Não são apenas dez medidas e não se restringem ao combate à corrupção
“Mais preocupante do que pôr aletargia judicial na conta da defesa é, em nome do combate à impunidade,
desconsiderar solenemente a seletividade do sistema de justiça criminal
brasileiro”, observa Ricardo André de Souza, defensor público do Rio de
Janeiro
Ricardo André de Souza *
Talvez a maior dificuldade da chamada à
reflexão sobre um projeto de lei de iniciativa popular que: (a) se
ampara em mais de dois milhões de assinaturas; (b) é capitaneado por uma
“força-tarefa” composta por membros da Instituição que tem a missão
constitucional de patrocinar a acusação criminal e; (c) conta ainda com o
apoio declarado de magistrado que se tornou ícone de um propalado
“combate à corrupção”, talvez a maior dificuldade de refletir a partir
dessas bases seja o fato de que já há, de plano, uma opinião formada
acerca do tema.
“Você é contra a corrupção? Então colabore conosco para pôr na cadeia
os que desviam dinheiro da saúde e da educação prejudicando a vida de
milhões de brasileiros.” É uma promessa sedutora, devemos reconhecer,
mormente numa quadra histórica em que a grade jornalística está coalhada
de notícias sobre malfeitos, investigações e crimes contra o patrimônio
público. Nada como alterações legislativas capazes de enfrentar, no
futuro, aquilo que do passado não se quer ver repetir. Ou ainda, diante
de situações específicas, aprovar inovações legislativas de caráter
geral tendentes a um mesmo propósito: o fim da corrupção. “Onde eu
assino?”
O Projeto de Lei nº 4.850/16 não traz apenas dez medidas, tampouco estas se restringem à corrupção. Foi preciso o marketing habilidoso
das “10 Medidas Contra a Corrupção” para dar sustento popular e tornar
palatável a árida proposição construída com quase 70 artigos que inovam,
alteram e revogam cerca de outros 40 dispositivos legais. Algumas
dessas proposições violam institutos consolidados no processo penal
brasileiro há décadas e sufragados como cláusula pétrea pela
Constituição da República de 1988. É o caso da mutilação do habeas
corpus e da admissão de provas obtidas por meios ilícitos, garantias
fundamentais à disposição do povo contra o arbítrio e como limite ao
poder de punir do Estado.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o projeto parte de duas premissas
básicas. Primeira: a morosidade da Justiça deriva do abuso do direito
de defesa. Segunda: o Brasil é o país da impunidade. Dois slogans, tão velhos quanto conhecidos.
Devido
ao açodamento típico das legislações de emergência, o projeto carece de
coerência, algo que fica claro quando em nome da agilidade processual
se extingue um recurso exclusivo da defesa enquanto cria dois outros
recursos exclusivos para a acusação. É falaciosa a atribuição de
eventuais letargias processuais ao uso do direito de defesa – que,
aliás, ao contrário do juiz, tem prazo para falar nos autos. Onde há
eventual abuso, é evidente que um Ministério Público atento e um
Judiciário minimamente diligente já dispõem de mecanismos legais capazes
de imprimir celeridade aos processos. Para tanto, não se faz necessária
a limitação estrutural do direito de defesa, menos ainda quando vem
acompanhada da ampliação e da facilitação do poder punitivo estatal.
Mais preocupante do que pôr a letargia judicial na conta da defesa é,
em nome do combate à impunidade, desconsiderar solenemente a
seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro. Dos cerca de 1,5
mil tipos penais previstos na legislação codificada e esparsa apenas
cinco crimes são responsáveis pelo encarceramento de cerca 80% dos
brasileiros privados de liberdade: homicídio, roubo, furto, tráfico de
drogas e posse/porte de armas de fogo. Nenhum deles se relaciona com a
criminalidade do colarinho branco que se pretende ver punida, além de
evidenciar os estratos sociais-alvo da malha criminal. É o que torna
possível antever que a limitação do direito de defesa e a ampliação dos
poderes acusatórios (nos planos processual e penal) representarão o
aprofundamento da referida seletividade, num continuum de
hiper-encarceramento das camadas vulneráveis e periféricas e de
cristalização das conhecidas mazelas do sistema penitenciário
brasileiro.
O exponencial aumento da massa carcerária ocorrida nos últimos anos
(mais de 600% desde 1998) não foi acompanhado de impacto significativo
nos índices de violência urbana, problemas atravessados por
determinações alheias ao recrudescimento das leis penais. A última vez
na história em que se ceifaram instrumentos jurídicos à disposição do
cidadão sob o argumento de que eles estariam servindo de meio para a
impunidade foi com o AI nº 5, em dezembro de 1968, inaugurando os anos
de chumbo da ditadura militar brasileira. O legítimo combate à corrupção
não pode estar atrelada à perda de direitos.
Por mais bem intencionada que uma campanha publicitária emergencial e
pouco transparente como a das “10 medidas” venha a ser, não se pode
admitir que sejam aprovadas, de atropelo, proposições reformadoras de
todo o sistema processual e penal brasileiro. Espera-se que legítimo
manto do combate à corrupção não faça as vezes de um Cavalo de Tróia a
permitir que a história se repita como farsa.
* Subcoordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública
do Estado do Rio de Janeiro e integrante do grupo de defensores
mobilizados na campanha Dez Medidas em Xeque – Pelo Fim da Corrupção, Sem Perda de Direitos.
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