
Nem Bolsonaro nem Moro são dignos dos cargos que ocupam. Fora.
Fernando Haddad
Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.
O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que
desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'
Mario Sergio Conti
A peste pegou em cheio a linguagem pública e a
particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a
realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro
paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém
a mudez dos dominados.
A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade
clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar
para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio
César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou
ditador.
Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e
o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas
barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los.
Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.
Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da
indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas
sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de
peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.
Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi
cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na
republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.
A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor
na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo
Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o
chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.
Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis.
Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss
Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que
tem a caneta.
Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.
Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano
Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos
europeus que venceram o nazismo.
Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.
O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em
reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a
US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em
pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?
A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão,
corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica,
uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma
fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”.
Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico
que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.
Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda,
se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os
nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem
demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na
verdade o inferno.
As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a
eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os
outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da
vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua
solidão infinita.
Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a
existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável
de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a
liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.
Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida
Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos
seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da
lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São
fascistas.
Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e
não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes,
ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de
destruir e dominar.
Não é mais possível fazer vista grossa à violência perversa de Bolsonaro
Em contabilidade sinistra, presidente se opõe à ciência e minimiza perigo de coronavírus
Jorge Coli
Churchill teria dito uma frase assim: “Ele é tão
cretino que até a turma dele acabou percebendo”. Cai como uma luva para a
atual situação de Bolsonaro, cada vez mais isolado no poder.
Porém, Bolsonaro não se caracteriza apenas por ser cretino. Além de
pascácio, seu universo mental é pervertido. Bolsonaro tem as
características dos piores ineptos: aqueles que são desumanos. A tal
ponto que alguns políticos reles, pelo contraste, estão parecendo nem
tão indecentes assim!
Começaremos em breve, no Brasil, a contar para além de 2.000 os mortos por coronavírus. Sabemos que esses números são inferiores à quantidade real de vítimas e não passam de indicadores: falta de testes;
autópsias não podem ser feitas por risco de contaminação; hospitais não
comunicam, ou não conseguem identificar, todas as causas mortis; entre
outras razões.
Sem contar que, por esse Brasil afora, em lugares perdidos ou
desfavorecidos, quantos não morreram e vão morrer sem que se saiba a
causa. Portanto, o número de vítimas é alto, mais alto ainda do que dizem os indicadores tenebrosos.
Muitas dessas mortes foram causadas pelas afirmações absurdas,
contrárias a tudo o que a ciência diz, e que Bolsonaro insistiu em
proclamar, em divulgar até mesmo oficialmente, por meio de cadeia
nacional, minimizando, em nome da economia, o perigo que o contágio
representa. Gripezinha, resfriadinho que não o abateria, um super-homem com passado de atleta
(quando tantos verdadeiros atletas pelo mundo, e jovens, já se foram,
vitimados pela Covid-19), exibindo falsas flexões em vídeo. E que não
causaria danos à grande maioria das pessoas.
“Vai morrer gente, vai”,
ele disse, mas apenas os velhos, os fracotes, gente que não conta para a
produtividade do país. Sua sinistra contabilidade define quem tem ou
não direito à vida.
Estou nesta triste lista, eu, com 72 anos, dentro do grupo de risco,
como tantos outros frágeis e idosos, prontos para o forno crematório.
Viva o país dos “young and healthy”!
“Não mata mais do que o surto da H1N1 no ano passado”,
ele disse. Mal começou a epidemia do coronavírus entre nós e já
ultrapassamos de bastante a soma dos mortos causados pela gripe de 2019.
Não importa. A anta maligna continuou saindo às ruas, reunindo pessoas em volta dele e proclamando, todo orgulhoso: “Eu tenho direito constitucional de ir e vir. Ninguém vai tolher minha liberdade de ir e vir”.
Por causa dele, tanta gente deixou o cuidado elementar contra o vírus,
seja porque cansou de ficar em casa, seja escudado pelo moralismo da
produtividade, do “vou trabalhar porque não sou preguiçoso”.
Bolsonaro é culpado pelos mortos que desrespeitaram o confinamento pois foram encorajados por ele. É um genocida.
A violência perversa que se instalou desde o início de seu governo, com devastação de florestas,
desmonte da educação e da pesquisa científica, abandono das populações
indígenas aos predadores, e tantos outros crimes, podia passar
despercebida a quem fazia vista grossa: tudo isso era longe, abstrato, e
o importante mesmo era salvar a economia. Agora, com a peste na porta
de cada um, não é mais possível deixar de ver que o pesadelo longínquo
se tornou, de fato, realidade.
Mas, calma aí, Bolsonaro não é tão culpado assim. Há pior do que ele.
Piores são os eleitores que o puseram lá, no alto do poleiro. Cada um
que votou em Bolsonaro é cúmplice das mortes que ele está provocando.
Cúmplices de genocídio e de assassinato.
E não é possível dizer: “Eu não sabia”. Não sabia, com a campanha
baseada na celebração das armas, na vontade de metralhar os inimigos
políticos? Campanha alimentada pela pulsão de morte? Como não sabia,
cara pálida?
Você votou em Bolsonaro levado por ódio irracional, que o impediu de
ver a abominação evidente. Que o fez isentar as manifestações de
machismo, de racismo, de desprezos preconceituosos vomitados sem
vergonha. Que levou você a acreditar nas manipulações oportunistas de
uma justiça a serviço de fins eleitoreiros, perfeitamente bem-sucedidas,
a ponto de porem o juiz responsável na poltrona de ministro. Seu ódio
deixou você cego. Votos não poderiam ser conduzidos por ódios ou por
amores.
Não creio que a mula sem cabeça tenha algum remorso, diante das
mortes que aumentam. Mas é impossível que a decência tenha abandonado
todos os seus eleitores.
Para estes, é hora de assumir a responsabilidade por todos os
horrores desumanos causados pelo presidente. E de aprender a lição que,
por infelicidade, tem custo tão alto.
Jorge Coli
Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.
do Blog do Zé Beto
Procriai-vos e multiplicai-vos. Essa é a ordem. Para ser mais
preciso, apenas multipliquem-se. Esse comando não vem da bíblia.
Encontra-se escrito no código mais fundamental da vida, nas fitas
espiraladas de DNA ou RNA. Façam uma cópia das instruções aqui escritas
para que estas outras prossigam, pelo tempo que for possível,
copiando-se e espalhando a palavra formada por apenas algumas
combinações aleatórias de Adenina, Citosina, Guanina e Tiamina – A, C,
G, T.
O mesmo mecanismo que torna o vírus Sars-CoV 19 – causador da
Covid-19 – o protagonista da pandemia que trancou o mundo em casa, está
presente em todas as células do ser humano e de outros seres vivos.
Querem apenas perpetuar a espécie através da cópia de si mesmo. O vírus
representa a visão minimalista da vida. De fato, muitos nem o consideram
vivo. A simplicidade extrema destes elementos se resume a uma cápsula
de gordura que protege, em seu interior, uma fita de RNA ou, em alguns
casos, DNA. Sem qualquer outra estrutura acessória, encontradas em
células, o vírus é incapaz de se reproduzir sozinho. Mas em seu
interior, num texto primordial escrito em sequências de A, C, G e T, há
uma instrução clara: copie-me e espalhe a minha palavra. Dessa forma, o
vírus aguarda o contato com uma célula compatível, que o receba de
braços abertos graças à geometria da cápsula envolvente que, como uma
chave em uma fechadura, consegue se acoplar e introduzir a fita de RNA
para dentro do anfitrião. A célula, que pode ser apenas uma bactéria ou
uma entre trilhões no interior do homem, oferece toda a estrutura
necessária para a leitura da fita invasora de RNA e, conforme instruções
ali escritas, a replicação de mais RNAs e cápsulas para novos vírus,
utilizando as ferramentas existentes dentro de cada célula, para que se
multiplicam até explodir sua hospedeira, a célula anfitriã.
Richard Dawkins, proeminente estudioso da biologia evolutiva, lançou
em 1976 a formidável teoria de que todos nós somos apenas construções
maquinadas cujo propósito final é tão somente replicar nossos genes.
Desde a simplicidade do vírus até a complexa teia biológica, cultural e
social do Homo Sapiens, somos, em última análise, escravos das ordens
dadas por um conjunto sequencial de nucleotídeos que formam o DNA ou
RNA. O instinto natural de autopreservação ou procriação emanaria não de
um sentido metafísico que celebra a vida, mas de um capcioso artifício
para as espécies preservarem e espalharem seu genes pelo mundo conhecido
e além, através de técnicas aperfeiçoadas pelo processo da evolução.
Dawkins compartilhou essa visão nua e crua, mas de elegância e
simplicidade avassaladora, no livro ‘O Gene Egoísta’, onde cunhou o
termo Meme. Enquanto o Gene seria a unidade de informação biológica e
física a ser transmitida, o Meme seria a contraparte da unidade de
transmissão cultural, ou seja, tudo aquilo que está além do sistema
biológico e físico que a mente humana construiu e aperfeiçoou com o
tempo. A linguagem, a fé, a filosofia, por exemplo.
O que se constata em muitos máquinas dotadas de um gene egoísta é
que, assim como o vírus, em uma ambição cega por espalhar sua palavra
por toda parte, acaba por destruir aquilo que lhe sustenta. Na ânsia por
se reproduzir, o vírus mata seu hospedeiro e assim destrói seu próprio
propósito. O homem age de forma semelhante em relação ao ambiente em que
vive, apesar de ser, graças à evolução, muito mais sofisticado e capaz
de aferir os resultados em seu entorno, de modo a se adaptar e modificar
suas ações para evitar a destruição daquilo que lhe mantém. No final de
tudo, somos impelidos por uma força primal, um gene que nos impulsiona
em direção aos meios que repliquem a mensagem dele, como se houvesse um
desejo intrínseco à imortalidade. Mas, estranhamente, este mesmo ímpeto
carrega também à destruição e o fim.
O
neoliberalismo tem sido a grande vítima do coronavírus e, seus
desconsolados parentes, estão levando muito mal o luto. Eles se
perguntam perplexos como é possível que, estando na flor da vida, com
uma saúde de ferro forjado e com um futuro esplêndido de cortes e
reformas estruturais pela frente, tenha nos deixado assim, de repente,
sem sequer ter tido tempo de expor diante de um escrivão seus últimos
desejos. A vida é assim de dura: hoje doutrina econômica imbatível,
amanhã “estátua”. Os melhores sempre partem. Tanta paz leva, como
descanso deixa. Os seguidores do falecido estão muito abatidos porque
o mundo em que eles acreditavam veio abaixo. Agora que o Estado estava
encurralado e a única dúvida era saber o momento exato de sua rendição, o
Leviatã ressurgiu e começou a devorar dogmas e fazer aviãozinhos de
papel com a dívida e o déficit público, incentivados aliás por alguns
recém convertidos que se passaram para o lado inimigo sem derramar uma
única lágrima e recomendam agora gastar como se não houvesse amanhã. É o
fim dos dias, o do livre mercado, dos cinturões apertados, o dos
impostos baixos que fizeram tanto bem àqueles que ignoravam o que era
Saúde Pública, mesmo porque para remover um grãozinh no cólon, viajaram
para Houston em jato privado, e dessa austeridade redentora defendida
por aqueles que em uma hora ganhavam mais do que todos os seus
funcionários juntos em um mês. O primeiro sinal do Apocalipse, as
primeira trombetas, soou ao rítmo da “renda mínima vital” que o governo
[nota do tradutor: calma, calma gente, não se preocupem o governo aqui é
o espanhol] está se preparando para aprovar que os famintos ou, melhor
dizendo, aqueles que não têm onde cair morto, desfrutem de uma pequena
ração de sopão, dessas ingerida por alguns desempregados e pensionistas
que, pelo simples fato de terem contribuído por quarenta anos, acreditam
que tem o direito de continuar cobrando até se tornarem nonagentários
sem fazer nenhum esforço. Onde foi parar aquilo que "para contratar mais
deveria poder ser mais barato despedir"? O que foi feito do "trabalhar
mais por menos dinheiro"? Por que caiu no esquecimento tão rapidamente
aquelas estórias e lições de moral a respeito das terríveis
conseqüências "de se viver acima ou além de nossas possibilidades", que
tanto custou enculcar enquanto se refundava o capitalismo? Ninguém sabe
que em uma sociedade moderna, mesmo com luvas e máscaras, não há lugar
para tanta gente ociosa? Vendo que era impossível combater os
elementos porque a tempestade havia destruído severamente as velas da
embarcação, aqueles que ainda mantêm acesa a chama neoliberal como se
fosse uma tocha olímpica trataram de desqualificar a iniciativa pelo
único flanco em que viam possível arranhar o muro: a divisão no
Executivo sobre o momento de colocar em prática essa renda mínima. Assim
vendo os apoiadores em acelerar sua aprovação se impor, isto é, Pablo
Iglesias e os seus, ou, o que é o mesmo, os populistas bolivarianos,
concluíram que estávamos necessariamente diante de uma medida
totalitária e comunista que, para piorar, não se apóia em uma caridade
temporária, mas que aspira a institucionalizar-se como um direito. Assim
de perverso é esse tipo de comunismo. Desolados como estão por causa
da terrível perda, os neoliberais ainda mantêm alguma esperança na
ressurreição de seus pensamentos, se não no terceiro dia, talvez no
terceiro ano, mas a renda mínima os revolta. Como vamos reduzir impostos
no futuro se tivermos de apoiar a atual gangue de indigentes e todos
aqueles que se juntam a eles? E o que é mais grave ainda: quem se
atreveria a tirar o doce da boca da criança depois que ela já o levou à
boca, se não o próprio Aznar, com aquela juba sem um único cabelo
grisalho, [nota do tradutor: dispensa apresentações, no Brasil não
faltam Aznares e asnos ou, melho dito, o que é um Aznar para quem tem um
Bolsonaro]? Como tudo na vida tem seu inimigo e o comunismo é
altamente infeccioso, existem aqueles que acreditam que a renda mínima
não pode ser adiada, e que maio, como parece previsto no BOE [nota do
tradutor: Boletim Oficial do Estado Espanhol, equivalente ao nosso
Diário Oficial], ou na vida real em junho ou julho, fica muito longe
disso, porque as geladeiras não ficam cheias como arte de magia e
tendemos a ter o mau hábito de fazer uma refeição ao dia, mesmo esses
bon vivans contemplativos. E embora seja costume o Ministro Escrivá
descobrir na imprensa sobre certas coisas, um que teria que marcar a
fogo é que não há paciência que contenha cãibras no estômago. Este não é
mais um capítulo da emergência sanitária; é uma urgência vital que
sempre esteve presente, apesar de olharmos para o outro lado. É hora
de apoiar rapidamente o novo Estado de Bem-Estar Social, porque não é
sem sentido pensar que, quando a barra livre de gastos acabar, que
acontecerá mais cedo ou mais tarde, o neoliberalismo apartará a terra
que agora o cobre e fará como Lázaro procurando algo para colocar na sua
boca. Ele atacará sem piedade contra tudo o que não está
suficientemente cimentado, porque o dinheiro é o grande lobo mau da
história que derruba as casas de palha e madeira de todos os porquinhos
que sobrevivem de proteção oficial. Quando os defensores da anorexia do
Estado retornarem e este for o reino daqueles que branqueiam seus
capitais em paraísos fiscais, nos lamentaremos de tudo aquilo que
poderiamos ter feito e não fizemos. Mãos à obra o mais rápido possível.
[RESUMO]Ameaça representada pelo coronavírus mobiliza diversas áreas do conhecimento, da medicina à filosofia. O que dizem os filósofos contemporâneos? Há os que apostam numa mudança de paradigma
e há também os céticos, que apontam certo misticismo em prognósticos
sobre grandes transformações políticas e econômicas. Veja a seguir um
roteiro de navegação pelos debates filosóficos do momento, travados em
sites e publicações internacionais.
Desde que a epidemia do novo coronavírus
surgiu num horizonte então ainda distante, chamado Wuhan (China),
configurava-se uma ameaça potencial a vidas e modos de viver em todo o
planeta.
O assunto mobiliza cientistas envolvidos nas pesquisas relativas à
Covid-19 e estudiosos e pensadores de diversas áreas, como as chamadas
ciências humanas. Refletir sobre nossas sociedades e as maneiras pelas
quais enfrentamos e poderemos sair dessa inesperada crise também tem
ocupado os filósofos de nosso tempo.
A urgência do pensamento encontra na internet seu meio de veiculação
ideal, que vê surgir debates como o que opôs, de um lado, o italiano Giorgio Agamben, e, de outro, o francês Jean-Luc Nancy e o também italiano Roberto Esposito, grandes nomes da filosofia política contemporânea, sobre as políticas de contenção do vírus.
Para ajudar o leitor a navegar por essa série de esforços do
pensamento, a Ilustríssima apresenta este guia do debate, com um resumo
do que cada um desses autores diz.
O debate sobre a exceção
Giorgio Agamben
Em 26 de fevereiro, o filósofo italiano publicou um artigo chamado “A Invenção de uma Epidemia”
no site de sua editora. O texto provocou uma série de respostas no blog
coletivo italiano Antinomie em parceria com a revista European Journal
of Psychoanalysis.
Um dos maiores pensadores da atualidade, Agamben é autor de “Homo
Sacer” (editora UFMG), no qual explicita o conceito mais caro de sua
filosofia, o de estado de exceção —que se refere à situação em que,
para conter um conflito ou uma ameaça, o governo usa de sua soberania
para cassar ou suspender direitos e estabelecer um estado de guerra.
No texto, ele qualifica as medidas de contenção tomadas pelo governo
italiano como “frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas”. A mídia
e as autoridades, segundo ele, estariam espalhando um clima de pânico
que legitimaria o estado de exceção.
Para o filósofo, as medidas fazem parte de uma tendência crescente de
usar o estado de exceção como paradigma normal de exercício do poder. A
epidemia não seria mais que um pretexto para instaurar o pânico e
tornar as limitações de liberdade aceitáveis em nome do desejo de
segurança.
Jean-Luc Nancy
No dia seguinte à publicação, o filósofo francês (autor de, entre
outros, “Corpus”, no qual aborda sua experiência de transplante de
coração), respondeu ao colega afirmando a gravidade da Covid-19.
O pensador, para quem a noção de comunidade é central, considerou que
Agamben falhava ao não perceber que a exceção já se tornou a regra no
mundo atual, em que a intervenção da técnica sobre todas as coisas
atinge uma dimensão nunca antes vista.
Para ele, desconsiderar que o governo é apenas um executor do que é
preciso ser feito parece mais uma manobra diversionista do que uma
reflexão política. Roberto Esposito
Dois dias depois foi a vez do filósofo italiano,
que também trabalha com o conceito de estado de exceção em seus estudos
sobre biopolítica, responder a seu conterrâneo. O autor de “Categorias
do Impolítico” (Autêntica) afirma ser um exagero falar em riscos à
democracia neste momento.
Esposito, porém, admite que o estabelecimento da emergência empurra a
política para procedimentos excepcionais que desfazem o equilíbrio do
poder. Segundo ele, uma crescente politização da medicina distorce as
tarefas de controle social porque seus objetivos não incluem mais
indivíduos ou classes, mas segmentos de população diferenciados por
saúde, idade, sexo e até etnia.
“Parece-me”, escreve ele, “que o que acontece hoje na Itália, com a
caótica e um tanto grotesca sobreposição de prerrogativas estatais e
regionais, tem mais o caráter de uma decomposição dos poderes públicos
que o de uma dramática contenção totalitária”.
Giorgio Agamben
No dia 17 de março, o italiano voltou ao debate,
mas sem mudar a postura. Segundo ele, o pânico mostrou que a sociedade
não acredita em nada além de “vidas nuas” e que os italianos estão
dispostos a sacrificar tudo para evitar ficarem doentes.
Agamben se pergunta no que as relações humanas se transformariam se
nos acostumássemos a viver assim, como se outros seres humanos fossem
apenas possíveis contaminadores. “O que é uma sociedade cujo único valor
é a sobrevivência?”, pergunta.
Os homens, acostumados a viver em permanente crise, não percebem que a
vida foi reduzida à condição biológica, perdendo suas dimensões social,
política e emocional. Uma sociedade em permanente estado de emergência,
diz, não pode ser livre.
Sua preocupação é com o pós-pandemia, se, passada a emergência
médica, os experimentos que os governos conseguiram implementar se
mantiverem e continuarmos com escolas e universidades fechadas, sem
encontros para debater política e cultura, trocando mensagens virtuais e
interagindo somente com máquinas.
O descrente
Alain Badiou
O filósofo francês, autor de “Em Busca do Real Perdido” (Autêntica),
em que questiona a compreensão do real apenas pela ciência e economia, escreveu no final de março um artigo no qual se mostra descrente de uma grande mudança política após a pandemia.
Ele recusa a ideia de que estejamos vivendo algo inédito com o novo
coronavírus, apontando ameaças anteriores, como o HIV e a Sars. “É
verdade que esses deveres [como o de ficar em casa] são cada vez mais
urgentes, mas, ao menos num exame inicial, não requerem nenhum grande
esforço analítico ou a constituição de um novo modo de pensar”, escreve.
Quanto às medidas tomadas pelos governos, são simplesmente as
necessárias nesta situação.
Para Badiou, o Sars-CoV-2 evidencia uma grande contradição
contemporânea: a economia está sob a égide do mercado global, enquanto
os poderes políticos continuam sendo essencialmente nacionais.
Cético quanto ao que alguns aventam como possibilidades políticas na
atual crise, ele percebe uma dissipação da atividade da razão que está
levando a “misticismo, fabulação, profecias e maldições” e que, no
pós-pandemia, será preciso avaliar tais perspectivas que acreditaram que
algo politicamente inovador poderia surgir.
Valor das vidas
Judith Butler
A filósofa americana, responsável pelo conceito de performatividade
de gênero e pela teoria queer, autora de “Problemas de Gênero”
(Civilização Brasileira), parte da tentativa de Donald Trump de garantir
apenas aos EUA uma possível vacina contra a Covid-19 para tratar do acesso desigual à saúde no país.
Ela volta às ideias
expostas no livro “Vida Precária: Os Poderes do Luto e da Violência”
(Autêntica), em que o luto aparece como elemento fundamental de um
sentimento de comunidade que se opõe ao individualismo.
Embora todas as vidas sejam precárias e o vírus possa contaminar
qualquer um, a desigualdade social e econômica permite que o vírus
discrimine.
“Por que nós, como povo, ainda nos opomos à ideia de tratar todas as vidas como se tivessem o mesmo valor?”, pergunta.
Tchau Europa, olá China
Theodore Dalrymple
Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra e crítico cultural conservador
britânico Anthony Daniels, autor, entre outros, de “Nossa Cultura... ou
o Que Restou Dela” (É Realizações), conjunto de ensaios sobre a
degradação dos valores.
Em dois textos sobre a Covid-19, ele trata do novo protagonismo da
China e do fim da Europa como liderança e modelo para o mundo, tendência
exacerbada pela pandemia.
O primeiro texto,
do início de março, mostra como epidemias ou guerras fazem com que
tanto a população quanto a classe política vivam uma dialética entre
complacência e pânico, entre a análise de estatísticas e o medo do
desabastecimento que leva à corrida a supermercados.
Ali, Dalrymple comenta o fato de que, com a falta de insumos, os
governos acordaram para o perigo de deixar que a China seja a fábrica do
mundo, confiando ao país diversas partes da cadeia produtiva.
O segundo texto
trata de como os europeus, para se consolarem do fato de não terem
respondido ao vírus com a mesma eficiência de países asiáticos, se
apegam à ideia de que são livres e de que não vivem sob regimes
autoritários.
Sociedade do medo
Frank Furedi
Nascido na Hungria e professor da Universidade de Kent, na
Inglaterra, o sociólogo e autor de “Politics of Fear” (política do medo)
tem escrito diversos artigos sobre a Covid-19 na revista online Spiked.
No final de janeiro,
Furedi alertava para que a reação à doença não fosse extrema, dizendo
que neste século já vimos o surgimento de outros vírus e que já
começavam as teorias da conspiração e o apontar de dedos em busca de
culpados.
Em texto de meados de março,
ele trata de como a pressão para que políticos ajam de forma a aquietar
a opinião pública pode impedir que as melhores decisões sejam tomadas.
Mas não são os governos, e sim as comunidades, diz ele, que asseguram
que a dor e o sofrimento sejam minimizados.
Em “Um Desastre sem Precedentes”,
de 20 de março, Furedi aborda os impactos do coronavírus, não pelo
aspecto da saúde, mas pelo ângulo da reação de governos, entidades
internacionais e comunidades. “É como a sociedade responde a um desastre
que determina que legado, a longo prazo, o desastre terá”, escreve.
O modo como se responde a uma pandemia é mediado pela maneira como se
percebe a ameaça, pela sensação de segurança existencial e pela
capacidade de dar significado ao imprevisto.
Ele então enumera questões do nosso cenário cultural que influenciam a
nossa resposta: no século 21 os indivíduos deixaram de se enxergar como
resilientes e passaram a se definir por suas vulnerabilidades; existe
uma grande “psicologização” dos problemas da vida cotidiana e da
existência; e uma percepção contemporânea de que a existência humana
está ameaçada —“o termo extinção humana é usado casualmente nas
conversas cotidianas”.
Em oposição a isso, Furedi fala da necessidade de desenvolver a
coragem como valor compartilhado —e valores compartilhados são
essenciais à solidariedade.
No artigo mais recente,
de 2 de abril, ele volta a tratar da sanha por achar culpados pelo novo
coronavírus. A maior parte das narrativas de culpa é, segundo ele,
influenciada por inimigos de seus autores. Setores da esquerda culparam a
austeridade e a falta de investimento no setor público, enquanto a
direita responsabilizou migrantes e estrangeiros pela situação.
Para compreender tal busca por culpados, o sociólogo enumera três
fases da maneira como a humanidade lida com catástrofes ao longo da
história. Antes apontavam para Deus e outras forças sobrenaturais; após o
Iluminismo, passamos a culpar a natureza; agora, buscamos culpados
entre os seres humanos. Ainda hoje os desastres devem ter significados
por trás deles e raramente são percebidos como acidentes.
Resposta imunológica
Han Byung-chul
O filósofo sul-coreano radicado em Berlim, autor de “Sociedade do Cansaço” (Vozes), em texto de meados de março
passa em revista os modos distintos com que Ásia e Europa enfrentaram a
Covid-19 —testagem em massa e controle digital de um lado, isolamento
social de outro.
Ele aponta questões culturais que levam a tais diferenças, como a
tradição confucionista que engendra uma mentalidade autoritária, a maior
obediência e menor relutância, mais confiança no Estado e sobreposição
da coletividade sobre o indivíduo nos países asiáticos.
Han também aborda uma mudança na ideia de soberania, que, segundo
ele, está ultrapassada como é vista na Europa. É soberano, afirma, quem
dispõe de dados. E a vigilância digital impera na Ásia.
“O capitalismo continuará com ainda mais pujança”, diz ele. E agora a
China poderá vender seu Estado policial digital com orgulho para o
Ocidente. O vírus não vencerá o capitalismo, pois, ao nos isolar e não
gerar nenhum sentimento coletivo, não mobiliza revoluções.
A solução socialista
David Harvey
O geógrafo marxista britânico, autor de “Os Limites do Capital”
(Boitempo), no qual reinterpreta Marx à luz das dinâmicas espaciais da
urbanização, publicou “Políticas Anticapitalistas em Tempos de Covid-19” em seu site, em meados de março.
Não há, segundo ele, desastres naturais, porque todos dependem, mais
ou menos, da ação humana. Os impactos econômicos e demográficos do vírus
dependem de fissuras e vulnerabilidades que já existiam no modelo
econômico.
Em diversos países as autoridades regionais não tiveram acesso a
recursos para a saúde pública por conta de políticas de austeridade que
subsidiaram corporações e os ricos, escreve.
Ele contesta, ainda, a ideia de que a doença atinja igualmente a
todos, pois a força de trabalho que cuida dos doentes é racializada e
feminina. A diferença também está naqueles que podem ou não trabalhar de
casa, e nos que podem ou não se isolar.
Os trabalhadores na maior parte do mundo, segundo ele, foram
ensinados a se comportar como bons sujeitos neoliberais, mas as únicas
políticas que surtirão efeitos agora serão socialistas.
Nada deve ser como antes
Bruno Latour
O francês, sociólogo e filósofo da ciência, é autor de, entre outros,
“Jamais Fomos Modernos” (editora 34), sobre como a noção de moderno é
usada no Ocidente em oposição a outras culturas. Em texto do final de março, defende que não voltemos ao estado anterior, de superprodução e consumismo, após a pandemia.
Segundo ele, os globalistas vão se aproveitar da crise para voltarem
mais fortes, ignorando os sinais climáticos. “É agora que devemos lutar
para que, uma vez terminada a crise provocada pela pandemia, a retomada
da economia não traga de volta o mesmo velho regime climático que temos
tentado combater”, escreve.
Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de
produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação
com o mundo. Ao final, ele propõe um exercício ao leitor: fazer um
inventário das atividades que não gostaria que fossem retomadas e
daquelas que, pelo contrário, gostaria de ampliar.
A nova fronteira
Paul B. Preciado
No começo de março,
o filósofo trans espanhol, autor do “Manifesto Contrassexual” (N-1
edições), um marco dos estudos de gênero, adoeceu pela Covid-19. Logo
depois, escreveu um texto a respeito dos dias que passou alheio aos
acontecimentos e sobre como pensou que a nova realidade poderia agora
ser escrita em pedra. “Valeria a pena viver nos moldes do
confinamento?”, ele se perguntava.
No dia 28,
voltou ao assunto em outro artigo, no qual enfatiza a filosofia de
Michel Foucault da biopolítica, segundo a qual o corpo é o objeto
central de toda política.
As diferentes epidemias, segundo ele, materializam na esfera do corpo
de cada um as obsessões que dominam a gestão política da vida e da
morte das populações. Sendo assim, o vírus atua replicando e estendendo a
todos as formas dominantes de gestão da vida e da morte que já
existiam, mas em dimensões nacionais.
Estamos, em nossa época, passando de uma sociedade orgânica para uma
digital, de uma economia industrial para uma imaterial. As pessoas não
são mais reguladas pela passagem por instituições disciplinares, como
escola, fábrica, casa, mas por tecnologias biomoleculares, digitais e de
transmissão de informação.
“O que está sendo testado em escala planetária por meio do
gerenciamento do vírus é uma nova maneira de entender a soberania em um
contexto em que a identidade sexual e racial está sendo desarticulada”,
escreve.
Golpe no capitalismo
Slavoj Zizek
No fim de fevereiro,
o esloveno, o mais pop dos filósofos, publicou um artigo no qual define
o novo coronavírus como um golpe à la “Kill Bill” no capitalismo.
O autor de livros como “Menos que Nada” (Boitempo), no qual articula
Hegel e Lacan, faz referência ao golpe mortal aplicado pela protagonista
em seu inimigo ao final do longa de Quentin Tarantino.
Para Zizek, o novo coronavírus sinaliza que uma mudança radical é
necessária. A crise econômica que se espera como consequência da
pandemia mostra a urgência de uma reorganização da economia global em
que não se esteja à mercê dos mecanismos do mercado.
Ele prepara novo livro sobre a pandemia, que já está em pré-venda.
Zizek fala de um socialismo de emergência, no qual trilhões serão
gastos, violando as leis de mercado, mas que ainda assim corre o risco
de ser um “socialismo para os ricos”, ajudando apenas a elite, como em
2008.
E mais alguns pensadores
Noam Chomsky
O linguista americano conversa com o filósofo croata Srećko Horvat em vídeo do final de março.
Ele diz que o coronavírus é preocupante, mas que estamos sob duas
maiores ameaças, uma iminente guerra nuclear e o aquecimento global,
além da ameaça de deterioração da democracia. Neste momento, os países
pobres, num mundo civilizado, deveriam estar recebendo ajuda dos países
ricos para que as pessoas não morressem de fome.
Ao superarmos a crise teremos algumas opções, de estados altamente
autoritários e brutais, com os quais o neoliberalismo ficaria feliz, à
reconstrução radical da sociedade em termos mais humanos, em que o lucro
não seja o mais importante. Naomi Klein
A escritora e ativista canadense, autora de “A Doutrina do Choque”, falou à Vice e ao Intercept sobre
o novo coronavírus. Klein diz que em momentos de crise as ideias mais
inesperadas de repente se tornam possíveis de serem executadas e defende
o chamado “green new deal”, que investe em indústrias limpas. Peter Singer e Paola Cavalieri
O filósofo australiano, grande voz na defesa dos animais, e a
jornalista e filósofa italiana, autora de um projeto que estende aos
grandes primatas os direitos humanos, publicaram no início de março um texto no qual traçam um panorama do possível surgimento do Sars-Cov-2 em mercados de animais silvestres na China.
Eles defendem que não apenas leis que protejam espécies sejam
instituídas, mas que o mundo todo proíba mercados em que animais são
vendidos vivos.
Úrsula Passos é jornalista da Folha e mestre em filosofia pela USP.
A cardiologista e intensivista Ludhmila Abrahão
Hajjar, 42, diretora de ciência e tecnologia da Sociedade Brasileira de
Cardiologia, diz que está havendo um otimismo exagerado em relação à cloroquina, que há riscos cardíacos no uso da droga e que jamais a adotaria para casos leves.
“Cloroquina não é vacina. Está sendo vista como salvadora, e não é.
Mas se você fala isso, já começa a apanhar porque virou uma questão
nacional de pressão. Mas a realidade científica é essa, não tem
evidência”, diz a médica e professora do InCor (Instituto do Coração).
Ela fez parte de comissão de especialistas que se reuniu com
presidente Jair Bolsonaro há duas semanas para discutir a cloroquina.
Bolsonaro ouviu deles sobre a falta de evidência da droga, porém, seguiu
defendendo o seu uso.
Hajjar também integra um grupo de pesquisadores que tem estudado a eficácia e a segurança da cloroquina. Dados preliminares de uma pesquisa emManaus (AM) apontaram que altas doses da substância aumentam a taxa de letalidade em pacientes graves internados.
Segundo a médica, o principal gargalo da pandemia tem sido a falta de estrutura das UTIs brasileiras.
“Não é só ter respirador. Quando eu intubo um doente, ele fica 15 dias
na UTI. Vai precisar de fisioterapeuta 24 horas, antibiótico. Muitas
vezes, morre de infecção, maus tratos, não tem gente para cuidar, não
tem profissional, não tem material", afirma.
Há otimismo exagerado em relação à cloroquina?
Muito. Isso reflete o que a gente está vivendo, milhares de pessoas
infectadas, mortes e vidas em risco. E, ao mesmo tempo, o impacto
socioeconômico e certos países buscando soluções rápidas. Mas,
infelizmente, não temos.
Os ensaios in vitro demonstram um potencial da cloroquina de inibir a
replicação do vírus e a entrada dele na célula. Porém, em estudos
clínicos há uma escassez de dados e muita controvérsia. Boa parte do
otimismo vem de um único grupo de pesquisa da França, mas os dados são cientificamente fracos.
De lá pra cá, alguns outros estudos, também não confirmatórios,
apontam que há resultados diferentes, contraditórios. Não temos que ter
expectativa grande e nenhum achismo em relação ao uso da cloroquina até
que se tenha dados comprovados. O uso da cloroquina pode trazer riscos à saúde?
Os efeitos adversos não são desprezíveis. Muita gente argumenta ao
contrário: ‘ah, é uma droga segura, usada há anos na malária, na artrite
reumatoide, no lúpus, as pessoas usam em casa’. Mas a hipótese é que um
dos principais efeitos colaterais dessa medicação seja no coração, a
arritmia cardíaca.
Quando a pessoa está com o coração normal é mais difícil que a
arritmia aconteça. Mas a gente tem que lembrar que até 40% dos pacientes
infectados pela Covid-19 têm algum tipo de injúria ao sistema
cardiovascular. É possível que no meio da infecção o sistema vascular
fique exposto, fique mais suscetível ao efeito colateral dessa
medicação.
Nós temos visto isso aqui em São Paulo, os franceses relataram mais
de 30 casos de pessoas que tiveram problemas graves com essas drogas, e
as autoridades de lá reforçaram a condição de ela ser usada apenas em
ambiente hospitalar. Tanto a cloroquina como a azitromicina podem
induzir essa arritmia. A associação das duas torna-se isso ainda mais
possível. E por que essa pressão em torno do uso?
Surgiram pessoas que foram acumulando experiências e não evidências
científicas, por exemplo, a Nise [Yamaguchi] com os casos da Prevent
Senior. Eu já disse: ‘Nise, isso não dá para ser replicado enquanto não
tiver estudo comparativo, com grupo controle e que tenha a mesma
gravidade da doença, as mesmas comorbidades. Eu não posso pegar isso e
começar a pressionar o Brasil’.
Eu jamais adotaria hoje a cloroquina na forma leve, de forma
preventiva, sem ter evidência cientifica. Eu não mudaria a prática
clínica baseada só em experiência. Cloroquina não é vacina. Está sendo
vista como salvadora, e não é. Quais são as outras opções terapêuticas estudadas hoje para a Covid-19?
Uma é com medicação com efeito antiviral e a outra, com ação
anti-inflamatória. Vários estudos estão acontecendo no mundo, por
exemplo, com os antivirais lopinavir e o ritonavir, que são medicações
para o HIV. Tem o remdesivir, o mundo tem uma grande expectativa sobre
essa droga. Ela foi eficaz no ebola, um antiviral de amplo espectro,
coisa que não existia até recentemente.
Antibióticos a gente dá para todos os pacientes graves porque há
muita pneumonia bacteriana associada. Também há estudos sobre terapia
anti-inflamatória, como corticoides, anticorpo monoclonal, e com
anticoagulante. Muitos hospitais têm usado esse arsenal todo, mas, de
novo, nada baseado em evidências. Ou seja, não existe ainda um tratamento padrão?
Não existe. Mas se você fala isso, já começa a apanhar porque a
cloroquina virou uma questão nacional de pressão. Mas a realidade
científica é essa. Isso foi falado no encontro com o presidente Jair Bolsonaro. Mas parece que ele não se convenceu, certo?
Ele estava ali mais para ouvir, estava zero combativo. Ele disse: ‘tenho
dois problemas: o vírus de um lado e o impacto na mortalidade, e do
outro o impacto socioeconômico dessa doença. Então, queria ouvir de
vocês o que tem estudo, de resultado preliminar’. Aí as pessoas
envolvidas em estudos como eu falaram isso, os estudos estão acontecendo
e não temos nada.
Só que ai também haviam pessoas que foram contar experiências
pessoais, que são sempre cheias de emoção: ‘ah! eu evitei a internação
do meu doente, o meu doente ficou muito bem!’. Não dá. Assim não consigo
falar de algo tão sério. Aí cabem todas as interpretações. Ele ouviu e
não emitiu opinião. E sobre o isolamento, o que os cientistas recomendaram?
O isolamento surgiu na conversa porque a gente acabou entrando no
assunto. O tema central foi a cloroquina. Alguns de nós, nos
posicionamos que a melhor estratégia para evitar transmissão era
intensificar as medidas de isolamento, não tem nada melhor que isso,
infelizmente. Qual tem sido o impacto da Covid-19 nas UTIs do país?
Gigante. Quando eu intubo um doente, ele fica 15 dias na UTI. Lá, vai
precisar de fisioterapeuta 24 horas, a UTI tem que ter todas as
normativas de segurança em termos de infecção.
Muitas vezes, esse doente vai morrer de infecção secundária, maus
tratos, não tem gente para cuidar, não tem profissional, não tem
material. Essa questão da estrutura das UTIs é central nessa situação
atual, é o nosso principal gargalo.
Municípios e regiões que sequer têm UTIs, quando têm, não há
estrutura. Eu vejo o número de internações aumentando progressivamente a
cada dia, o Brasil batendo mais de cem mortes em 24 horas e as UTIs não
estruturadas para receber esses doentes. Uma coisa é Einstein, Sírio,
Oswaldo Cruz, Samaritano, outra coisa é a realidade Brasil que não é
essa. E UTI não é feita só de respirador...
Exatamente, não é só respirador. Como se eu carregasse o meu respirador
debaixo do braço. O respirador dá oxigênio, ponto. Tem que ter alguém
cuidando do respirador, aspirando o doente, tem que ter antibiótico,
protocolo, tem quer a hora do desmame.
Antes de começar os casos em São Paulo, eu falei com os italianos e
eles me deram várias dicas: ‘Ludmila, não se anima, não extube o
paciente antes de três dias, cinco dias. O doente está inflamado, é uma
anestesia prolongada’, existem muitas pecularidades no tratamento dessa
doença.
É uma pneumonia de longa duração. Esse doente ficará 15 dias em média
na UTI, de sete a dez dias intubado. Precisando de cuidados de
fisioterapia 24 horas, de respirador bom, de antibióticos, de nutrição,
de profilaxia de trombose, de prescrição adequada. O desafio é
gigantesco.
É preciso um esforço sobre-humano para capacitar rapidamente
fisioterapeutas e enfermeiras das enfermarias para atuar na UTI, tem
usar telemedicina. Individualmente, eu tenho tentado, não paro de
atender telefonemas, ajudando colegas do Brasil todo.
Eles dizem: ‘eu intubei, olha esse raio-X, o que eu faço?' Eu falo:
'faz isso'. 'Ah, mas eu não tenho isso', 'então vamos fazer assim’. A
gente tem feito aulas diárias, lives, contando a experiência de São
Paulo, da Itália, da China. Estamos diante de uma guerra, os doentes da
UTI podem ter taxa de mortalidade de até 80%. Como conseguir motivar os profissionais nesse momento de tanto medo, estresse e falta de proteção?
Os profissionais de saúde estão muito inseguros com as mortes de
colegas, muita gente pedindo demissão. Está superdifícil contratar gente
no interior do Brasil. Os governadores têm perguntado como fazer para
motivar os profissionais de saúde. É hora de as lideranças assumirem o
seu papel e manterem as equipes motivadas e seguras.
A questão financeira também é fundamental. Não basta só chamar para a
guerra no sentido motivacional. É preciso buscar formas de remunerar
melhor, arranjar um fundo, um adicional insalubridade por tudo o que os
profissionais da linha de frente estão vivendo. É guerra, e a gente
precisa desses soldados.
No centro do campo está mais que vencer a pandemia, mas ganhar da ignorância
Defesa da ciência tem sido incapaz de derrotar o ataque do fanatismo.
Juca Kfouri
Ainda longe de terminar o jogo, é preciso reconhecer que o conhecimento está perdendo.
A defesa da ciência tem sido incapaz de derrotar o ataque da ignorância e do fanatismo. O mito insufla hordas que saem às ruas desafiando o bom senso.
Por minoria que seja, conspira contra quem segue a orientação dos
técnicos, bem-sucedidos no início do embate, incapazes de evitar os
ataques pela extrema-direita ensandecida diante da perspectiva de
prejuízos incomparavelmente menores que a perda de vidas.
Das dela, inclusive, como se verá em futuro próximo.
Fosse o mundo mais justo e morreriam apenas os que teimam em desafiar
a orientação da OMS, já rotulada por eles como cúmplice da China, o
reino do mal diabolicamente empenhado em tomar o mundo.
Nem mesmo a evidência das mortes, depois do jejum que as evitaria, barra os doidos vestidos com a camisa da CBF.
Correto está o ex-presidente do Atlético Mineiro, e prefeito de Belo
Horizonte, Alexandre Kalil, ao dizer que são patriotas de araque, apenas
egoístas é o que são.
E, por favor, não digam se tratar de alguém de esquerda.
Como o mundo é o que é, morrerão também os sensatos e aqueles obrigados a sair de casa.
O jogo mais dramático já disputado no Brasil, se seguir transcorrendo
como vimos nos últimos dias de relaxamento do isolamento social,
terminará com resultado que nos fará achar graça do 7 a 1.
Nem mesmo será 14 a 2, ou 28 a 4. Está mais com jeito de placar
de basquete entre times desiguais, algo em torno de 56 a 8 e só no
primeiro tempo.
A verdade é que deixamos o Brasil chegar ao ponto da insânia em que chegou.
A deseducação é tamanha que muitos com curso superior se caírem de
quatro pastarão no asfalto, cabeças embrutecidas por todo tipo de
crenças, do deus mercado, e a saúde que se dane, a outros exploradores
da fé que os fazem se ajoelhar na avenida Celso Garcia como visto no dia
do jejum.
Junte a isso comunicadores irresponsáveis, em busca de audiência a
qualquer custo, a remar contra a maré apenas pelo gosto de se distinguir
ou se beneficiar dos favores de quem está no poder.
Gente que mente, gente que omite, que naturaliza a morte por ser ela
inevitável, que faz um gol contra atrás do outro em suas vidas odientas.
Triste ver tanto esforço por água abaixo diante da solidariedade de
movimentos voluntários para atender os mais pobres ou dos empresários do
#NãoDemita.
Pobre Brasil!
Quem escapar da pandemia terá a obrigação de responder o “onde erramos?” e mais que responder, passar a acertar.
Que bom será se, além disso, aqueles genocidas que também se
salvarem, vierem a ser julgados nos tribunais internacionais pelas
mortes que causaram.
Porque é possível avaliar como sã uma pessoa que veja com
naturalidade o presidente da República limpar o nariz com o braço e, em
seguida, dar a mão para uma senhora enlouquecida e de máscara?
Ou justificar a quadrilha que impediu a passagem de três ambulâncias na avenida Paulista no sábado de Aleluia?
Estamos perdendo o jogo mais difícil de nossas vidas.
O time de um terço do país revela sua força para horror, e
arrependimento, dos que engrossaram suas fileiras certos de que as
controlariam quando chegassem ao Planalto.
Estamos todos vendo o resultado e agora só nos resta lamentar.
Reagiremos? É o mínimo a fazer.
Afinal, desesperar jamais!
Juca Kfouri
Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.
Enfrentar o bolsonavírus será mais difícil do que vencer a Covid-19
Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando protocolos, Bolsonaro não está pregando no deserto
Nabil Bonduki
Uma mulher enfurecida invade a telinha, arranca o
microfone do repórter Renato Peters, que estava ao vivo no SPTV (Rede
Globo), e com uma agilidade impressionante consegue gritar em exatos
três segundos, antes da imagem ser cortada: “A Globo é um lixo, o
Bolsonaro tem razão”.
O incidente mostra a existência na sociedade brasileira um vírus
ainda mais poderoso que a Covid-19: o “bolsonavírus”. Inicialmente
invisível, permaneceu por muito tempo “dentro do armário”, onde cresceu
vitaminado pelo preconceito, pelo obscurantismo religioso, pelo poder
miliciano e pela sensação de insegurança.
Alimentou-se do desgaste e do elitismo da política institucional, da
incapacidade da centro-direita liberal dialogar com as classes
populares, das alianças e da convivência com a corrupção dos governos
progressistas e do ativismo judicial seletivo que, em conluio com a
mídia, desestruturou o sistema político brasileiro. Quando a internet se
universalizou, a fake news se tornou um instrumento poderoso para a difusão dessa ideologia.
Considerado, até 2018, um “folclórico”, Jair Messias era a expressão
política, quase única, desse “vírus”. Embora possa parecer que tem algum
desvio mental, ele não é um transloucado. É o lider de um espectro
ideológico que ganhou muitos adeptos.
Machistas, racistas e homofóbicos e negacionistas, mas também
gente simples do povo que frequenta cultos na periferia, uma classe
média conservadora e, às vezes, mal informada, agentes de segurança,
defensores da pena de morte e até um empresariado um pouco selvagem.
Virou uma doença crônica que, embora ainda não tenha contaminado
majoritariamente o corpo social, ficou tão forte que é difícil contê-la.
Por isso não se deve menosprezar a força e a estratégia do presidente. Ao agir de maneira irresponsável,
desrespeitando os protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde e
autoridades sanitárias, ele não está pregando no deserto. Ao contrário,
apesar dos crimes que comete, tem o respaldo de um contingente
expressivo da população.
Isso não só potencializa o risco da pandemia se transformar em um
genocídio, como ameaça a democracia, o desenvolvimento científico, os
direitos humanos, a tolerância e os valores civilizatórios que galgamos
desde a Constituição de 1988.
Mesmo depois de afirmar que a Covid-19 era uma “gripinha”, de gerar
aglomerações que contribuem, direta e indiretamente, para a propagação
do vírus, e de atacar o isolamento social, universalmente considerado o
principal instrumento para deter a propagação do coronavírus, a
popularidade do presidente não caiu significativamente.
Segundo o Datafolha,
52% dos brasileiros acham que ele tem capacidade de liderar o país.
Frente à sua inapetência em lidar com a crise sanitária e econômica, a
enquete é assustadora. Seu desempenho na crise sanitária é considerado
“ruim ou péssimo” para apenas 39% da população. A maioria, 58%, não o
desaprova: 33% acha que ele faz “bom ou ótimo” trabalho e 25% considera
“regular”.
Como interpretar esse expressivo apoio popular em um momento em que o
presidente está politicamente isolado, em conflito com o ministro da
Saúde, governadores e prefeitos, sem apoio do Congresso, limitado pelo
STF, atacado por quase toda a mídia tradicional e pelos blogs
alternativos e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro
direita à esquerda, com panelaços diários?
A explicação está no fato dele expressar uma concepção que se enraizou
em setores expressivos da sociedade, que lhe dá sólida sustentação. Uma
visão que despreza, entre outros aspectos, o desenvolvimento científico e
os direitos humanos.
As recomendações da Saúde estão respaldadas no conhecimento
científico; no entanto, mais de um terço dos brasileiros não acreditam
na ciência, como revelou a pesquisa global “Wellcome Global Monitor” da
Gallup, publicada na revista Science em 2019.
Ela mostrou que o Brasil ocupa o 111º lugar no ranking dos
países que mais confiam na ciência, entre as 144 nações incluídas. O
levantamento revelou que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência e que
23% acreditam que a produção científica não beneficia a sociedade.
Mais grave: metade dos brasileiros afirmaram que a “a ciência
discorda da minha religião” e desses 75% (37,5% do total) disseram que
“quando ciência e religião discordam, escolho a religião”.
Não por acaso, o apoio ao presidente é maior entre os evangélicos. Nesse
segmento, o desempenho do presidente na crise sanitária é considerado
“ótimo e bom” para 41% e “regular” para 29%, enquanto que 60% acha que
ele tem condições de liderar o país.
Nas próximas semanas estaremos no pico da pandemia, mas está caindo,
em várias cidades, o respeito ao isolamento social. Na 4ª feira, apenas
51% dos paulistanos ficaram em casa, quando o ideal seria 70%. Nas áreas
mais periféricas o desrespeito é generalizado; nesse sábado, o comercio
estava a toda e vários bailes funk ocorreram em espaços públicos.
A situação é de extrema gravidade. Por um lado, o presidente
estimula a retomada das atividades e o fim do isolamento, influenciando
tanto trabalhadores informais e micro empresários em dificuldades
econômicas, como os já contaminados pelo bolsonavirus, que não acreditam
na ciência e, portanto, nas recomendações sanitárias.
Por outro, os mais pobres e vulneráveis se veem obrigados a buscar
alguma renda frente à demora e falta de coordenação governamental e
federativa em apoiar uma população, cujas condições de vida, moradia e
transporte são favoráveis à propagação do Covid 19, como mostrei nas
minhas últimas colunas.
Existe uma estratégia sanitária para enfrentar o Covid 19 que, se
fosse bem sucedida, poderia reduzir os danos e encurtar a quarentena.
Mas se o “bolsonavírus” prevalecer, o sacrifício dos que se isolaram
será em vão e uma catástrofe poderá acontecer.
Muitos dos que apoiaram Bolsonaro na eleições de 2018, mesmo sabendo o
que ele representava, acharam que seria apenas uma “dorzinha de
barriga”. Agora todos estão vendo que é muito mais do que isso.
Nabil Bonduki
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi
relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.