segunda-feira, 13 de abril de 2020

Enfrentar o bolsonavírus será mais difícil do que vencer a Covid-19


Enfrentar o bolsonavírus será mais difícil do que vencer a Covid-19

Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando protocolos, Bolsonaro não está pregando no deserto

Nabil Bonduki

Uma mulher enfurecida invade a telinha, arranca o microfone do repórter Renato Peters, que estava ao vivo no SPTV (Rede Globo), e com uma agilidade impressionante consegue gritar em exatos três segundos, antes da imagem ser cortada: “A Globo é um lixo, o Bolsonaro tem razão”.
O incidente mostra a existência na sociedade brasileira um vírus ainda mais poderoso que a Covid-19: o “bolsonavírus”. Inicialmente invisível, permaneceu por muito tempo “dentro do armário”, onde cresceu vitaminado pelo preconceito, pelo obscurantismo religioso, pelo poder miliciano e pela sensação de insegurança.
Alimentou-se do desgaste e do elitismo da política institucional, da incapacidade da centro-direita liberal dialogar com as classes populares, das alianças e da convivência com a corrupção dos governos progressistas e do ativismo judicial seletivo que, em conluio com a mídia, desestruturou o sistema político brasileiro. Quando a internet se universalizou, a fake news se tornou um instrumento poderoso para a difusão dessa ideologia.
Considerado, até 2018, um “folclórico”, Jair Messias era a expressão política, quase única, desse “vírus”. Embora possa parecer que tem algum desvio mental, ele não é um transloucado. É o lider de um espectro ideológico que ganhou muitos adeptos.

Machistas, racistas e homofóbicos e negacionistas, mas também gente simples do povo que frequenta cultos na periferia, uma classe média conservadora e, às vezes, mal informada, agentes de segurança, defensores da pena de morte e até um empresariado um pouco selvagem. Virou uma doença crônica que, embora ainda não tenha contaminado majoritariamente o corpo social, ficou tão forte que é difícil contê-la.
Por isso não se deve menosprezar a força e a estratégia do presidente. Ao agir de maneira irresponsável, desrespeitando os protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde e autoridades sanitárias, ele não está pregando no deserto. Ao contrário, apesar dos crimes que comete, tem o respaldo de um contingente expressivo da população.

Isso não só potencializa o risco da pandemia se transformar em um genocídio, como ameaça a democracia, o desenvolvimento científico, os direitos humanos, a tolerância e os valores civilizatórios que galgamos desde a Constituição de 1988.
Mesmo depois de afirmar que a Covid-19 era uma “gripinha”, de gerar aglomerações que contribuem, direta e indiretamente, para a propagação do vírus, e de atacar o isolamento social, universalmente considerado o principal instrumento para deter a propagação do coronavírus, a popularidade do presidente não caiu significativamente.

Segundo o Datafolha, 52% dos brasileiros acham que ele tem capacidade de liderar o país. Frente à sua inapetência em lidar com a crise sanitária e econômica, a enquete é assustadora. Seu desempenho na crise sanitária é considerado “ruim ou péssimo” para apenas 39% da população. A maioria, 58%, não o desaprova: 33% acha que ele faz “bom ou ótimo” trabalho e 25% considera “regular”.
Como interpretar esse expressivo apoio popular em um momento em que o presidente está politicamente isolado, em conflito com o ministro da Saúde, governadores e prefeitos, sem apoio do Congresso, limitado pelo STF, atacado por quase toda a mídia tradicional e pelos blogs alternativos e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro direita à esquerda, com panelaços diários?

A explicação está no fato dele expressar uma concepção que se enraizou em setores expressivos da sociedade, que lhe dá sólida sustentação. Uma visão que despreza, entre outros aspectos, o desenvolvimento científico e os direitos humanos.
As recomendações da Saúde estão respaldadas no conhecimento científico; no entanto, mais de um terço dos brasileiros não acreditam na ciência, como revelou a pesquisa global “Wellcome Global Monitor” da Gallup, publicada na revista Science em 2019.

Ela mostrou que o Brasil ocupa o 111º lugar no ranking dos países que mais confiam na ciência, entre as 144 nações incluídas. O levantamento revelou que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência e que 23% acreditam que a produção científica não beneficia a sociedade.
Mais grave: metade dos brasileiros afirmaram que a “a ciência discorda da minha religião” e desses 75% (37,5% do total) disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”.

Não por acaso, o apoio ao presidente é maior entre os evangélicos. Nesse segmento, o desempenho do presidente na crise sanitária é considerado “ótimo e bom” para 41% e “regular” para 29%, enquanto que 60% acha que ele tem condições de liderar o país.
Nas próximas semanas estaremos no pico da pandemia, mas está caindo, em várias cidades, o respeito ao isolamento social. Na 4ª feira, apenas 51% dos paulistanos ficaram em casa, quando o ideal seria 70%. Nas áreas mais periféricas o desrespeito é generalizado; nesse sábado, o comercio estava a toda e vários bailes funk ocorreram em espaços públicos.
A situação é de extrema gravidade. Por um lado, o presidente estimula a retomada das atividades e o fim do isolamento, influenciando tanto trabalhadores informais e micro empresários em dificuldades econômicas, como os já contaminados pelo bolsonavirus, que não acreditam na ciência e, portanto, nas recomendações sanitárias.
Por outro, os mais pobres e vulneráveis se veem obrigados a buscar alguma renda frente à demora e falta de coordenação governamental e federativa em apoiar uma população, cujas condições de vida, moradia e transporte são favoráveis à propagação do Covid 19, como mostrei nas minhas últimas colunas.
Existe uma estratégia sanitária para enfrentar o Covid 19 que, se fosse bem sucedida, poderia reduzir os danos e encurtar a quarentena. Mas se o “bolsonavírus” prevalecer, o sacrifício dos que se isolaram será em vão e uma catástrofe poderá acontecer.
Muitos dos que apoiaram Bolsonaro na eleições de 2018, mesmo sabendo o que ele representava, acharam que seria apenas uma “dorzinha de barriga”. Agora todos estão vendo que é muito mais do que isso. ​

Nabil Bonduki
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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