Falta uma oposição real no Brasil, que imponha outra agenda no debate público
Produzir sua própria oposição, definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um “poder perfeito
Uma das mais astutas peças da engenharia política colocada em operação pela ditadura militar consistiu
na produção de sua própria oposição. Dificilmente encontraremos uma
ditadura que, logo ao ser implementada, não anulou toda a oposição, mas
na verdade criou seu próprio partido de oposição. Ou seja, o MDB é
um produto da ditadura, talvez seu produto mais impressionante. O que
demonstrava como, desde o início, tratava-se de uma ditadura que não se
via como uma operação de intervenção cirúrgica, mas como um movimento de
reformulação profunda da vida nacional feito para durar mesmo depois do
seu fim.
Produzir sua própria oposição,
definir as modalidades de sua própria resistência é a forma mesma de um
“poder perfeito”. Pois o poder se exerce não exatamente quando
definimos as normas a serem seguidas. Ele se exerce principalmente
quando definimos as margens, quando organizamos as posições e as formas
de resistência que os descontentes poderão ocupar. Um poder perfeito é
aquele que é, ao mesmo tempo, a norma e a resistência.
Assim,
ao definir as condição de sua própria oposição, ou seja, ao construir o
próprio ator que a sucederia depois de seu término, a ditadura
brasileira encontrou uma maneira de fazer, da Nova República, apenas a
ocasião de seu próprio desdobramento. Como se disse várias vezes antes, o
MDB era sobretudo um modelo de paralisia, uma forma de travar as lutas e
dinâmicas de conflitos sociais próprios à realidade brasileira. Esta
paralisia acabou por levar a Nova República ao colapso e, ironia maior da história, ao restabelecimento de novos representantes do setor mais violento da ditadura militar.
Um processo similar está em curso atualmente, a saber, as forças em torno do governo, ou que um dia giraram em torno do governo,
estão a construir sua própria oposição. Neste sentido, é digno de nota a
maneira com que o espaço da oposição é atualmente ocupado,
principalmente, por antigos aliados, por apoiadores ocasionais ou ainda
por atores de espectros políticos próximos àquele assumido pelo governo.
Isto é parte fundamental de uma operação de restrição e gestão do
horizonte de debate nacional. Não por acaso, o discurso oposicionista
começa a se configurar como um discurso de crítica à política ambiental,
às “derrapadas” do governo, a sua “insensibilidade” para com setores
historicamente violentados, mas que sempre termina por lembrar: “embora
tudo isto ocorra, sua política econômica é boa”. Como se estivéssemos a
ver a gestação de novos candidatos a gerentes de uma política econômica
aparentemente consensual, a despeito de seus resultados catastróficos.
Assim, da mesmo forma como em Aristóteles a atualidade é a situação
atual mais a soma de seus possíveis, constrói-se paulatinamente
horizonte dos possíveis deste atual governo.
Como
a outra face necessária dessa moeda, vemos desenhar-se no Brasil um
tipo de movimento que parece querer repetir o que se passou na Itália nas
últimas décadas. Desde o fim da Segunda Guerra, a Itália despontou como
um país de esquerda em ebulição. O maior partido comunista da Europa,
movimentos autonomistas extremamente dinâmicos e contestadores,
movimentos sociais múltiplos. No entanto, não há sequer sombra disto
atualmente. Simplesmente não há mais esquerda italiana. O que aconteceu?
Se quisermos fazer a arqueologia de Bolsonaro chegaremos necessariamente a Silvio Berlusconi,
certamente o primeiro da série de líderes populares de extrema-direita
que dão o tom da política mundial. Quando Berlusconi emergiu, todo o
resto do espectro político foi paulatinamente se configurando em enormes
“frentes de resistência”. Ou seja, a política se resumiu a Berlusconi e
as resistências a ele. Essas grandes frentes, no entanto, quando
conseguiam desalojá-lo não eram capazes de realmente governar. Pois não
havia nada que os uniam a não ser a recusa a Berlusconi. Principalmente,
tais frentes tendiam a anular as forças de esquerda no interior de
dinâmicas gerenciais de poder. Sem espaço para impor suas dinâmicas de
ruptura, a esquerda era convocada à responsabilidade de sustentar
governos com a paralisia das coalizões heteróclitas. Assim, no interior
desta dinâmica de frente ampla, todos se enfraqueceram, pois a única
força política real era Berlusconi. A única força política real, que
pregava a ruptura, estava fora da frente. Todo o resto era a expressão
da ordem, de uma ordem que ninguém queria mais. O resultado final
demonstrou-se absolutamente inefetivo. Quando Berlusconi enfim caiu em
definitivo, seu lugar foi ocupado não por atores dessa frente ampla, mas
por alguém ainda pior que ele, alguém cujas simpatias fascistas eram
ainda mais evidentes, a saber, Matteo Salvini.
Mesmo fora do governo depois de uma manobra desastrada, Salvini
permanece o político mais popular da Itália, prestes a retornar ao poder
na próxima eleição.
Isto apenas demonstra como, em
política, resistir é perder. Resistir é apenas confessar que não é você
quem controla a agenda política, quem tem a força de produzir a agenda.
Você simplesmente responde negativamente a uma agenda decidida por
outro. A política de frente ampla, de todos contra Bolsonaro será
impotente diante de uma “oposição consentida” que está a ser gestada
atualmente e que visa garantir a proliferação de atores dispostos a
perpetuar as políticas do atual governo, apenas com diferentes graus de
temperatura e pressão.
Neste ponto fica claro o que falta
a uma oposição real no Brasil. Falta-lhe a capacidade de impor no
debate público os tópicos de outra agenda. Quando a finada Margareth Thatcher
estabeleceu seu braço de ferro contra os mineiros britânicos em greve,
ela durante meses repetia o mantra: “Não há alternativa”. O que sempre
foi a estratégia clássica do autoritarismo neoliberal, a saber, querer
vender a ideia de que o “remédio amargo” é o único remédio (diga-se de
passagem, amargo apenas para alguns, pois há sempre os que lucram muito
com o amargor de outros). Mas mostrar a existência de alternativas,
impor outra agenda, não pode em absoluto significar tentar reeditar o
que já foi tentado.
Por exemplo, em seus últimos trabalhos, o economista Thomas Piketty mostrou
aquilo que muitos críticos da política econômica do governos petistas
já perceberam: que não houve política de combate à desigualdade
realmente eficiente. Seus estudos mostram como a participação, na renda
total, dos 1% mais ricos cresceu no período do antigo governo e que o
crescimento da renda das classes mais pobres foi, na verdade, feita em
detrimento da faixa entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, ou
seja, em detrimento da classe média. Já havíamos percebido a ineficácia
da política em questão quando ficou claro que tudo o que ela havia
conseguido produzir fora levar o índice Gini (que mede a desigualdade)
aos patamares do início dos anos sessenta. Agora, fica claro em números
como ela foi também uma política de preservação e crescimento dos ganhos
da elite rentista brasileira, devido à ausência de qualquer reforma
fiscal que de fato transferisse a conta para os setores mais ricos da
sociedade. Tirar as consequências das ilusões de “todos ganhando” que
alimentou as políticas anteriores é condição necessária para que possa
aparecer uma oposição que faz minimente jus ao seu nome. Há um longo
debate a ser feito que, infelizmente, continuamos a nos recusar a fazer
enquanto “resistimos”.
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