Roma
É o prenúncio da segunda idade das trevas
Para
você que, como eu, teme o fim do Estado laico e o avanço do
fundamentalismo cristão; para você que se sente como uma patrícia da
Roma Antiga, devota de Epicuro, que escuta o estrondo do Vesúvio do
jardim de Herculano, aconselho assistir ao documentário “The Family”
(Netflix), sobre uma organização conhecida como The Christian Mafia.
De Bill Clinton aos Bush pai e filho, de
Reagan a Nixon, de Carter a Obama, passando por Trump, nenhum dos
presidentes americanos deixou de marcar presença no National Prayer
Breakfast, evento anual dessa congregação sem nome, com enorme
influência política nos Estados Unidos e no mundo.
Idealizada durante a depressão americana
da década de 1930 por Abraham Vereide, um imigrante norueguês bem
relacionado, a irmandade nasceu da reunião de 19 empresários de Seattle,
preocupados com o levante sindical que paralisou a cidade, exigindo
melhores condições de trabalho.
Vereide acreditava que o clima de
guerrilha instaurado nas ruas era fruto de um plano satânico executado
pelos sindicalistas. Para salvar a sociedade do demônio encarnado nos
operários era necessário não só o uso da força, como o uso da força em
nome de Deus.
O prefeito e o governador eleitos na
crise sairiam desse grupo cristão de homens de bem, massacrariam o
movimento sindical, erradicando a esquerda do estado de Washington.
Durante a Guerra Fria, Vereide convenceu
o presidente Eisenhower a encarar a luta contra o império comunista
ateu como uma guerra santa, investindo na criação de um exército de
líderes cristãos, formado para ocupar postos de comando estratégico no
governo.
Oitenta anos depois, a ideia se
transformaria numa irmandade empenhada em difundir um cristianismo
forte, sem igreja, capaz de congregar republicanos e democratas para
orarem em nome de interesses comuns.
O problema do cristianismo, afirmava
Vereide, foi ter se dedicado à plebe, esquecendo-se dos homens de pulso
firme, capazes de restaurar a lei e a ordem.
Se todos amarem o cordeiro, quem amará o
lobo? E com um lobo ao seu lado, os cordeiros obedecerão. Concentre-se
no lobo, diz a mensagem, e mostre a ele o grandioso poder da fé.
Quando Vereide morreu, Doug Coe assumiu a
liderança da confraria, empenhando-se em torná-la invisível. “Quanto
mais invisível for a organização, mais poder ela terá”, dizia o homem
mais prestigioso de Washington, de quem nunca se ouvia falar.
Desde então, a Family tem praticado uma
“diplomacia discreta”, como define Bush pai em discurso no National
Prayer Breakfast, “para não dizer secreta”.
Admirador da paixão cega despertada por
Hitler, Mao e Mussolini, e da fidelidade alcançada pela Camorra, Coe
inicia uma ofensiva espiritual para além da fronteira, enviando
congressista para a Europa, a ex-União Soviética, a África e a América
Latina.
“Esqueça tudo o que você sabe sobre o
cristianismo”, aconselha um dos membros, “Cristo não veio à Terra pelos
puros, mas sim pelos doentes, pelos condenados pela justiça e pelos
investigados por seus crimes. Não que a irmandade apoie essas ações,
mas, por amor, é nosso dever aproximar os homens maus de Jesus.”
E enquanto evangeliza e perdoa os lobos
pecadores, com apoio financeiro da NRA, a confraria defende a moral e os
bons costumes para a massa de cordeiros fracos.
Na Romênia, a Family influenciou o
referendo para mudar a constituição que reconhece o casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Na genocida Uganda, o missionário enviado não só
fez o general ditador assassino e homofóbico Yoweri Museveni chorar, ao
dizer que Jesus o amava, como semeou o preconceito que fez florescer
políticos como David Bahati, autor do projeto de lei que defende a pena
de morte para homossexuais. “Eu não quero matá-los”, declara o
parlamentar, “quero apenas curá-los”.
E em nome de Jesus e dos escolhidos, das
crianças, da família e da moralidade, abrem-se, debaixo dos panos, as
portas da luxúria econômica do livre mercado de petróleo, minério, armas
e afins.
Morte ao secularismo. Que se cumpra a
missão de Paulo nas escrituras, a de levar a palavra de Cristo aos reis,
em prol dos interesses do Estado.
Cheira a teoria conspiratória, mas que a
série explica, em parte, a ascensão do poderio evangélico no Brasil e a
devoção do lobo Messias, isso ela explica.
Trump,
Putin, Gaddafi, Museveni, Jair… enquanto a alcateia de eleitos se
locupleta, resta a nós, cordeiros, suportar com resignação as Damares,
os Araújos e Weintraubs do Ministério Supremo da Fé.
É a queda do Império Romano e o prenúncio da segunda idade das trevas.
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