Memórias de um ex-dependente da nicotina
As memórias surgem como fotografias, aceleram, virando filmes em câmera lenta. Depois vem as sensações, o frio na pele, os odores da manhã, a luminosidade daquele dia nublado. Finalmente chego no fundo do baú das memórias, guardadas num canto escuro do meu cérebro, a decepção consigo mesmo, a vergonha com o que você havia se tornado, tudo isso catalisado para dar suporte à tomada de atitude.
Bem, resumidamente, foi assim que parei de fumar:
Anápolis, 20 de Janeiro de 2000
Venta frio, um frio cortante. O vento causa um zunido estranho, prelúdio de chuva. Essa cidade, entre Goiânia e Brasília, que mais parece um iceberg encalhado no meio do Planalto Central. Chove e faz frio, sempre. Manchester no calor seco do centro do Brasil? Sempre chove em Anápolis.
E eu de sunga, ao lado meu futuro professor de natação e amigo. Ele, debaixo de um amplo guarda-sol – que tinha patrocínio de uma marca de cerveja amarela (oh, ironia!) – quer testar minha capacidade respiratória. Ex-jogador do time de basquete. Ex-ciclista. Sempre, sempre praticando algum esporte. Não naquela época, não depois dos excessos da juventude.
Mergulho numa piscina semi-olímpica de temperatura quase-polar, e não chego nem ao meio dela. Depois de tirar a cabeça da água e me dar conta de onde tinha conseguido chegar me senti estúpido, me senti mais velho do que minha carteira de identidade dizia, me senti fraco, me senti dominado por uma maldita droga sabidamente cancerígena.
Sejamos sinceros, quem além do próprio mefisto teria colocado no mundo, folhas trituradas e misturadas com outras substâncias para potencializar o vício, enroladas num papel no qual se acende de um lado, suga-se a fumaça do outro, para depois exala-lá achando tudo isso glamouroso, cult, tão stylish como uma foto do James Dean, como Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany’s. Bom, mas se for de outra época, não se preocupe, existem outras referências sempre a mão. A indústria é extremamente profissional quanto a isso.
Só mesmo a infindável estupidez humana pra criar o hábito de jorrar fumaça numa obra prima da engenharia evolutiva, que chamamos de pulmões. Ela entra, mas não sai antes de deixar pelo caminho todas as suas toxinas e sujeiras. Não antes de jogar na corrente sanguínea doses de nicotina que 8 segundos depois já estão no cérebro mostrando seu poder.
A nicotina é tão viciante quanto cocaína e a heroína. Ela é a chave idêntica pra um outro neurotransmissor envolvido em muitas outras funções do corpo. Pra mim, servia pra ativar a memória e reduzir a ansiedade. Era por isso que fumava. Além de, óbvio, ser o complemento perfeito pra uma cerveja ou um café. Além de óbvio achar aquilo “bonito”.
Naquele dia frio, depois de 3 ou 4 tentativas anteriores (a maior com 1 ano e 8 meses) decidi que não fumaria mais; tomaria água; mascaria um chiclete; usaria adesivos; daria um chute na quina da porta. Mas não fumaria mais. Aliás, percebam que a nicotina pode ser absorvida por várias formas, narinas, língua, pele, etc., então não questionem o fato que fumantes passivos fumam quase o mesmo que um fumante ativo.
Aqui estou. Muitos amigos meus ainda fumam. E eu custo a acreditar nisso. Em pleno séc. 21, gente que fuma. Gente que defende o “direito” de fumar. É sério isso? Sabidamente alimentam uma das doenças mais destruidoras que surgiu na nossa breve existência. O câncer destrói não só quem o tem, ele é devastador principalmente pra quem está em volta. Pais, filhos, companheiros, etc. E a conta no final é de todos.
Nadar foi meu refúgio. O mesmo refúgio que achava ter encontrado no cigarro pra reduzir a ansiedade. E quer saber, perdi momentos únicos da minha vida permitindo que meu cérebro fosse enganado por uma falsária que levava a chave, mas deixava um rastro de sujeira permanente no meu corpo.
A ansiedade e o estresse fazem parte da vida. Só os covardes fogem dela. Só os estúpidos ainda inalam uma fumaça assassina pra dentro máquina quase-perfeita que é o corpo humano. Ainda, por que antes não sabíamos o mecanismo, o funcionamento. E não havia a tecnologia.
Estúpido, eu fui. Covarde, não depois daquele dia. Uma pena que ainda exista uma multidão ai fora. Usando falácias, pra tentar argumentar, pra justificar o injustificável. Hoje só falta a atitude. O querer.
Só falta o mergulho numa piscina gelada num dia frio. Não é muito.
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