domingo, 19 de junho de 2016

A donzela de Orléans e as pedaladas

Rogério Cezar de Cerqueira Leite: A donzela de Orléans e as pedaladas - 17/06/2016 - Opinião - Folha de S.Paulo




Rogério Cezar de Cerqueira Leite





A donzela de Orléans e as pedaladas



Uma das cenas mais aterradoras da Guerra dos Cem Anos ocorreu em 1431,
quando uma donzela de 19 anos foi colocada em uma pilha de toras de
madeira e queimada viva.





Aquela foi a segunda vez em que esteve presa. O interrogatório foi
longo, quase um ano, e a principal queixa de heresia foi a de se vestir
como homem. Ela era guerreira, usava em batalhas armadura de metal, em
vez de saia e babados.





Nos quartéis, seria atacada sexualmente se usasse decotes, pois os
relatos da época dizem que esse era o comportamento usual de soldados.
Demorou quase cinco séculos para que a história reconhecesse Joana d'Arc
como sua maior heroína. À época não havia internet.





O pecado da presidente afastada Dilma Rousseff foi aprovar umas
pedaladas, ou seja, deixar de pagar os bancos oficiais, o que governos
anteriores faziam regularmente, inclusive o de Fernando Henrique
Cardoso.





E agora o governo dos inquisidores anuncia uma superpedalada no BNDES,
R$ 100 bilhões. Só há uma diferença: ao invés de atrasar o repasse,
exige pagamentos adiantados de parte da dívida do banco com o Tesouro.
Imagine a situação: alguém compra uma geladeira, por exemplo, e o
vendedor exige pagamento adiantado de mensalidades.





É bom que se diga que sangrar o BNDES, ferramenta essencial para a
retomada do desenvolvimento econômico e social do país, é a medida mais
contraditória que se poderia imaginar, principalmente no estado
recessivo no qual o Brasil se encontra, o que até economistas são
capazes de perceber.





Pois é, Dilma não usava roupas masculinas, mas atrasou pagamentos aos
bancos do próprio governo. A desculpa para jogar Dilma na fogueira é tão
estapafúrdia quanto aquela heresia usada contra Joana d'Arc, e tão
medieval quanto.





A donzela de Orléans pegou em armas para livrar seu país do jugo dos
ingleses e do entreguismo dos dirigentes da província de Borgonha,
aliados na luta contra o legítimo herdeiro do trono da França. Foi um
episódio nacionalista pela recuperação da soberania da conflagrada
nação.





Vai ser difícil apagar a história também aqui no Brasil. Já está escrito
o que foi feito pela educação: 23 novas universidades federais, 173
novos campi universitários, 422 novas escolas técnicas, o ProUni, o
Fies, a capacitação de 200 mil professores da educação básica, entre
outras ações.





O rompimento dos compromissos com a educação e a saúde, a desvinculação
de percentuais do orçamento, propostas do governo interino, não
eliminarão o que foi feito. O Bolsa Família é o mais bem-sucedido
programa de combate à pobreza e ao analfabetismo do mundo, e é assim
reconhecido universalmente.





O aumento do salário mínimo e a quase eliminação da pobreza, com 30
milhões escapando da miséria, são resultados que não serão esquecidos
pela posteridade, apesar da eficiente propaganda da Globo.





Podem caçar o Lula, podem caçar a Dilma, podem desbaratar o PT, mas o
futuro lhes fará justiça. Não será necessário esperar 500 anos. O futuro
não mais pertencerá às oligarquias. O futuro pertence ao homem do povo,
ao cidadão comum.




ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 84, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha

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