No tornozelo
Lava Jato precisa de tornozeleira. (Reinaldo Azevedo)
Lava Jato precisa de tornozeleira
Limitar efeito de decisão do STF apenas aos réus que recorreram tempestivamente é uma agressão a direito fundamental
Em uma semana, leitor amigo, mudei de ideia sem ter mudado de lado num debate em particular. Decidi radicalizar.
“Está falando do quê?” Na sexta passada, neste espaço, saudei a maioria de 6 a 3 já então formada no STF em favor do inciso LV do artigo 5º da Constituição, que prevê a ampla defesa e o direito ao contraditório.
No caso em votação —concluída, no mérito, nesta quarta (2), por 7 a 4—, os ministros decidiram que o réu delatado fala depois do réu delator.
Se alguém voltar àquela coluna, lerá: “Defendo que se anule tudo porque se trata de direito fundamental, assegurado pelo artigo 5º da Carta”.
Dei uma piscadela, no entanto, para a modulação: “Mas deve prevalecer alguma acomodação. Dos males, o menor. O importante é resgatar o princípio e conter os golpistas do Estado de Direito. E isso foi feito”.
Os argumentos dos meus adversários teóricos pioraram bastante, em
particular o de pessoas dotadas intelectualmente para entender o debate.
Afirmar que, dada a ausência de uma lei ou norma de caráter ou efeito concreto, o tribunal não poderia ter apelado à norma abstrata (a Constituição) para assegurar a ampla defesa e o contraditório corresponde a escolher o vale-tudo.
Notem que o tribunal não está nem mesmo fazendo uma interpretação extensiva da Carta, a exemplo do que se deu com a criminalização da homofobia.
Estamos lidando com um dos pilares das democracias: o direito de defesa, protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 11) e pelo Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º), de que somos signatários.
Estranho seria se a ausência de lei de caráter ou efeito concreto tornasse sem efeito a norma abstrata, porquanto esta pode existir, felizmente, sem aquela, mas aquela inexiste sem esta.
Mudei em quê? Não condescendo mais com modulação nenhuma! É tal o descalabro a que se chegou que só “A Palavra” nos salva.
“Conhecereis a Constituição, e ela vos libertará”. O “Mito” não encontrará isso em João. Nem em Barroso, Fux ou Fachin.
O governo Bolsonaro é só o desastre contingente que a Lava Jato nos deixa como herança. Há um outro que vai além de um ou dois mandatos: a corrosão do valor abstrato da Justiça.
E, por favor, que extrema direita e extrema esquerda não se estreitem num abraço insano para tentar provar que tal valor, na prática, nunca se traduziu em justiça efetiva.
Ainda que eu flertasse, por apreço à argumentação, com tal afirmação, teria de dizer o óbvio: com bons princípios, podem-se corrigir os males da injustiça. Sem eles, a injustiça é que se firma como princípio. E aí estaremos danados, condenados ao voluntarismo dos cretinos e à demagogia dos populistas.
Sim, avançou-se um pouco, mas só a anulação de todas as condenações em processos da natureza de que se trata aqui dá concretude à norma abstrata.
Limitá-la apenas aos réus que recorreram tempestivamente constitui uma agressão a direito fundamental.
Um indivíduo não pode alegar ignorância da lei para sair incólume de um crime. O Estado, por seu turno, não pode sonegar ao indivíduo um direito que é seu alegando que este o ignorou no devido tempo. Erro em alguma coisa?
O Supremo, como ente, cometeu erros e omissões no curso do horror jurídico instaurado pela Lava Jato sob o pretexto de combater a corrupção. Tem a chance de corrigir parte do estrago.
Tal correção não vai proteger corruptos, mas restaurar a higidez da norma. Até porque não se estará substituindo condenação por absolvição. Trata-se de resgatar dos escombros o devido processo legal.
Para encerrar: o livro do não homicida —por intervenção divina, não por caráter— Rodrigo Janot evidencia que Lula era a caça da Lava Jato.
São tais e tantos os procedimentos heterodoxos da turma que, como se viu, não foi difícil para uma quadrilha, em sentido literal, explorar o mercado de ilegalidades que ela promoveu.
Quem precisa de tornozeleira não é Lula, mas os senhores procuradores: a tornozeleira da Constituição.
Poderão, assim, manter-se distantes de pistolas e de quadrilheiros.
*Publicado na Folha de S.Paulo
“Está falando do quê?” Na sexta passada, neste espaço, saudei a maioria de 6 a 3 já então formada no STF em favor do inciso LV do artigo 5º da Constituição, que prevê a ampla defesa e o direito ao contraditório.
No caso em votação —concluída, no mérito, nesta quarta (2), por 7 a 4—, os ministros decidiram que o réu delatado fala depois do réu delator.
Se alguém voltar àquela coluna, lerá: “Defendo que se anule tudo porque se trata de direito fundamental, assegurado pelo artigo 5º da Carta”.
Dei uma piscadela, no entanto, para a modulação: “Mas deve prevalecer alguma acomodação. Dos males, o menor. O importante é resgatar o princípio e conter os golpistas do Estado de Direito. E isso foi feito”.
Afirmar que, dada a ausência de uma lei ou norma de caráter ou efeito concreto, o tribunal não poderia ter apelado à norma abstrata (a Constituição) para assegurar a ampla defesa e o contraditório corresponde a escolher o vale-tudo.
Notem que o tribunal não está nem mesmo fazendo uma interpretação extensiva da Carta, a exemplo do que se deu com a criminalização da homofobia.
Estamos lidando com um dos pilares das democracias: o direito de defesa, protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 11) e pelo Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º), de que somos signatários.
Estranho seria se a ausência de lei de caráter ou efeito concreto tornasse sem efeito a norma abstrata, porquanto esta pode existir, felizmente, sem aquela, mas aquela inexiste sem esta.
Mudei em quê? Não condescendo mais com modulação nenhuma! É tal o descalabro a que se chegou que só “A Palavra” nos salva.
“Conhecereis a Constituição, e ela vos libertará”. O “Mito” não encontrará isso em João. Nem em Barroso, Fux ou Fachin.
O governo Bolsonaro é só o desastre contingente que a Lava Jato nos deixa como herança. Há um outro que vai além de um ou dois mandatos: a corrosão do valor abstrato da Justiça.
E, por favor, que extrema direita e extrema esquerda não se estreitem num abraço insano para tentar provar que tal valor, na prática, nunca se traduziu em justiça efetiva.
Ainda que eu flertasse, por apreço à argumentação, com tal afirmação, teria de dizer o óbvio: com bons princípios, podem-se corrigir os males da injustiça. Sem eles, a injustiça é que se firma como princípio. E aí estaremos danados, condenados ao voluntarismo dos cretinos e à demagogia dos populistas.
Sim, avançou-se um pouco, mas só a anulação de todas as condenações em processos da natureza de que se trata aqui dá concretude à norma abstrata.
Limitá-la apenas aos réus que recorreram tempestivamente constitui uma agressão a direito fundamental.
Um indivíduo não pode alegar ignorância da lei para sair incólume de um crime. O Estado, por seu turno, não pode sonegar ao indivíduo um direito que é seu alegando que este o ignorou no devido tempo. Erro em alguma coisa?
O Supremo, como ente, cometeu erros e omissões no curso do horror jurídico instaurado pela Lava Jato sob o pretexto de combater a corrupção. Tem a chance de corrigir parte do estrago.
Tal correção não vai proteger corruptos, mas restaurar a higidez da norma. Até porque não se estará substituindo condenação por absolvição. Trata-se de resgatar dos escombros o devido processo legal.
Para encerrar: o livro do não homicida —por intervenção divina, não por caráter— Rodrigo Janot evidencia que Lula era a caça da Lava Jato.
São tais e tantos os procedimentos heterodoxos da turma que, como se viu, não foi difícil para uma quadrilha, em sentido literal, explorar o mercado de ilegalidades que ela promoveu.
Quem precisa de tornozeleira não é Lula, mas os senhores procuradores: a tornozeleira da Constituição.
Poderão, assim, manter-se distantes de pistolas e de quadrilheiros.
*Publicado na Folha de S.Paulo
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