Violet Blue |
Um executivo da indústria da publicidade online, com 20 anos de experiência, diz que as estratégias de marketing da publicidade digital ensinam a recolher informações de usuários da internet para usá-los em publicidade dirigida. Isso, diz ele, explica por que o público norte-americano já aceita sem protestar o aparato de vigilância e os programas que recolhem dados de usuários da internet – especificamente o programa PRISM, da Agência de Segurança Nacional dos EUA.
O diretor de estratégias da Digital Net Agency, Skip Graham, acredita que a indústria da publicidade é cúmplice no processo de abrir caminho para que os norte-americanos aceitem programas como PRISM, uma vez que, há anos, a publicidade encarregou-se de “suavizar” o ponto de vista dos consumidores sobre questões de privacidade – “ensinando” o público a ser menos reservado na distribuição de informação pessoal online.
Essa semana, Graham escreveu à nossa rede ZDNet, por e-mail:
Skip Graham |
O modo como a indústria da publicidade online opera parece não ter qualquer correlação com os esforços do governo dos EUA para espionar os cidadãos – mas... será que não há aí uma correlação forte? Quantos, dos dados que hoje estão sendo recolhidos pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, não foram encontrados principalmente porque nós ensinamos aos consumidores que não haveria problema algum em recolhermos e armazenar aqueles dados, para nosso uso? Temo que, se alguém começar a pensar, descobrirá exatamente isso.
Domingo passado, depois que se divulgou o vídeo com a entrevista ao vivo de Edward Snowden, Graham escreveu, numa grande lista fechada da indústria de publicidade online, denunciando sua própria indústria como cúmplice do escândalo na espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA, porque essa indústria “adestrou” os consumidores, ensinando-os a considerar segura, possível, inevitável, até benéfica e interessante, a coleta de dados pessoais sigilosos, por empresas privadas.
Não é segredo que a indústria da publicidade & marketing é mestre em técnicas de propaganda (e sabem que são). Graham responsabilizou diretamente seus pares da indústria da publicidade, declarando-os culpados do pior que poderia acontecer aos cidadãos norte-americanos e a todos os consumidores em todo o mundo:
Não acredito que a Agência de Segurança Nacional e o governo dos EUA se tenham posto tão descaradamente a fazer o que fazem, sem temer violar direitos constitucionais, literalmente por anos a fio, se, antes deles, as melhores cabeças do marketing não se tivessem encarregado de convencer os consumidores de que seria “natural” empresas privadas recolherem dados privados das pessoas, e que poderiam fazê-lo sem qualquer restrição.
Fomos os primeiros a dizer ao público consumidor que não havia por que se preocupar, que todos tivessem fé e confiassem cegamente. Nós esculpimos os argumentos, modelamos as opiniões, calamos os céticos.
Endereço grátis de e-mail – em troca de publicidade dirigida
A indústria da publicidade, Graham insiste, ao mesmo tempo ampliou os limites da aceitação pelo público consumidor; e engordou os arquivos de dados de consumidores fornecidos pelas empresas à Agência de Segurança Nacional.
Perguntado especificamente sobre como a admissibilidade da coleta de dados e informações privadas foi sendo “vendida” aos consumidores, tornando-os cada dia mais tolerantes, Graham explicou a evolução de uma bem-sucedida relação com os clientes, dependente de uma série de palavras-chaves, mediante as quais foi possível descobrir gostos, interesses e rejeições individuais dos clientes.
Daí, as coisas passaram ao nível seguinte, disse ele,
(...) com o advento do serviço de e-mails gratuitos da empresa Gmail. Quem solicitasse recebia um endereço gratuito, em troca de a empresa Google poder monitorar o conteúdo de sua correspondência, o que permitiu à empresa dirigir publicidade relevante para a interface de correio.
De início, a reação do público foi extremamente negativa, rejeitando a intrusão. Fui dos que apoiamos pessoalmente as atividades da empresa Google, e, isso, baseados numa simples premissa: é serviço gratuito, ninguém é obrigado a servir-se dele.
Além disso, entendi que o modelo de negócio da empresa Google visava a conseguir que os consumidores se sentissem confortáveis com o modo como a empresa usa os dados pessoais de cada um. Esse seria um forte incentivo para que a empresa se autorregulasse adequadamente. Mas a ideia de que “há alguém lendo seus e-mails” continuava a ser ideia absolutamente não americana.
Graham explicou que o desafio, então, passou a ser guiar os consumidores para que superassem quaisquer hesitações que restassem em relação à ideia de que empresas privadas, como a Google, estariam lendo as mensagens pessoais privadas de cada um. O consumidor tinha de sentir-se seguro, mesmo sob essas circunstâncias.
Para que as pessoas se sentissem confortáveis com essa ideia – disse ele – seria indispensável informar sobre como os dados, de fato, eram recolhidos e analisados.
Um novo exemplo da busca por meios pelos quais “selecionar” os dados de perfil dos usuários, usando palavras chaves – reforçando a ideia de que o usuário “consente” – é a nova implementação da #hashtag, pela empresa Facebook.
Publicidade como vigilância menos invasiva
Na 5ª-feira, Facebook anunciou que acrescentará a ferramenta #hashtag, a ser usada de modo semelhante ao que faz a empresa Twitter, como mecanismo para busca por palavras.
Matthew Linley |
Mas o raciocínio que subjaz à nova ferramenta é bem mais complexo do que facilitar a conversação entre pessoas polidas. No artigo “Facebook Hashtags Have More To Do With Ad Targeting Than Twitter” [As hashtags de Facebook têm mais a ver com publicidade dirigida que as do Twitter], Matthew Linley, de Buzzfeed, explicou:
Na superfície, as hashtags ajudarão os usuários de Facebook a participar de”‘discussões públicas” (...). Mais importante que isso, as hashtags são instrumentos menos invasivos, para que os anunciantes sirvam-se da plataforma Facebook.
De fato: são meio menos invasivo; e ajudam muito a recolher dados dos usuários! No que isso tem a ver com o programa de coleta de dados PRISM, da Agência de Segurança Nacional – “interceptação legal” – de empresas como Google e Facebook, Graham disse à nossa rede ZDNet:
Acho também muito importante entender que tudo isso É violação dos direitos constitucionais de todos.
A única defesa que se sustenta, de que essas atividades da Agência de Segurança Nacional não sejam invasão ilegal de privacidade de todos os cidadãos dos EUA é que os “dados” assim coletados estão sendo armazenados, mas não estão sendo analisados e, portanto, nenhuma “privacidade” está sendo violada. Também é verdade que os dados estão sendo recolhidos mediante processo legal, aprovado por tribunais.
Mas o problema é que esses tribunais e todo o processo são secretos. Isso significa que tudo está sendo feito, de fato, à margem do processo democrático. Questão dessa importância deve ser discutida pelos cidadãos e regulada por lei, em processo judicial aberto, público. Como são feitas as coisas hoje, só burocratas decidem, usando ordens secretas do Executivo como única orientação. Isso tem de parar.
Steve Hall |
No que Steve Hall (Adrants) descreveu como “momento crise de consciência”, Graham disse a colegas de todo o espectro da indústria da publicidade, que eles têm de repensar tudo:
Durante anos, como marketeiros da publicidade digital, criamos sistemas que reúnem quantidades astronômicas de dados pessoais, ao mesmo tempo em que dizíamos aos consumidores que eles nada tinham a temer do que nós fazíamos. Dissemos a eles que, apesar de, na essência, estarmos espionando tudo que eles faziam e tomando decisões calculadas para manipular as decisões dos consumidores baseados, nós, nas informações que reuníamos, sempre seria bom para eles e que eles continuavam a ter preservado seu anonimato e, portanto, a privacidade deles não estaria ameaçada.
E continuamos a repetir isso, embora qualquer mínimo esforço para analisar as coisas com perspectiva de futuro já bastasse para nos mostrar que a privacidade dos consumidores estava sendo, isso sim, mortalmente ameaçada.
Graham ainda acredita que sua indústria da publicidade fez da internet um lugar melhor para todos, mas fato é que o negócio de oferecer serviços de internet em troca de recolher informações pessoais dos usuários põe a indústria perigosamente muito próxima das práticas e atividades da Agência de Segurança Nacional dos EUA.
Graham disse à nossa rede ZDNet que:
Eu e muitos na nossa indústria acreditávamos que nosso processo de monitorar, preservando o anonimato, arquivar e revisar as atividades das pessoas exclusivamente por computadores havia produzido uma experiência em geral melhor para o consumidor e para a indústria. Ainda acredito nisso.
Mas, ao longo daquele processo, tivemos de repetidas vezes defender o que fazíamos, contra acusações de invasão de privacidade, por organizações e grupos de defesa dos direitos dos cidadãos.
Hoje, minha avaliação é que os nossos repetidos esforços para explicar como o processo de coleta e armazenamento de dados poderia ser feito sem violar a privacidade do consumidor levou a um efeito não desejado: criamos um ambiente no qual o consumidor foi várias vezes tranquilizado, por empresas privadas, fora do governo, de que a coleta de dados sobre ações e atividades pessoais poderia ser feita sem invasão indevida da privacidade.
Convencemos a opinião pública de que as pessoas estariam seguras, que bastaria a autorregulação, que nenhuma lei faria melhor. Hoje, a Agência de Segurança Nacional e o governo Obama estão usando precisamente o mesmo argumento.
Quando perguntei se a indústria da publicidade & marketing poderia corrigir o próprio curso, Graham mostrou-se otimista, mas não mudou o discurso:
Acho, primeiro, que a indústria terá de aceitar o fato de que teremos de fazer alguma forte distinção entre o que nós fazemos e o que o governo está tentando fazer.
É uma distinção que a maioria, no nosso espaço, não quererá fazer, porque não querem nem pensar em qualquer correlação entre esses dois campos. Passamos anos tentando fazer o consumidor aceitar que nos preocupávamos com ele, que não queríamos causar-lhe nenhum dano e que nossas atividades criariam um benefício.
A última coisa que alguém deseja é nos ver diretamente associados ao que, como muitos já vêm, pode ser a maior agressão, em toda a nossa geração, às nossas liberdades individuais.
Acho que é responsabilidade da indústria privada e das organizações que coletam dados sobre os indivíduos demarcar claramente uma diferença entre o que nós fazemos e o que o governo está fazendo. É o que estou fazendo aqui.
O lado obscuro da moderna tecnologia é uma “corrida armamentista” para ver quem coleta mais e melhores dados: os chamados registros de dados de “people finder”, a indústria de publicidade & marketing, os spammers, empresas privadas (como Google e Facebook) e o governo dos EUA, todos empenhados num mesmo frenesi para coletar a maior quantidade possível de dados pessoais e privados, da maior quantidade possível de pessoas – no limite da lei e, às vezes, bem além do que a lei permite fazer.
Até parece boa ideia dizer às pessoas que ninguém teria nada a reclamar de algo que lhe seja dado gratuitamente, e que qualquer consumidor pode simplesmente escolher não usar e-mail, Facebook, ou o buscador internet, se decidir não usá-los, se não quiser ter seus dados monitorados, armazenados, analisados e, potencialmente, usados contra ele mesmo ou contra outros, sem seu consentimento...
Mas a verdade é que esse argumento fica reduzido a zero, ante a realidade do dia a dia, por um lado; e, por outro, ante os tribunais secretos da Agência de Segurança Nacional.
Não há exemplo mais claro, para demonstrar que nem o mais esperto, o mais ilustrado, o mais bem informado dos consumidores tem sequer uma pálida ideia do que realmente está entregando, quando decide usar o que lhe seja oferecido por Apple, Skype, Facebook ou Google. E não faltam interessados em tirar a máxima vantagem de tudo que consigam arrancar de cada um de nós.
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