Mas se existe alguma coisa que aprendi na vida sobre escrever é a prestar atenção ao que nos brota espontaneamente da cabeça, sem muitas elaborações.
À noite, depois de checar e rechecar informações, cumpri o penoso dever de informar que não haverá Constituinte exclusiva para fazer a reforma política. As razões jurídicas podem ser boas; as políticas foram péssimas e, potencialmente, desastrosas.
Péssimo, primeiro, porque coloca em risco e limita a necessidade nacional de remover as distorções que, junto com as deformações da mídia, tem sido o maior obstáculo aos avanços de uma política de desenvolvimento e de justiça social em nosso país.
Em ambos os campos, mantivemos todas as práticas tradicionais – e conservadoras – de relacionamento.
De um lado, recusamos a polêmica com a mídia convencional que – embora deva ser respeitada – deve estar longe de constituir o canal único de comunicação entre Governo e povo. Se jornal nenhum ou apenas a tevê bastam para que ambos se comuniquem, muito menos ainda uma mídia oligopolizada e hostil – ao ponto de uma afirmar que é ela própria a única oposição no Brasil – cumprirá este papel.
Marqueteiros e assessores de imprensa – e quem fala já trabalhou nos dois papéis – são auxiliares circunstanciais, extremamente úteis na forma de dizer, mas não substituem, nos líderes, convicções e conteúdos. Menos ainda a luta política que se trava a médio e longo prazo para mudar o Brasil.
Mudar o Brasil não se fará com espasmos de comunicação direta, com consequentes mobilizações esporádicas, ambos restritos aos períodos de campanhas eleitorais.
Exige que o governante, o líder, esteja -com todas as formas a seu alcance – falando com a população e, ao lado dela, travando a polêmica sobre cada política pública e cada embate político que sua adoção exige.
De outro lado, deixamos nos manietar pela necessidade – e é necessidade – da formação de uma ampla base parlamentar, como se isso bastasse para conduzir as mudanças no parlamento. Não é, porque, imensa, a base é amorfa, flácida, renitente, chantagista e sólida como uma geléia.
Nela, perdemos nossa identidade e levamos ao desânimo e à exaustão os que permanecem firmes, que passam a ser vistos como radicais e dissolventes. Dizemos à vanguarda: juntem-se ao atraso e não aborreçam!
A pretensão à unanimidade, para não reproduzir a frase célebre de Nélson Rodrigues, é uma armadilha perigosa.
Para sermos aceitos por todos é preciso sermos nada e não sermos o que somos: transformadores.
Pior ainda, é precária, porque entregamos aos nossos adversários o “poder” de nos legitimar – paradoxalmente, porque isso veio justamente do confronto vencido com eles – e eles, cedo ou tarde, nos tirarão a legitimidade.
A história é pródiga em exemplos.
Jango recuperou seus poderes presidenciais em janeiro de 1963, num plebiscito onde teve 92% dos votos. Menos de 15 meses depois foi derrubado por mídia, militares e classes médias, diante de um povo atônito, desmobilizado – ou tarde demais mobilizado – por não compreender porque o programa reformista não se definia no Congresso, depois de ter tirado deste e entregue ao Presidente, o poder conferido pelo voto – e por tantos votos.
Lula, consagrado em 2002, tratado como unanimidade nos primeiros anos – em boa parte graças à política de compromisso expressa na tal “Carta aos Brasileiros” - balançou em 2005 com a CPI dos Correios e o escândalo no qual a mídia endeusou uma figura da estirpe de Roberto Jefferson. Salvou-o, nas eleições de 2006, o discurso nacionalista tão recusado antes como “arcaico”, que permitiu despertar no povo o horror à entrega do país, que jazia inexpresso por anos de políticas neoliberais.
O que consagrou Lula e conduziu Dilma ao Governo, senão o significado intrínseco a ambas as figuras, o operário e a combatente, como capazes de efetivar mudanças, a maior delas a elevação dos salários e a inclusão de imensas camadas do povo brasileiro no mundo do consumo, que é o direito moderno da cidadania?
Mas, a seguir, aceitamos placidamente o discurso de nossos adversários e, talvez agora, nossos algozes.
Deixamos, na busca da unanimidade, a “faxina” ser o centro de nossa imagem, quando a honradez de nossos propósitos é que se constitui no cerne de nosso sentido. A governante menos tolerante e impiedosa com a corrupção que este país já teve é, por conta da necessidade de a todos agradar, lançada no vórtice de uma generalizada falta de ética e compromisso popular de políticos e governantes da “base aliada”, onde até mesmo os que não são assim sentem a necessidade de abrandar-se e “não chacoalhar” o status quo.
Mas isso é reflexão e reflexão só tem sentido quando norteia a ação. Somos militantes, não personagens do reino da quinta-essência de Rabelais, que nos dediquemos a coisas diletantes como medir o salto das pulgas.
Para podermos prosseguir neste grande e generoso projeto de mudanças na vida brasileira, para seguirmos mudando o Brasil, precisamos mudar, também.
Não podemos esquecer que dissemos ao povo que não tínhamos medo da felicidade, assim como não podemos ter medo das ruas, embora esteja mais do que evidente a presença de pessoas e conteúdos de direita e de provocação.
É preciso corresponder ao que despertamos.
Não basta, no plebiscito, nos debatermos por questões técnicas – embora com conteúdo político fortíssimo – como a de voto distrital ou financiamento de campanhas.
É preciso de uma “cara” para o que significamos.
Essa cara é o enxugamento da hipertrofia de nosso poder Legislativo, gerada justamente pela ditadura que, por essa via, diluir e corromper a representação política.
A rigor, o regime autoritário “distritalizou” o voto proporcional e fez crescer o paroquialismo e o fisiologismo do “vou trazer verbas para nossa cidade”, como sendo essa a missão do parlamentar e não a representação de ideias e conviçcões. Até nos partidos, internamente, isso gerou “feudos” e distorções.
A população entende isso claramente e não foi outra coisa que tornou célebre, a ponto de inspirar música, os “300 picaretas” de que Lula falou, em 1993:
“Há no congresso uma minoria que se preocupa e trabalha pelo país, mas há uma maioria de uns trezentos picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”.
A reação do Congresso foi violenta e conseguiram mesmo censurar a execução da música nas rádios. Mas não conseguiram, nem antes nem agora, tirar das ruas o sentimento de que Lula tinha razão.
Lula tinha razão e só ele pode personificar, diante do povo brasileiro, o sentido prático de uma reforma política. Um congresso mais enxuto e de ideias, que não se perca em mordomias, paroquialismo e fisiologismo e cumpra sua missão de expressar o desejo de mudança da população em todos os dias, e não apenas, como agora, conduzido sob vara pelas ruas.
Só ele pode fazer o que Dilma não pode, até pela sua condição de Chefe de Estado, fazer.
Ou lutaremos, como ele propôs, como leões, ou sairemos como coelhos assustados e atônitos.
Perdidos no tecnicismo ou em constitucionalismos vagos, a mídia conservadora vai pautar o debate e impor as soluções que lhe garantam, mais até do que agora, o controle do poder Legislativo.
E, de uma e de outro, continuaremos refém, por mais que o povo brasileiro nos dê, pelo voto, a sua confiança.
Porque, num instante, essas duas forças conservadoras nos retirarão desta posição, se não travarmos luta nesses campos e acharmos que governar é gerir bem, apenas.
Não é, é preciso travar a luta política.
A qualquer preço, como é o exemplo mais dramático o Getúlio de 54, que exorcizou o golpe, por 10 anos.
Ou seremos devorados, massacrados, aniquilados por anos, como fomos em 1964.
A escolha é entre lutar ou morrer, ninguém se iluda.
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