sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Entrevista: Walfrido Warde

ConJur - Entrevista: Walfrido Warde, especialista em Direito Societário



Processo irracional

"Consequência da insegurança na leniência é a demolição do capitalismo brasileiro"


“Não há uma leniência celebrada no Brasil.” Quem afirma é o advogado especialista em Direito Empresarial Walfrido Jorge Warde Júnior.

O ambiente inseguro para a celebração de acordos entre empresas e o
Estado vem sendo criticado por ele há anos, mas, diante dos movimentos
do Ministério Público Federal para cancelar o acordo assinado com o
Grupo J&F, o assunto volta à tona.

A solução sugerida pelo
advogado é a criação de um balcão único para negociação dos acordos de
leniência. Seria uma comissão formada por todos os interessados por
parte do Estado: Ministério Público, Advocacia-Geral da União,
Controladoria-Geral da União, Tribunal de Contas da União, entre outros.
Assim, quem firmasse acordo saberia que nenhum outro órgão se moveria
para anular aquele contrato.

Segundo Warde, o problema da
insegurança dos acordos não é a dissolução das empresas, que ficam
impedidas de ressarcir o erário e a continuar em operação. Haverá um
efeito dominó, diz, quando analisa que as empresas alvos da “lava jato”,
especialmente as empreiteiras e a JBS, são “gigantes nacionais”. Os
bancos serão os próximos atingidos, pois ficarão sem receber por
empréstimos e financiamentos concedidos.

“O BNDES tem segurado,
ninguém fala sobre isso, mas é uma consequência inevitável. Estamos
falando da demolição do capitalismo brasileiro, das principais empresas
brasileiras que tinham uma relação muito próxima e dependente com o
Estado, uma relação que foi criminalizada”, prevê, em entrevista à
revista Consultor Jurídico.

Mas os problemas do
ambiente legal brasileiro não afetam apenas as grandes empresas que
aparecem no noticiário, afirma Warde. Por falta de regras adequados,
empresas são impedidas de crescer e buscar financiamento no mercado.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor avalia a disputa entre MP, AGU e CGU por protagonismo com os acordos de leniência?

Walfrido Warde —
Adverti sobre essa disputa no livrinho Um
plano de ação para o salvamento do projeto nacional de infraestrutura.
Lá em 2015, apresentei junto com o Gilberto Bercovici e o José Francisco
Siqueira Neto um projeto para tentar evitar a quebra das empresas de
infraestrutura no Brasil.

ConJur — O que o livro propõe?

Walfrido Warde —
Basicamente, a ideia é que se fizesse uma
leniência com guichê único. Entendíamos que não era necessário ter uma
lei, bastava criar um comitê com todos os envolvidos, TCU, CGU, AGU, MP,
Cade, CVM e Banco Central, dependendo do caso e da especificidade
empresarial. Já havia um prenúncio de crise cadastral das empreiteiras,
elas não iam mais conseguir captar dinheiro, participar de licitações,
receber nos contratos administrativos que tinham celebrado com a
administração direta e indireta. Então a única maneira é que elas
rapidamente superassem o problema, pagassem o Estado, ressarcissem a
Petrobras. Era uma maneira de garantir rápido ressarcimento e impedir
obstrução da espinha dorsal da economia brasileira, que era a
infraestrutura.

ConJur — O que acha dos acordos assinados até agora?

Walfrido Warde —
Não há uma leniência celebrada no Brasil. A da
Odebrecht, celebrada com o Ministério Público, acabou de ter sua
eficácia abatida pelo TRF-4, que disse que quem tinha que celebrar era a
CGU. Aquelas como a da UTC, celebradas com a CGU, não são reconhecidas
pelo Ministério Público. A balbúrdia que a gente antecipou de fato
aconteceu.

ConJur — Ela deve chegar ao bancos privados, do sistema de financiamento, agora?

Walfrido Warde —
Certamente. Eles deram fiança e vão ser
cobrados mais cedo ou mais tarde. O BNDES tem segurado isso, ninguém
fala sobre isso, mas é uma consequência inevitável. Estamos falando da
demolição do capitalismo brasileiro, das principais empresas brasileiras
que tinham uma relação muito próxima e dependente do Estado. Uma
relação que foi criminalizada em grande parte.

ConJur — Em que sentido?

Walfrido Warde —
Muita coisa que era normal passou a ser
considerada crime. Doação de campanha por empresa não era crime. A
atuação da operação “lava jato”, da Polícia Federal, do Ministério
Público e do juiz Sergio Moro em Curitiba determina uma interpretação
criminalizante do que não era criminalizado antes. Doação foi
considerada propina.

ConJur — A regulamentação do lobby seria uma solução?

Walfrido Warde —
Em primeiro lugar, precisamos ver que temos um
combate à corrupção inconsequente. Ele se dá por meio de uma
criminalização judiciária, e não legislativa, do que não era crime. Em
segundo lugar, ele se dá no contexto da ampliação dos mecanismos de
detecção da corrupção, do aparecimento do compliance, da
colaboração premiada e da leniência para fins de incitar denúncias e
colaborações. Nós precisamos de vias de abrandamento para a empresa. É
preciso prender o corrupto e o corruptor, mas temos que manter a empresa
em pé. E nós estamos destruindo as empresas.

ConJur — O senhor aponta um caminho para isso?

Walfrido Warde —
A primeira coisa que a gente precisa é
consertar a leniência no Brasil. Precisamos impedir que esses ciclos de
desgraça e pujança parem de acontecer. E só uma reforma política é capaz
de fazer isso. Uma reforma do financiamento de campanha, do lobby
pré-eleitoral, do lobby pós-eleitoral, mas também uma disciplina de
disclosure de relações público-privadas. O presidente da República não
pode dizer que encontra quem ele quiser, na hora que quiser, do jeito
que quiser. Isso não funciona na democracia. O presidente da República é
nosso empregado, não um imperador. Para isso precisamos ter uma lei de
disclosure: toda vez que um lobista, um agente privado, conversa com um
agente público, isso tem de ser conhecido por alguém e registrado num
portal de transparência. Isso inclui qual foi o tema a conversa, por que
se encontraram, o que um disse para o outro, o que um pediu para o
outro e o que o outro disse que ia fazer.

ConJur — Os Estados Unidos passaram por um momento de profusão de histórias de whistleblowers [delatores de dentro das empresas delatadas]. Isso deve ser regulamentado no Brasil? Existe espaço?

Walfrido Warde —
Acho que sim. O que acontece é que as pessoas confundam a delação ou a colaboração com whistleblowing.
A colaboração é feita por quem também praticou o crime. Tem um contrato
com o Estado, apresenta provas e tem o direito a gozar do benefício
previsto no acordo de colaboração. O whistleblower não
necessariamente praticou o crime. Ele só quer a recompensa pela delação.
Então ele sabe, viu que alguém praticou o crime e quer um benefício. Às
vezes proteção, às vezes dinheiro. Resta saber se a sociedade quer isso
ou não. Parece que quer.

Agora, no caso de JBS, a empresa não é
colaboradora, mas os colaboradores que eram ex-administradores da JBS
entregaram 1,8 mil agentes públicos com provas. Dizer que aquilo não
merece um benefício, ou que o Ministério Público não deveria ter dado
tanto benefício, me parece um equívoco, no mínimo. O Estado quer a
prova, mas não quer dar o benefício? Então acabou com o instituto da
colaboração premiada.

ConJur — O senhor citou a declaração
de inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por empresas. O
Judiciário tem legislado quando trata das relações entre público e
privado?

Walfrido Warde —
Essa decisão da ADI 14.650 decorre de um
artigo que eu escrevi em 2007, que é citado exaustivamente no voto do
ministro Dias Toffoli. O título do artigo é A empresa pluridimensional. E
eu dizia o seguinte: a empresa no Brasil é regulada apenas sob ponto de
vista econômico, mas ela tem outras finalidades, políticas também. E
nós temos uma incongruência grave entre a regulação política e a
regulação econômica da empresa. As sociedades empresárias não podem
celebrar obrigações de mero favor. Elas não podem doar. Elas só podem
entreter relação de trocas econômicas no mercado. Então as sociedades
empresárias, segundo o Direito Societário, só podem pagar se houver
contraprestação. Do contrário, haveria uma violação de dever fiduciário
do administrador. Por outro lado, a legislação eleitoral exigia que um
pagamento feito por uma sociedade empresária a um político, candidato,
seja um ato de diletantismo. Portanto, há uma incongruência entre a
legislação eleitoral e a legislação societária. Tivemos a criminalização
dessa conduta, mas o que eu dizia era que precisamos regular isso
direito.

ConJur — Então qual o problema da decisão do Supremo?

Walfrido Warde —
O ministro Toffoli pegou aquilo para
fundamentar o seu entendimento a respeito do artigo 9º. Não é um
entendimento absurdo – talvez seja inconveniente, mas não é absurdo – de
que a empresa não poderia fazer doação de campanha, uma vez que isso
caracterizaria um voto múltiplo. O melhor seria criar um modelo
associativo de financiamento de campanha – uma coisa parecida com os
PACs americanos – onde só associações podem doar para campanha. E aí
empresas podem fazer parte de associações, mas as regras de governança
dessas associações seriam muito estritas. Uma série de regras que,
obviamente, estimulariam a formação de associações. A participação em
mais de um PAC, por exemplo, seria proibida.

ConJur — A ideia das ações coletivas vingou nos Estados Unidos. Ela tem chance de emplacar aqui também?

Walfrido Warde —
Pode ser. As empresas brasileiras que oferecem
valores imobiliários nos Estados Unidos se sujeitam a uma disparidade
regulatória. A Petrobras tem esse problema. No Brasil, a ação
indenizatória é uma ação da companhia contra o administrador
delinquente. E a companhia pode ter um substituto processual em algumas
hipóteses, que é o próprio acionista. No modelo americano, que é um
modelo totalmente diferente, o ressarcimento é direto, porque eles têm
ação coletiva lá. Em vez de 300 mil ações, é uma ação contra a
companhia. Na realidade brasileira, teríamos milhares de ações. Imagina o
que significa para a administração da Justiça e o que significa para a
administração da companhia. Nós vamos quebrar a empresa só com defesa.

Estamos
em um contexto de corrupção sistêmica. Estamos com uma praça pública
cheia de cadafalsos, de guilhotinas, de pelotões de fuzilamento e, em
alguns casos, por coisas que a gente aceitou por décadas e décadas.
Seria a mesma coisa que a Suprema Corte dos EUA dizer, por exemplo, que o
os PACs eleitorais são corrupção. Eles teriam uma crise sistêmica de
corrupção no da seguinte. E isso quebraria toda a economia deles.

ConJur
— O senhor escreveu um projeto de Lei da Sociedade Anônima
Simplificada. Mas vendo o ranking das maiores empresas do Brasil, fica
claro que as S/As têm funcionado economicamente. Qual o problema da lei
que temos hoje?

Walfrido Warde —
A Lei da S/As é como um brinquedo Lego. As
peças são simples, mas podemos montar coisas mais ou menos complexas de
acordo com a organização delas. A base da Lei de Sociedades Anônimas
está nas regras para companhias fechadas. Mas as S/As estão em um grau
de sofisticação maior do que as companhias fechadas. Já a regulação das
sociedades fechadas de pequeno e médio porte seria uma construção menos
complexa, mas com as mesmas peças.

Vivemos num pais em que a
economia não é só de titãs, é de quitandas também. No nosso projeto,
basicamente olhamos para a regulação das anônimas como um Lego
regulatório, usando o chassi da companhia fechada e, a partir dele,
aumentamos um pouco o grau de sofisticação para uma anônima de pequeno
porte. Mas é uma regulação menos complexa do que temos atualmente, para
não engessar, não ficar caro demais ir ao mercado buscar financiamento
de acionistas.

ConJur — Por que ainda é complexo demais?

Walfrido Warde —
É difícil demais desmontar uma série de
obstáculos e amarras legais que encarecem o manejo de uma sociedade
anônima. Isso a torna menos útil para organizar a empresa de pequeno
porte. Nós olhamos duas coisas: primeiro a disciplina das anônimas é
amplamente consolidada. Existe desde 1976, é elogiável, tem várias
qualidades. Seus defeitos vêm sendo testados há 40 anos no Judiciário,
na arbitragem. Do outro lado, a disciplina das limitadas é muito
criticada por ser muito lacunosa e ter uma série de defeitos. Isso na
realidade brasileira. Em outros países nós encontramos tipos societários
híbridos convenientemente disciplinados sob ampla autonomia.

ConJur — Sabe citar alguns países?

Walfrido Warde —
Normalmente países de tradição anglo-saxônica,
mas isso seguiu também para o Direito continental europeu. Nos anos
1970, apareceram nos Estados Unidos as primeiras limited liability company,
as primeiras LLCs, as primeiras formas híbridas de sociedade. Então tem
a possibilidade de contratar a sociedade do jeito que quiser, mas, ao
mesmo tempo, usar a sociedade para emitir títulos de dívida, para
captação. É combinação da fórmula de organização contratual com a
fórmula institucional de uma empresa ou sociedade.

ConJur — Mas o que é exigido hoje que uma empresa menor não consegue cumprir?

Walfrido Warde —
Para fazer IPO custa caro. A realização de
registro de companhia aberta, registro de oferta, prospecto, tudo isso
podia ser simplificado para ofertas menores. Além disso, tem os custos
de constituição e manejo de uma S/A. Tem publicação obrigatória,
pasme-se, até hoje em jornal impresso. Nós estamos no século XXI e as
mídias físicas estão desaparecendo. Qual é a utilidade de ter publicação
de convocação de assembleia ou de documentos fundamentais, como
balanços e demonstrações financeiras, em um jornal físico, que vai ser
jogado fora? Não faz sentido nenhum, a não ser para o lobby dos jornais.

ConJur — Numa época que falamos tanto de compliance, não seria contraditório aprovar uma legislação que tire essa rigidez?

Walfrido Warde —
Estamos falando de duas coisas diferentes: uma coisa é governança corporativa e outra é compliance. Governança corporativa é um conjunto de técnicas de alocação de poder no contexto de uma empresa. O compliance é basicamente uma técnica de privatização de funções públicas, de funções estatais de detecção da corrupção.

ConJur
— Com as restrições para buscar investimentos no mercado, as empresas
pequenas ficam dependentes demais do Estado, dos financiamentos
públicos?

Walfrido Warde —
Todo mundo dependente demais do Estado no
capitalismo em qualquer lugar do mundo. A teoria marxista, sob o ponto
de vista descritivo, é impecável para explicar essa situação. Em um
determinado momento, as taxas de lucratividade do capital caem e isso
marca a viragem do capitalismo concorrencial para o capitalismo
monopolista, do Estado. O Estado passa a ser fundamental justamente para
impedir uma crise de morte do capitalismo, porque ele traz recursos que
são fundamentais para o capital, seja na geração de demanda, seja no
financiamento subsidiado, seja no financiamento de pesquisa e tecnologia
e aí por diante.

ConJur — As tais da relações promíscuas entre Estado e empresas privadas não, então, uma característica brasileira?

Walfrido Warde —
Falam que no Brasil há uma promiscuidade na
relação Estado-empresa porque o capital é muito dependente do Estado.
Mas nos EUA também é. Vale lembrar que quem inventou e desenvolveu a
Internet foi o Exército, o Estado, com trilhões e trilhões de dólares
dos contribuintes. E quem ganhou dinheiro com a internet? As empresas do
Vale do Silício. Natural que assim seja. As guerras representam
trilhões e trilhões de serviços e produtos de empresas americanas sendo
contratados pelo Estado. E assim é em todos os países capitalistas e
naqueles menos capitalistas, como China e a Rússia.

ConJur — Empresas pequenas dependem mais do Estado que as grandes para captar dinheiro?

Walfrido Warde —
Não. No quadro de desembolso do sistema BNDES
de 2007 a 2014 é possível ver que as pequenas e médias receberam R$ 70
bilhões. As grandes receberam quase R$ 1 trilhão nesse período.

 ConJur — E essa ideia de mais gente sair para o mercado aliviaria essa conta.

Walfrido Warde —
Principalmente em um momento como esse em que
tivemos uma brutal reversão dos mecanismos estatais em incentivo ao
consumo, uma brutal reversão dos mecanismos estatais de fomento à
atividade empresarial. O BNDES não é mais um banco de fomento, foi
descaracterizado. Hoje não tem saída para a pequena e média empresa que
não seja um empréstimo bancário supostamente com taxas de juros mais
baratas no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal, mas nós sabemos
que, no fim do dia, não são tão baratas assim.

domingo, 22 de outubro de 2017

Em questões de gênero, ciência mostra que os extremos estão errados

Em questões de gênero, ciência mostra que os extremos estão errados - 22/10/2017 - Reinaldo José Lopes - Colunistas - Folha de S.Paulo




Que o leitor perdoe a franqueza, mas dá desgosto ver como as pessoas –em
ambas as pontas do espectro ideológico– surtam com esse negócio de
ideologia de gênero e outras questões candentes relacionadas à
sexualidade.





Que tal colocar um pouco de ponderação e rigor científico na história?
Eis uma brevíssima lista de ferramentas conceituais que vale a pena ter à
mão antes de sair se descabelando "em defesa da família" ou "contra o
patriarcado".





1) Pessoas são indivíduos, não médias estatísticas.





A complexidade dos corpos e das mentes é gigantesca e depende de
fatores, tanto inatos (como a genética) quanto externos (família,
educação etc.), que são individualizados, em larga medida.





A implicação que isso tem para qualquer afirmação de natureza
essencialista –que enxerga uma essência imutável– sobre o comportamento e
os papéis de homens e mulheres deveria ser clara. Existem, por exemplo,
algumas evidências científicas de que, em média (eis uma expressão
crucial!), os membros de cada sexo começam a vida com vieses cognitivos e
interesses ligeiramente diferentes entre si, e que isso pode ser
reforçado ao longo do crescimento.





Meninas, pelo que sabemos, são um pouco mais fluentes verbalmente e mais
espertas na hora de captar as emoções alheias, enquanto os garotos se
viram melhor em tarefas que envolvem o raciocínio espacial. Mas, de
novo, tudo isso é média estatística –não um destino inescapável
decretado pelo Olimpo.





Eu me viro razoavelmente bem com palavras e sou capaz de me perder
dentro do meu próprio banheiro, embora seja portador de um cromossomo Y,
a marca genética da masculinidade em humanos. Aliás, se eu fosse uma
média populacional, e não um indivíduo, eu seria metade homem e metade
mulher, o que não parece ser o caso, pelo que me lembro da última vez
que fui ao banheiro. Esse princípio vale para quase tudo o que importa
em nível individual.





2) Seres humanos são entidades biológicas e culturais ao mesmo tempo, o tempo todo.





Somos seres vivos, mamíferos e primatas, produtos de um processo
evolutivo de bilhões de anos, tal como os outros animais da Terra. Isso
significa que é improvável que o nosso comportamento não tenha bases
biológicas, ainda que estejamos longe de elucidá-las totalmente.





Outros animais, aliás, também têm tradições culturais –embora só nós
tenhamos levado tão longe a capacidade de dar significado a elas e de
transformá-las numa espécie de universo paralelo que nossas mentes
habitam.





Na prática, portanto, os papéis de cada gênero são modificados o tempo
todo pelas mutações da cultura –mas eles dependem do "molde" biológico
inicial para tomar forma. Ignorar qualquer um dos lados da equação é uma
receita para simplificar demais a realidade.





3) Existe, existiu e sempre existirá variabilidade natural.





Os dados de outras espécies animais e as comparações entre diferentes
sociedades humanas que o relacionamento entre indivíduos do mesmo sexo e
aparentes inversões de papéis de gênero são parte da variabilidade
natural.





Essa variação pode ser influenciada por aspectos sociais e culturais,
mas dificilmente seria criada por eles. Versões extremas da ideologia de
gênero segundo as quais absolutamente tudo é construção social são
apenas má ciência –mas temê-las como o bicho-papão que transformará
todos nós em andróginos futuristas é infundado. Até hoje, todos os que
apostaram numa natureza humana infinitamente maleável perderam feio.

Partidos da Justiça no conflito social -

Partidos da Justiça no conflito social - 22/10/2017 - Vinicius Torres Freire - Colunistas - Folha de S.Paulo

Partidos da Justiça no conflito social

Vinicius Torres Freire

















Juízes e procuradores do Trabalho organizaram-se com o objetivo de barrar artigos da reforma trabalhista. Procuradores da República e do Trabalho fizeram o primeiro grande movimento contra a portaria do governo Michel Temer sobre trabalho escravo.





Embora o "trabalhismo de toga" não tenha nascido ontem, é notável o
contraste do movimento de juízes e procuradores com a oposição fraca e
fracassada de partidos de esquerda, sindicatos e movimentos

sociais às reformas do trabalho.





Também vem ao caso uma analogia do "trabalhismo de toga" com o "partido
da Justiça". Esse é o nome que a esquerda deu aos militantes da Lava
Jato e agregados, procuradores, juízes e policiais que seriam
adversários ou inimigos a princípio do PT, depois do sistema político em
si. Tal expressão começou a se disseminar no fim de 2015, a partir de
artigos do cientista político André Singer, colunista desta Folha.





Desde então, o sociólogo Luiz Werneck Vianna chamava a turma da Lava
Jato de "tenentes de toga". Os comparou ao tenentismo dos anos 1920, o
começo da organização política sistemática das Forças Armadas, que
viriam a se tornar uma burocracia profissional e disciplinada com um
projeto nacional salvacionista e autoritário. Aos "tenentes de toga", no
entanto, faltaria um projeto com substância, além da ambição
extravagante de destruir um sistema político podre.





Esse evidente protagonismo dos vários "partidos da Justiça" é porém
apenas um entre vários índices ou sintomas, como se queira, de uma
política esvaziada de partidos.





Embates ou pulsões políticas transmutam-se em meras disputas moralistas,
querelas sobre pornografia nas artes, segurança ou ração para pobres,
por exemplo. Líderes evangélicos se tornam príncipes eleitores a ungir
presidenciáveis. Elites procuram um líder político fora da política, sem
esforço de reorganizar a política partidária.





Decerto há movimentos de refundação pela base, "start-ups" políticas ou "coletivos", todos por ora meros brotos verdes.





Partidos conservadores, se é que merecem o nome, e lobbies empresariais
no parlamento passam o trator na esquerda minoritária, desmoralizada e
desarticulada com a sociedade. A aprovação da reforma trabalhista no
Congresso, em julho, foi quase um passeio. Depois do suspiro final da
greve de abril, a esquerda debandou ou bateu em retirada.





No entanto, partidos da direita não defendem diante do eleitorado, de
modo aberto e articulado, o plano mais ou menos liberal que passam no
Congresso. É um programa sem rosto partidário e que pouco ousa dizer o
seu nome.





A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional dos
Transportes (CNT) é que prometem tomar a atitude de ir ao STF ou ao
Conselho Nacional de Justiça reclamar a aplicação das reformas das leis
do trabalho caso o "trabalhismo de toga" tenha sucesso.





Em público, em parte por motivos táticos, mesmo a bancada ruralista deu
apoio discreto à portaria do trabalho escravo. Mas associações de
empresas da construção civil e a CNI fizeram manifestos de apoio à
portaria do trabalho escravo.





Desde o Junho de 2013, a desertificação da política partidária apenas
aumenta. Nesse ambiente, aparecem bichos políticos estranhos.



Suposição de que Dodge veio para salvar Temer ganha nova estatura

Suposição de que Dodge veio para salvar Temer ganha nova estatura - 22/10/2017 - Janio de Freitas - Colunistas - Folha de S.Paulo



Suposição de que Dodge veio para salvar Temer ganha nova estatura



Janio de Freitas









A estreia da procuradora-geral da República em expor sua orientação
pessoal, e não mais como rescaldos do antecessor Rodrigo Janot, não
resultou favorável a ela nem a nós. A menos que Raquel Dodge apresente
comprovação, ao menos indícios aceitáveis, da novidade que disse, a
suposição de que vem para salvar Michel Temer ganha nova estatura. Não
pode mais ser vista como precipitada ou interessada.





A meio dos motivos contrários à liberação de Geddel Vieira Lima, preso em Brasília, Dodge aponta-o como líder da organização criminosa hoje central
no noticiário. A forma verbal "parece" atuar como chefe não altera o
ineditismo da qualificação. Nem diminui os efeitos benéficos dessa
novidade para Temer: dado como chefe, Geddel livra superiores
hierárquicos de tal acusação e, de quebra, teria embaraços para um
acordo de delação premiada temida por Temer –como Bernardo Mello Franco registrou com outra formulação, na Folha de sexta (20).





Geddel nunca foi considerado "o chefe". Mesmo a ideia de organização, a
que procuradores recorrem com facilidade porque os ajuda na explicação
do crime, além de aumentar as penas, não é correta nesse caso. Cada um
dos incriminados integrantes do PMDB, seus doleiros e intermediários é
um livre-atirador que, para certos golpes, uniu-se a outros, mas seu
objetivo de ganho era individual. Além da ambição desse ganho nada os
aproximou. O perigoso Geddel é um desses há 30 anos. Compuseram uma
organização, nem propriamente uma quadrilha. Sociedade, isso sim,
ocasional mas frequente.





Com estilo diferente, só Michel Temer. Usar intermediários é o seu modo
típico. José Yunes, Eduardo Cunha, Lúcio Funaro, Geddel Vieira Lima,
Rocha Loures, Moreira Franco, Eliseu Padilha e outros, já identificados
ou ainda nas sombras, estão citados nas investigações como pessoas
acionadas por Temer para chegar a terceiros, com missão definida.





Os três primeiros da lista distinguem-se pelo requinte de manter seus
escritórios ao redor das instalações do advogado Temer. Duros, afinal de
contas, eram os tempos de uma caverna para quarenta. Com o avanço da
civilização paulistana, cada um dos quatro tem a sua, mas próximas todas
para diminuir o risco –na explicação de Funaro– de levar malas com
dinheiro grosso entre os destinatários.





Há, de fato, e gravados, exemplos de ordens comprometedoras, dadas à
maneira de chefe. Não de Geddel ou de outro dos intermediários. São
assim: "Tem que manter isso, viu?".
Ao que o ouvinte responde, obediente: "Todo mês, todo mês". Em outro
momento, quando o ouvinte lamenta a perda da intermediação de Geddel e
se refere à alternativa Rocha Loures, ouve a determinação: "Fale com
ele". É preciso saber se o deputado representa mesmo a Presidência, se
pode falar tudo com ele, e é tranquilizado: "Pode falar tudo. Fale com
ele".





O grupo dos intermediários não se ligou por sua conta, no entanto
tem/tinha um elo comum chamado Michel Temer. Não há por que tirar-lhe
essa honra, à falta das outras.





Empreendedor no mesmo ramo, Aécio Neves adotou o método das
intermediações. Mas, bom moço, deu um sentido familiar à atividade. Sua
irmã abria caminho às extorsões acobertadas como venda de imóvel, muito
acima do valor; ou para pagar um advogado que a riqueza da família
poderia quitar como nós outros pagamos o cafezinho. O apanhador, "o
mala" na nomenclatura especializada, era um primo. Um tio e um político
têm papel ainda mal definido, porque investigar a concorrência de Aécio a
Eduardo Cunha e Cabral não tem suscitado entusiasmo em procuradores.





Temer diz que é vítima de uma conspiração. Eduardo Cunha se acha injustiçado. Aécio quer "uma saída honrosa".



sábado, 14 de outubro de 2017

Por uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS

Por uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS - ABRASCO




Por uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS





As
diretrizes sobre como organizar a Atenção Básica no Sistema Único de
Saúde (SUS), nível de atenção responsável pela produção anual, em todo o
País, de cerca de 2 bilhões de procedimentos, foram redefinidas em 21
de setembro de 2017 pela Portaria nº 2.436. Cabe assinalar que a Atenção
Básica conta com cerca de 15% dos recursos do Ministério da Saúde. A
portaria é um profuso documento que ocupou nove páginas da edição de
22/9/2017 do Diário Oficial da União. Não obstante, não aparece no
documento a expressão “plano de cargos” e a palavra “carreira” ocorre
uma única vez, citada no parágrafo VII do artigo 7º, que trata das
“responsabilidades comuns a todas as esferas de governo”. Estas incluem
“desenvolver mecanismos técnicos e estratégias organizacionais de
qualificação da força de trabalho para gestão e atenção à saúde,
estimular e viabilizar a formação, educação permanente e continuada dos
profissionais, garantir direitos trabalhistas e previdenciários,
qualificar os vínculos de trabalho e implantar carreiras que associem
desenvolvimento do trabalhador com qualificação dos serviços ofertados
às pessoas”. Em todo o caso, o termo “carreira” aparecia com o mesmo
significado, também uma única vez, no documento similar, vigente até
então, aprovado em 2012.


+ Infeliz decisão para o SUS – artigo de Paulo Capel Narvai

+ O fim do Brasil Sorridente? – artigo de Paulo Capel Narvai


Um dos problemas mais graves enfrentados pelo SUS nesta área é a
precarização do trabalho, a terceirização e o descaso com a necessidade
de profissionalização dos trabalhadores. A portaria passa longe do
enfrentamento desses problemas, agravando-os com a flexibilização das
jornadas de trabalho e da composição das equipes de saúde. Cinicamente, a
ampliação do descaso com os profissionais de saúde foi anunciada pelo
governo e seus aliados, inclusive na oposição, como um grande avanço,
pois as novas regras visariam a “não prejudicar a população que mais
precisa” e resultariam “da experiência acumulada por um conjunto de
atores envolvidos historicamente com o desenvolvimento e a consolidação”
do SUS “como movimentos sociais, população, trabalhadores e gestores
das três esferas de governo”. Advirto que não há, de minha parte, erro
de citação: o texto da portaria afirma isto, que ela resulta da
“experiência acumulada… pelos trabalhadores”.


Desde a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada
em 1986, os trabalhadores do sistema público de saúde lutam por uma
carreira única nacional. Consta do Relatório Final da 8ª CNS a
necessidade do “estabelecimento urgente e imediato de plano de cargos e
salários”. A 9ª CNS, realizada em 1992, considerou “indispensável” criar
“quadros de profissionais de saúde em cada esfera de governo”, com a
“implantação do plano de carreira do SUS” vinculando a ela “todos os
trabalhadores do SUS, designando-se, portanto, como carreira
multiprofissional ou carreira única de saúde”, garantindo-se que nos
processos de gestão do SUS “as funções gerenciais e técnicas sejam
ocupadas preferencialmente por funcionários de carreira, com
qualificação específica”. A 14ª CNS, de 2011, chegou a fixar uma data
para a implantação de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS),
com “piso salarial nacional, isonomia salarial para profissionais e
trabalhadores com o mesmo nível de formação” implementando-o como uma
“carreira de Estado, garantindo incentivos de exclusividade,
escolaridade e interiorização, respeitando as leis de carga horária de
todas as profissões, garantindo sua cidadania e estabelecendo mecanismos
de combate ao assédio moral”. Aquela Conferência Nacional de Saúde
propôs que o PCCS “terá a participação das três esferas de governo em
seu financiamento, com garantia de que o PCCS da saúde seja discutido e
implantado, até fevereiro de 2012, pela Mesa de Negociação Permanente do
SUS, pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidência da
República”.


Três décadas depois da 8ª CNS, nada de PCCS e nada de carreira do SUS.


Pela primeira vez em sua história de três décadas, o SUS tem em seu
comando um Ministro da Saúde que tem se notabilizado por ser um notório
desafeto do sistema. Não bastasse isto, o SUS sofre agressões diárias e
padece de crônico subfinanciamento, conforme é de amplo conhecimento dos
mais familiarizados com o assunto. “Agoniza”, diagnosticam alguns. “Já
morreu”, dizem outros, acrescentando que “só falta enterrar”. De modo
geral, os países destinam aos seus sistemas de saúde algo em torno de
8,5% dos seus respectivos PIB (Produto Interno Bruto). Em média, cerca
de 6% disso correspondem ao gasto público. No Brasil, o SUS vem contando
com aproximadamente 3% do PIB, constituindo-se em exceção dentre os
países com sistemas universais de saúde. Em torno de 1,6% do PIB
investido em saúde corresponde, no Brasil, aos recursos que o governo
federal aloca ao SUS. Isto equivale, em 2017, a aproximadamente R$ 117
bilhões. A cada ano o SUS vem perdendo recursos, seja pela não reposição
de perdas derivadas de inflação, seja por cortes e contingenciamentos
variados. A aprovação da denominada “PEC da Morte” (Emenda
Constitucional 95/2016), que congela por 20 anos o investimento público,
agravará ainda mais o quadro crítico de subfinanciamento crônico do
sistema. Mas o SUS segue em frente, muito possivelmente por ter se
transformado, ademais dos relevantes serviços que presta ao povo
brasileiro, em espaço onde flui impunemente o roubo de dinheiro público,
conforme farta disseminação de notícias sobre desvio de verbas do SUS,
na imprensa, na internet e outros veículos de informação. Esses
interesses escusos não deixam o SUS acabar. É um contexto de
subfinanciamento, mas, a despeito disso, bilhões de reais circulam
anualmente pelo sistema, nos âmbitos federal, estadual e municipal,
atraindo a cobiça de inescrupulosos. Na origem de crimes utilizando
dinheiro do SUS, está a frágil base administrativa de controle de
transferências e aplicações de recursos públicos. Órgãos de
acompanhamento e controle padecem da mesma fragilidade que marca o SUS,
em todos os níveis em que está organizado.


Elo frágil na cadeia de aplicação dos recursos do SUS, os
trabalhadores pagam a conta. Não têm carreira, predominam baixos
salários e condições de trabalho inadequadas, viceja a precarização. Não
há, propriamente, trabalho decente em muitos serviços próprios e
contratados pelo SUS.


Em trabalho acadêmico publicado em 2011, um grupo de pesquisadores da
Fiocruz, liderados pela professora Maria Helena Machado, delineou um
quadro da força de trabalho em saúde no Brasil à época, com base em
dados obtidos junto ao IBGE, que pode ser sintetizado como segue: mais
de 10% da massa salarial do setor formal corresponde ao setor de saúde,
com 3,9 milhões de postos de trabalho, sendo 690 mil sem carteira
assinada e 611 mil profissionais autônomos, atuando predominantemente
(66,5%) em municípios com mais de 100 mil habitantes. O setor público
emprega um pouco mais do que o setor privado, desde meados dos anos
1980. Estima-se que cerca de 1,5 milhão desses trabalhadores ocupem
postos de trabalho gerados pelo SUS. Em 2005 eram 105.686 (7,3%)
vinculados ao governo federal, 345.926 (23,9%) aos governos estaduais e
997.137 (68,8%) a governos municipais. Entre 1992 e 2005 a variação no
comportamento dos empregos no setor público foi de 225,3% nos
municípios, de 9,7% nos estados, registrando-se variação negativa
(-7,3%) no âmbito federal. Observa-se, portanto, que o expressivo
aumento de empregos no SUS ocorreu pelo crescimento do emprego nos
municípios. Meia década depois, o quadro não se alterou
substantivamente, em termos macroeconômicos.


A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) impõe importantes restrições
aos gestores municipais, uma vez que não podem aplicar com “pessoal”
mais do que 54% do orçamento. Mas sistemas e serviços de saúde são
intensivamente dependentes de recursos humanos, que oneram, de modo
geral, cerca de três quartos dos orçamentos. Desse modo, a LRF “empurra”
esses gestores para a terceirização dos serviços de saúde que compõem o
SUS no nível municipal.


Nesse contexto, as Organizações Sociais de Saúde (OSS) aparecem como
uma espécie de “puxadinho” administrativo, uma solução precária para um
grave problema estrutural que precisa ser enfrentado por gestores e
trabalhadores do SUS. Ademais, em número crescente de situações, algumas
OSS se transformam em meras “atravessadoras” de recursos públicos entre
secretarias municipais de saúde (SMS) e os trabalhadores do SUS. São
empresas que nada têm de social e que operam nesse “mercado de direitos
sociais” com o padrão que caracteriza as piores empresas terceirizadas.
Estão em busca de lucro fácil e dispostas a superexplorar trabalhadores.
Após sair do Fundo Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, o
“dinheiro do SUS” passeia, desnecessariamente, por muitos cofres até
chegar às contas-salário dos trabalhadores da saúde. Por essa razão,
também em número crescente, muitas OSS se veem envolvidas em operações
policiais, registrando-se casos de banditismo puro e simples.


E os trabalhadores do SUS? O que querem para si? O que propõem para a
gestão do SUS, incluindo a gestão do trabalho no SUS? Estão satisfeitos
com a portaria da PNAB que reconhece a “experiência acumulada” pelos
trabalhadores que estaria contemplada nas novas regras? Concordam que
não é mais preciso um PCCS de base federal tal como vêm propondo todas
as conferências nacionais de saúde, desde 1986?


Fiz essas perguntas aos servidores públicos municipais de saúde de
São Paulo, em seminário(**) para o qual eles se dispuseram a me ouvir,
em 5 de outubro de 2017. Argumentei que, além de dar continuidade (pois
isto segue sendo muito necessário) às campanhas “Contra a privatização
do SUS”, “Saúde não é mercadoria”, “Não à terceirização e às OSS”,
dentre outras, é preciso encontrar novos caminhos, propositivos e,
inaugurando uma agenda positiva, dizer “sim” para alternativas que
fortaleçam o SUS. Uma dessas alternativas é a urgente criação de uma
Carreira Interfederativa, Única, Nacional do SUS, com forte base federal
e participação de estados e municípios. Uma carreira que ajude a banir
do SUS as OSS atravessadoras e que, além disso, contribua para que as
SMS possam cumprir a LRF sem comprometer seus orçamentos.


Nos dias atuais – eu disse aos servidores municipais paulistanos –, a
estratégia da municipalização da saúde, que defendemos a partir de
1988, começa a dar sinais de esgotamento, sendo urgente criar e
fortalecer instâncias regionais de gestão do SUS, para que atuem também
como base operacional da Carreira Interfederativa, Única, Nacional do
SUS. Aferrando-se ao que consideram “dinheiro do SUS para o meu
município”, como se estes fossem entes soberanos na federação
brasileira, muitos prefeitos vêm desempenhando um papel conservador –
quando não abertamente reacionário – frente às inovações de gestão que o
SUS requer para atender às justas demandas da população por mais e
melhores serviços integrais de saúde. Não menos importante é considerar
que organizada e administrada tendo por base operacional as regiões de
saúde, a carreira interfederativa, única, nacional do SUS contribui para
corrigir distorções e insuficiências da municipalização, uma vez que
impulsiona a constituição de sistemas regionais que possibilitam
articular diferentes serviços de saúde com vistas à constituição e
consolidação das redes regionais de atenção à saúde. Por isso, uma
carreira única do SUS não é um problema a mais para gestores que
orientam seu trabalho pelo interesse público, mas, ao contrário, é parte
da solução dos problemas relacionados com o desvio de dinheiro público e
com o desafio de constituir redes regionais de atenção à saúde, com
base no princípio da integralidade do cuidado.


De acordo com a Agência Brasil, em 27/9/17 o Ministério da Saúde
anunciou que em parceria com o Conselho Nacional de Secretarias
Municipais de Saúde (CONASEMS) e o Conselho Nacional de Secretários
Estaduais de Saúde (CONASS), deu início a um projeto denominado “Código
do SUS”, com a finalidade de consolidar as normas organizativas do SUS
para “melhorar a gestão das políticas públicas e dar mais transparência
às regras, facilitando também a compreensão do cidadão e dos órgãos de
controle”. O projeto está sendo executado pelo Programa de Direito
Sanitário da Fiocruz e pela Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília (UnB). São, atualmente, mais de 16 mil portarias que
regulamentam o funcionamento do SUS, sendo que apenas 700 trazem
normativas válidas. Espera-se consolidar tudo até 2020 em apenas seis
portarias divididas segundo os seguintes eixos temáticos: 1) regras
gerais da organização e funcionamento do SUS; 2) conteúdos sobre as 48
políticas públicas de saúde; 3) Rede de Atenção à Saúde; 4) sistemas do
SUS; 5) ações e serviços de saúde; e, 6) financiamento.


Mais uma vez, nada de carreira do SUS entre os eixos temáticos, nada
de planos de cargos e salários, nada de vinculação entre cargos de
comando e assessoria técnica vinculados à carreira do SUS e à
profissionalização do trabalho no setor público. Nesta perspectiva, que
se recusa a pensar a gestão do SUS como a do exercício de um direito
social, os trabalhadores do SUS são vistos e tratados apenas como um
“recurso” a mais a ser gerido como outra mercadoria qualquer no processo
de produção dos “serviços de saúde”, “pagos pelo SUS”. O SUS fica,
assim, reduzido na lógica gerencialista a pouco mais do que uma agência
de financiamento.


Como o objetivo central do projeto “Código do SUS” é de, ao final
(2020) possibilitar que o Ministério da Saúde publique o Código do SUS
como um “Regulamento do Sistema Único de Saúde” com vistas a “orientar a
organização do SUS de modo sistematizado contribuindo para a garantia
do direito fundamental à saúde”, este período histórico é de fundamental
importância estratégica para a ação dos que creem factível e viável uma
carreira interfederativa, única e nacional do SUS, inserindo-a no
“Código do SUS”.


Por essa razão, concluí minha participação no referido seminário
paulistano propondo a intensificação, em todo o País, das lutas pela
carreira do SUS delineando-a como um PCCS de abrangência nacional,
financiamento tripartite, comando interfederativo, base gerencial
regional, administrada por uma secretaria do Ministério da Saúde e com
implantação gradual, por adesão dos entes. Tais características
justificam-se, pois se o SUS é um sistema único as carreiras não podem
ser exclusivamente estaduais ou municipais; os recursos para viabilizar
economicamente a carreira devem ser aportados a ela pelos governos da
união, dos estados e dos municípios; a construção e permanente
aprimoramento do PCCS requer comando composto por representantes de
todos os entes federativos e dos próprios trabalhadores em cada base
regional, atualmente definidas em número de 437; e, por fim, que o
Ministério da Saúde redimensione sua estrutura para que a pasta possa,
efetivamente, assegurar a plena implantação da carreira do SUS,
reconhecendo que sem os trabalhadores da saúde não há SUS, mas, mais do
que isto, reafirmando o valor do trabalho no serviço público e
reiterando que os profissionais de saúde são o bem mais precioso do SUS.
Em síntese: invertendo tudo o que predomina hoje, em que os
trabalhadores da saúde, convertidos em uma espécie de “anexo
problemático” sequer são mencionados em documentos de planejamento ou
relacionados com o modelo de atenção. Sem colocar os profissionais de
saúde no centro do SUS, por meio de uma carreira interfederativa, única,
nacional, nenhum modelo de atenção fará do SUS o “projeto
civilizatório” sonhado para ele por Sérgio Arouca, um dos seus
criadores.


* Paulo Capel Narvai é
cirurgião-dentista sanitarista; professor da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e integrante do Grupo Temático
Saúde Bucal Coletiva (GTSB/Abrasco).  Autor de ‘Odontologia e Saúde
Bucal Coletiva’ (Ed.Santos) e de ‘Saúde Bucal no Brasil: Muito Além do
Céu da Boca’ (Ed.Fiocruz), dentre outras obras científicas.



**  Trabalho apresentado no 9º Seminário
dos Trabalhadores da Saúde do Sindsep, Mesa Temática 1 – O desmonte da
Seguridade Social no Brasil e o Financiamento do SUS, realizado em
5/10/2017 pelo Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e
Autarquias no Município de São Paulo (SINDSEP).

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

ConJur - Ainda podemos indagar por quê ou até isso é obstrução da justiça?

ConJur - Ainda podemos indagar por quê ou até isso é obstrução da justiça?



Senso Incomum

Ainda podemos indagar por quê ou até isso é obstrução da justiça?

Algumas coisas que vem acontecendo me levam a escrever esta coluna. Assim, por exemplo:

1. O encontro com a estudante que gerou a coluna da semana passada (ver aqui)
que demonstra o que foi feito com o Direito, isto é, o Direito foi
transformado em um mero instrumento de poder e não em garantia contra o
arbítrio.

2. A notícia de o Diretório Acadêmico de Direito da Unicap exigindo
(sic) que fosse cancelado um evento que tratava da Revolução Russa, que
mostra que formamos, pelo Brasil afora, uma geração de reacionários,
fascistas e aprendizes de fascistas, afora milhares de analfabetos
funcionais (é isso que nossas faculdades estão formando e forjando).

3. O discurso do general Mourão falando em intervenção militar, que é autoexplicativo.

4. O artigo de Wladimir Safatle que, querendo criticar, legitima a torta
interpretação do artigo 142 da Constituição Federal, mostrando como
setores da esquerda continuam desdenhando do Direito (pelo jeito,
continuam pensando que o Direito é superestrutura...).

5. Julgamentos dos tribunais superiores ignorando parcial ou totalmente
os limites (sintático-semânticos) do texto da Constituição que fez 29
anos, mostrando que parcela do judiciário continua achando que é
vanguarda iluminista do país e que pode corrigir o Direito por juízos
morais e políticos.

6. A absurda prisão do reitor Cancellier (ele foi preso por obstrução da
justiça), seu suicídio e a absoluta falta de autocrítica da Polícia
Federal, do Ministério Público Federal e Justiça Federal sobre o
assunto, mostrando que a prisão se transformou em instrumento banal e
eivado de irresponsabilidade.

7. O constante uso de lawfare, que significa “o uso ou mau uso do Direito como substituto de meios tradicionais para que se atinja um objetivo operacional”.[1] Peço que os leitores meditem sobre esse conceito.

Ou seja, cruzando os dados (e os dedos), transformamos o direito em lawfare:
autoridades usam-no — consciente ou in conscientemente — para fins
morais e políticos (nem discuto a boa ou má intenção dos objetivos
morais). Eis a tempestade perfeita... Por exemplo, denúncias
anônimas são causa para ordens de invasão domiciliar; conduções
coercitivas são feitas à revelia da lei; prisões cautelares são
banalizadas; prisões preventivas sem prazo para terminarem... Defender
garantias passou a ser mal visto... até por parte da comunidade
jurídica, que se transformou em torcedora. Pior: estão transformando o
problema da segurança pública em uma questão política, pasmem, uma
questão de segurança nacional. Assim, eis o caldo: de um lado, a
insegurança, o discurso da impunidade, querendo atingir a grande massa;
de outro, a demonização da política. Pronto: solução — “já podemos
acabar com a democracia; precisamos de ‘lei e ordem’ (ou algo nesse
tom). Tempos difíceis... Discursos perigosos se multiplicam, dia a dia.

No
plano do Direito, quando chegamos aos 29 anos da Constituição, parece
que estamos desaprendendo. Transportamos as Erínias, das Eumenides
(Oresteia, Ésquilo), para dentro da sala de aula, das redes sociais e
para dentro das instituições. Já não se discute Direito e, sim, uma
péssima teoria política de poder. Ou seja, já não fazemos Direito:
praticamos lawfare.

O ponto é que, quando o Direito é
dominado por seus predadores (moral, política e econômica),
transformando-se facilmente em instrumento para a prática de lawfare,
os céticos e torcedores (para usar esses dois “modelos” como
protótipos) têm terreno fértil para se estabelecerem. Fincam raízes e
não mais saem. Torcedores não se importam com princípios. Céticos não
acreditam neles.

Torcedores querem apenas que a lei satisfaça seus anseios. Torcedores são adeptos de lawfare.
Mesmo que não saibam o que seja isto. Céticos dizem que não existem
respostas certas ou respostas melhores do que outras. Mesmo que não
saibam a importância da autonomia do Direito. Claro: embora céticos,
eles acreditam em alguma coisa: a de que só eles têm razão acerca do seu
ceticismo, porque seu ceticismo não deixa de ser uma postura meramente
ideológica. Basta repetir que não há verdades, e o Direito legitima que
se diga qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Céticos e torcedores, querendo ou não, praticam lawfare,
porque usam o Direito para fins políticos e morais (e econômicos).
Direito, para eles, é guerra. Vale a tática “amigo-inimigo”. Primeiro
julgo, depois procuro entender porque isso foi feito. Ceticismo,
pragmaticismo e coisas desse gênero são condição de possibilidade e, ao
mesmo tempo, consciente ou inconscientemente, os maiores aliados do
Direito enquanto teoria política do poder. O establishment agradece. Ou os manipula.

Céticos
e torcedores podem censurar, destruir reputações e... até matar, se é
que me entendem.... Vantagem deles: não precisam explicar nada. Porque
são “o poder”.

Primo Levi relata uma passagem do campo de
concentração, quando um muçulmano, ao levantar pela manhã, leva um
bofetão do guarda. Atordoado, ousa perguntar: Por quê? E o guarda diz:
Aqui não tem por quê.

Desculpem minha rudeza — e não quero, por
óbvio, fazer qualquer comparação infame — (o leitor inteligente sabe o
que quero dizer), mas tenho de perguntar, sempre guardando as devidas
proporções de acontecimentos históricos e pedindo para que não
subestimem minha inteligência:

“— Em Pindorama ainda dá para perguntar “por quê”? Ou essa pergunta já é obstrução da justiça?” Eis a questão.

Ps:
diante das manifestações de reacionarismo nas mídias sociais e na
própria imprensa (e até nos meios jurídicos), como se houvesse uma
conspiração contra a democracia e muita gente admitindo esse desiderato,
lembro de uma frase que ouvi durante Aula Magna que ministrei no
doutorado em comunicação da Unisinos:

“O Brasil sediou a Copa, a Olimpíada e agora vai sediar a Idade Média”.

Bingo!


[1]
DUNLAP JR., Charles J. Lawfare. In: MOORE, John Norton; TURNER, Robert
F. National Security Law. Durham: Carolina Academic Press, 2015.

Supremo, mas nem tanto

Supremo, mas nem tanto - 13/10/2017 - Bernardo Mello Franco - Colunistas - Folha de S.Paulo




BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal não é mais tão supremo assim. No longo julgamento de quarta-feira, a corte estabeleceu que o Congresso poderá derrubar suas decisões
que envolvam parlamentares. O direito à última palavra, que pertencia
aos ministros, foi graciosamente cedido aos deputados e senadores.





A decisão significa um alívio para a classe política ameaçada pela Lava
Jato. Agora os investigados poderão se livrar da Justiça sem ter a
obrigação de desmentir gravações, delações e malas de dinheiro. Basta
manter o apoio da maioria dos colegas, que ganharam uma licença para
salvar os amigos no plenário.





Ao amputar o seu próprio poder, o Supremo se curvou aos coronéis do
Senado. Na semana passada, eles se rebelaram contra as medidas que o
tribunal impôs ao tucano Aécio Neves.
O motim convenceu a ministra Cármen Lúcia a negociar. O resultado da
negociação é a vitória dos rebelados, com o apoio decisivo do governo e
da presidente do Supremo.





Não é a primeira vez que a estratégia funciona. Em dezembro passado, o senador Renan Calheiros se insubordinou contra uma decisão que o afastava da presidência do Senado.
A pretexto de evitar um conflito institucional, o Supremo aceitou ser
desacatado. Saiu menor da crise, como voltou a acontecer nesta quarta.





Em nome da conciliação, Cármen Lúcia sacramentou o novo recuo. Ao
desempatar o julgamento, ela disse que concordava com o relator Edson
Fachin em "quase tudo", mas cedeu ao Senado no essencial. Sua confusão
ao explicar o próprio voto reabriu o debate no plenário e escancarou a
divisão do tribunal.





Ao oferecer a Aécio a salvação que negou a Eduardo Cunha, o Supremo
confirmou que suas decisões podem variar de acordo com a influência
política do réu. O julgamento reforça a ideia de que a Justiça
brasileira ainda segue a máxima de George Orwell em "A Revolução dos
Bichos": todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.

O preconceito é um exercício da liberdade?

O preconceito é um exercício da liberdade? - 13/10/2017 - Vladimir Safatle - Colunistas - Folha de S.Paulo



O preconceito é um exercício da liberdade?













Depois da Segunda Guerra, os EUA foram palco de lutas importantes contra
discriminação da população negra, em especial nos Estados do Sul. No
interior de tais embates, um caso emblemático ocorreu em uma escola na
cidade de Little Rock, em Arkansas.





O governo federal resolveu intervir na discriminação racial que ocorria
nas escolas, com instituições de fato para brancos e negros, utilizando a
força federal para garantir que alunos negros pudessem ser matriculados
e frequentar aulas em escolas ditas de brancos.





Nesse contexto, uma foto emblemática aparece na imprensa. Vemos
Elisabeth Eckford, então uma jovem negra, entrando impassível na escola
pública de ensino médio com uma turba branca atrás si vociferando ódio e
protegida por tropas federais. Ela fora uma das nove jovens negras
escolhidas para integrar a escola. No entanto, ao chegar no primeiro dia
de aula, Eckford viu-se sozinha e escoltada sozinha ela caminhou.





Na ocasião, a filósofa liberal Hanna Arendt escreveu um polêmico artigo a
respeito. Mesmo dizendo-se solidária da causa negra, ela criticava a
ação governamental, que à sua vista deveria se reduzir a mudar o
ordenamento legal e jurídico que suportava a segregação (como as leis
até então vigentes em alguns Estados americanos que impediam o casamento
inter-racial) e não intervir diretamente nos costumes sociais nos quais
a segregação seja alicerçava.





Utilizando uma distinção entre espaço público de cidadania no interior
do corpo político e relações sociais de cunho individual, ou seja,
marcados por decisões individuais sobre com quem quero me relacionar,
como quero ter minha vida em grupo, Arendt diz que a discriminação é
legítima, quando limitada à esfera social, mas destrutiva quando entra
na esfera política onde todos devem ser iguais.





Isso a leva a afirmar, por exemplo, que nada deveria obrigar associações
recreativas ou espaços privados de recreação que só aceitam brancos,
judeus ou homens a obrigar seus membros a estarem em relação com quem
não queiram. Pois nada poderia legislar na esfera de minhas escolhas
pessoais. Como não se trata de serviços públicos, mas de espaços
privados, a discriminação é legítima.





O argumento de Arendt encontra seu caso mais complexo na obrigação das
escolas de se tornarem racialmente mistas. Ao mesmo tempo que o Estado
teria o direito de garantir conteúdos que visem a formação de seus
cidadãos e profissionais, ele não poderia violar o direito social à
associação livre e o direito privado dos pais sobre seus filhos.





Se tais associações e pais querem educar seus filhos em um ambiente
etnicamente homogêneo, o Estado faria por bem não obrigar legalmente uma
mudança. Ainda mais levando em conta que a escola de Elisabeth Eckford
era estadual e o Estado de Arkansas estava disposto a garantir tal
prática. Daí a conclusão de Arendt, para quem a ação do governo federal
teria sido "controversa" e, no limite, indesejável.





Lembrar dos argumentos de Arendt atualmente é interessante para insistir
no tipo de distorção que o conceito de liberdade pode adquirir nas mãos
de um liberal.





Tal distorção parece estar na base de várias controvérsias recentes a
respeito do exercício social da liberdade. Ela nos leva a confundir o
exercício da liberdade com o "direito" à afirmação social e realização
de um comportamento patológico, a saber, o preconceito.





Dizer que a discriminação é legítima na esfera social, compreender o
exercício do preconceito como um "direito", e não como uma patologia
social a ser combatida, é o resultado da tese equivocada de que a
liberdade baseia-se na possibilidade de afirmação individual de
interesses e escolhas. Baseado nisso, poderia dizer que, se escolhi ter
uma vida sem negros por perto, quem poderia me obrigar ao contrário?





No entanto, a liberdade não é um atributo individual, ela é uma
realização social própria a sociedades marcadas pela igualdade e pela
indiferença social às diferenças antropológicas. Não há indivíduos
livres em uma sociedade não-livre.





Nesse sentido, é sim necessário intervir, em todos os níveis, sobre
práticas sociais que minam a adesão a princípios igualitários, sob pena
de ver os preconceitos recrudescerem e contagiarem campos cada vez mais
alargados da vida social. Em uma sociedade que luta pela liberdade, não
pode haver algo como o "direito" de ser preconceituoso na esfera privada
ou no campo imediato das relações sociais. Pois o que destrói a
liberdade não pode ser um direito exercido em nome da liberdade.

A dívida pública como poder de chantagem do capital

A dívida pública como poder de chantagem do capital | Brasil 24/7






A dívida pública como poder de chantagem do capital







Marcello Casal Jr/Agência Brasil










A dívida pública não é apenas expressão do poder
financeiro do setor privado sobre o Estado, mas, sobretudo, a âncora do
poder do capital sobre a orientação da política econômica geral dos
governos. O poder financeiro conferido pela dívida pública é quase
intuitivo: a escola neoliberal ensina que a origem da dívida é a demanda
do setor público por dinheiro, e esse dinheiro deve ser pago com juros
pois do contrário o Estado ficará desacreditado.


Portanto, como expressão do poder financeiro, a dívida pública é um
instrumento de pressão poderoso do setor privado por aumento das taxas
de juros básicas que a remuneram. No Brasil, a Selic. O raciocínio
implícito é que o setor privado, como titular da dívida, pode exigir do
governo sua liquidação, provocando um total desequilíbrio no mercado
financeiro. Para evitá-lo, o Estado é "obrigado" a manter taxas de juros
desejadas pelo mercado.


Ao lado do poder financeiro, a dívida pública confere ao setor
privado um poder quase absoluto sobre a política econômica. De fato,
para manter o valor financeiro da dívida, é necessário articular as
políticas monetária e fiscal de maneira adequada. O governo não deve
expandir a moeda, independentemente das necessidades da economia e da
geração de emprego, pois do contrário haverá uma pressão de baixa da
taxa de juros da dívida.


A política fiscal, por sua vez, deve conciliar emissão de títulos
públicos com emissão de moeda no sentido de evitar a emissão monetária
para o pagamento dos juros/rolagem da dívida numa escala que pressione
para baixo a taxa de juros. Em uma palavra, a essência da política
econômica, que no Brasil é ainda mais travada que nos países
desenvolvidos, fica atrelada às pressões políticas do setor privado para
manter e ampliar a dívida pública.


Entretanto, vejamos essas relações de uma outra forma – para lembrar
Abba Lerner, sob a ótica de finanças funcionais. Primeiro, vamos
considerar que dívida pública não tem nenhuma relação com a demanda de
dinheiro pelo setor público, mesmo quando em situação de gastos
deficitários. O governo pode simplesmente emitir dinheiro em lugar de
emitir dívida, sobretudo se a economia estiver em recessão, depressão ou
contração, como agora.


Nessa hipótese, não haveria nenhuma necessidade de dívida pública. A
necessidade surge do próprio setor privado que precisa ter instrumentos
financeiros seguros para neles aplicar seus lucros e suas sobras de
caixa. Em última palavra, é o setor privado que precisa da dívida, não o
setor público. E tão logo tenha um instrumento de dívida onde aplicar
seus lucros o setor privado passa a exigir taxas de juros maiores para
rolar toda a dívida.


Tão logo se "liberte" da necessidade de ter dívida, o Estado pode
aplicar a política monetária – taxa de juros e expansão da moeda –
indispensável à retomada do crescimento. Vimos que nos Estados Unidos,
na Europa e no Japão a taxa de juros foi reduzida e aí mantida por anos
na faixa do zero por cento. Nós, que copiamos tudo dos países
desenvolvidos, não copiamos isso. Deles, em matéria econômica, copiamos
apenas ideologia neoliberal.


Em termos práticos, não é o valor absoluto da dívida que deve
preocupar, mas seu custo. Amigos meus falam em forçar a "transformação"
da dívida pública em investimento. É uma bobagem bem intencionada.
Primeiro, são quase R$ 3,5 trilhões de dívida; não há como
operacionalizar sua conversão de forma ordenada. Segundo, se a Selic for
reduzida a níveis nipo-europeus, desaparece o custo da dívida, e seu
estoque será gradualmente diminuído.


A zeragem dos juros da dívida tem implicações monetárias: seus
titulares privados podem querer liquidar os títulos e mandar o dinheiro
para fora. Podemos impedi-los com as reservas em dólar, e sobretudo com
controle de capitais, como já admitido pelo próprio FMI. Finalmente, não
devemos fazer uma segunda bobagem, a conversão da dívida "externa" em
investimento, exceto na margem necessária para cobrir despesas de
investimento em dólar.


É que as reservas são um ativo do Estado em dólar. Se tomamos, por
exemplo, US$ 100 milhões das reservas para fazer investimentos em reais,
teremos duas alternativas para internalizá-los: ou criamos uma
contrapartida em real, ou emitimos títulos da dívida pública para
comprar os dólares. Os dólares ficarão no mesmo lugar. No meu entender, a
alternativa mais razoável seria manter os dólares como "garantia" para
simples emissão monetária interna, descolando esta última da política
econômica atrelada à dívida pública.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

A direita percebe seus monstros. Tarde demais?

A direita percebe seus monstros. Tarde demais? - TIJOLAÇO |



A direita percebe seus monstros. Tarde demais?

laertecao


A Veja desta semana dedica sua capa à “Ameaça Bolsonaro”.


O Globo ocupa grande parte de sua homepage com protestos contra a interdição moralista nas artes e no comportamento.


O Estadão protesta, em editorial, contra o fato de o
Supremo, em nome da moralidade eleitoral, ter rasgado a Constituição e
criado a “retroatividade” da Lei da Ficha Limpa até o início dos tempos
bíblicos.


Estará a nata da direita brasileira renegando seus filhos  pavorosos?


Como no velho conto de Monteiro Lobato, O mata-pau, o
que eram um raminhos aparentemente inofensivos, bons para vergastar o
governo democrático, envolveram o Brasil e são hoje lenhos vigorosos,
que já nos constringem e ameaçam sufocar o que resta de nossas
liberdades.


Sim, não é exagero falar em liberdades quando se vivem situações como
a da mãe e filha, em Brasilia, terem sido agredidas por estarem
abraçadas,  ou quando se dirigem os prazos de um processo judicial para
tirar dele o franco favorito dos eleitores, ou quando se admite que a
deduragem de qualquer histérico leve à censura, ou quando a simples
nudez – até nos museus, onde habita há séculos – seja castigada por
hordas hipócritas, moleques financiados pelos negocistas de mercado.


Um país onde se aplaude a morte desesperada de um professor  aviltado
em sua honra e dignidade, com base num imbecil “quem não deve não
teme”, como se a das feridas fundas não ficassem cicatrizes indeléveis.


Em quatro anos, aqueles inofensivos raminhos dos “20 centavos”, do
“blacbloquismo como tática”, do “padrão Fifa”, dos “bundinhas”
moralizadores de Curitiba,  com o esterco da frustração
político-eleitoral da direita e  o sol da mídia a nutri-los, tornaram-se
galhos grossos, fortes, porque se permitiu transformar o ódio, a
vingança, a prisão, a perseguição nos valores sociais.


Levaram ao governo uma quadrilha da pior espécie, sem qualquer
discurso ou programa que não seja o de fazer dinheiro e  se acobertar.
Fuçam e reviram tudo, atrás de qualquer coisa que sirva para apontar
como sujo e corrupto qualquer coisa que possam, para alimentar com a
seiva do veneno as mentes miúdas dos vira-latas de todas as classes e
rendas  que acham o Brasil “uma merda mesmo”, a ser conduzida mais
velozmente nesta corrente de ódio que inunda o mundo.


Usam a (in)segurança pública como combustível de um processo de
transtorno da mentalidade social, como se registra hoje na Folha, onde
se vê a alta penetração de ideia de que “a maioria de nossos problemas
sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais,
dos marginais e dos pervertidos”. E quem os classifica assim? Cada vez
mais a polícia, para a qual está
prestes a ser aprovado na Câmara projeto que lhes permite “acesso
irrestrito a dados pessoais de qualquer cidadão brasileiro”
.


Assim mesmo, sem ordem judicial ou qualquer senão. ” Em benefício da
segurança pública, o cidadão não pode alegar que vai ter sua privacidade
invadida quando na verdade a lei é feita para proteger o bom cidadão,
não para o mau cidadão”. Qualquer PM, com isso, será Deus, para decidir
que é o bom, quem é o mau.


Não podem, portanto, reclamar de que estejam surgindo estas monstruosidades.


Os que têm ideias liberais, se é que ainda existem, se tivessem
alguma lucidez a restar em suas mentes agora varridas de todo o
humanismo que o  impregnou (verdade que faz  tempo) entenderiam que
estão prestes a destruir a única muralha que nos separa da barbárie e do
fascismo.


Se impedirem que o povo brasileiro expresse no seu voto o desejo de
voltar aos tempos de normalidade, de convívio, de algum grau de
esperança no progresso e no bem-estar, só o que lhes aguarda é o abraço
do mata-pau.


Não importa se de topete, toga ou farda, o que terão nem mesmo será um Führer.


Será a selva, a morte, a destruição de um país que se construiu, com
erros e acertos, em 500 anos e ameaça ser destruído em apenas cinco

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Presidente do BNDES diz que juros no Brasil são 'pornografia econômica'

Presidente do BNDES diz que juros no Brasil são 'pornografia econômica' - 04/10/2017 - Mercado - Folha de S.Paulo



Presidente do BNDES diz que juros no Brasil são 'pornografia econômica'


















Em seminário na Câmara Árabe-Brasileira nesta quarta (4), o presidente
do BNDES, Paulo Rabello de Castro, criticou duramente os juros altos no
Brasil, que classificou de "pornografia econômica", e o grupo de
economistas que apoiam a redução do tamanho do banco de fomento.





Segundo Rabello de Castro, a participação do BNDES na economia realmente
tem caído, mas "a única coisa que não cai é o juro real".





"Só o juro nominal cai. A TJLP [taxa de juros de longo prazo que hoje
baliza os financiamentos do BNDES] se esqueceu de cair. Continua rígida
nos 7%", disse.





O economista afirmou que os juros altos significam "a instalação da pornografia econômica no Brasil".





"Queremos mais moralidade no Brasil? Comecemos pelos juros", disse. "Às
vezes a imoralidade veste terno e gravata". No Brasil, afirmou, o
passado é incerto e, "dependendo da última delação", se muda o passado.





Em discurso inflamado, Rabello de Castro disse que "país de juro alto
não tem direito a futuro". Nesse cenário, disse ele, há um grande
incentivo a um eterno "presente". "E presente é carnaval. É um grande
fevereiro o Brasil do juro alto", afirmou.





'ECONOMISTAS DA MEIA-ENTRADA'





"Tem gente aí, economistas da 'meia-entrada', que comemora que o banco
de desenvolvimento está encolhendo. Em breve, encolherá a ponto de não
ser mais perceptível. Muito bem, parabéns", disse ele em tom de ironia.





Ao citar a "meia-entrada", Rabello de Castro se referiu ao termo
desenvolvido pelos economistas Marcos Lisboa e Zeina Latif em texto no
qual criticam os subsídios econômicos existentes na economia brasileira,
dentre eles os juros mais baixos do BNDES oferecidos especialmente a
grandes empresas.





O BNDES, disse Rabello de Castro, é o banco associado ao produtivismo,
daí ser objeto de inúmeras críticas hoje. Para ele, no entanto, o BNDES é
órgão público, portanto político, e "sabe se virar" sem a ajuda da
União.





O economista, que na terça (3) anunciou sua filiação ao PSC e a vontade
de concorrer à presidência da República, criticou também o novo teto de
gastos.





Disse que, nele, a rubrica "investimentos" deveria ser mandatória no
Orçamento e todas as demais, incluindo a "Previdência e o salário de
desembargadores, enfim, a família brasileira", contingentes.





Rabello de Castro afirmou ainda que, além do PPI, o programa de
concessões do governo de Michel Temer, é preciso de um plano "para saber
para onde o país vai."





JBS





Rabello de Castro defendeu a carteira de investimentos do banco de
fomento e disse que o BNDES não perdeu nada com JBS, produtora de
proteína animal envolvida na Operação Lava Jato.





Ele disse que o banco de fomento vai continuar ganhando com a companhia, "assim que a governança por lá melhorar".

terça-feira, 3 de outubro de 2017

O novo surto fascista da Folha

O novo surto fascista da Folha - O Cafezinho



Não existem mais limites para a sordidez e o fascismo da imprensa brasileira.


A Folha de São Paulo publicou manchete hoje, dizendo que: “brasileiro quer Lula preso”.


Aí você vai ler a matéria e vê que 40% dos brasileiros NÃO querem Lula preso.


A Folha pensa que esses 40% NÃO sejam brasileiros?


Sem contar que a Folha nunca fez pesquisa para saber se o brasileiro
“avalia” se o Serra deve ser preso, se o FHC deve ser preso, se Aécio
deve ser preso.


É uma pergunta típica de um pensamento fascista, pois evidentemente ninguém pode ser preso com base em “pesquisa”.


Além do mais, estamos falando de pesquisa, meu Deus! Não tem nada
exato aí. A gente pode até especular sobre quem tem mais ou menos
intenção de voto, mas usar isso para tirar a liberdade de um cidadão, aí
é dar um uso puramente fascista às pesquisas?









Esses 40% que NÃO querem Lula preso podem ser, na verdade, 50%, ou mesmo 60%.


A pesquisa da Folha mostra exatamente o contrário da manchete: há uma
tendência crescente, entre brasileiros, de achar que Lula NÃO apenas
NÃO deve ser preso, como deve voltar a governar o país. A rejeição a
Lula vem caindo rapidamente e a quantidade de brasileiros determinada a
votar nele também aumenta.


Como assim, portanto, o “brasileiro quer Lula preso”?




A Folha é profundamente irresponsável porque essa é uma manchete que
insufla o fascismo, a turma do Bolsonaro, o MBL, maçônicos, os que pedem
intervenção militar.


Quando os historiadores analisarem a evolução do fascismo no Brasil,
não poderá esquecer o papel fundamental da Folha e da imprensa
brasileira, em geral, nesse processo.

Folha trai seus "instintos mais primitivos" e lança o "Chacrinha prisional"

Folha trai seus "instintos mais primitivos" e lança o "Chacrinha prisional" - TIJOLAÇO |



Folha trai seus “instintos mais primitivos” e lança o “Chacrinha prisional”




A inclusão da pergunta, inédita em suas pesquisas, tinha endereço
certo para o Datafolha: contrabalançar o que já sabiam ser o crescimento
de Lula nas intenções de voto.


Então, criaram uma “estatística Chacrinha”: “vai para o trono ou não vai?” e um “vai pra cadeia ou não vai?”.


Ao melhor estilo do Coliseu romano, põe a decisão sobre vida e a
liberdade de alguém na base ou “você acha” que Lula deveria ser
preso?  Por que não logo “executado”?  Ficaria mais coerente com o tipo
de linchamento proposto.


Gloriosos 54% acham que “deve prender” e é um milagre que 40% digam
que não, depois de anos de Jornal Nacional acusando Lula de ter roubado
apartamento, aluguel, prédio, pedalinhos,  bugigangas do gabinete
presidencial e pirulito de criança.


Nem assim os dados deixam de revelar que há um ódio incontido da
elite brasileira a um homem que nada dela tirou, senão seu mórbido
prazer de ver os pobres serem tratados como uma “sub-raça”:


“O apoio à prisão do ex-presidente
cresce conforme aumenta o grau de instrução (69% entre os que têm nível
superior e 37% entre os com nível fundamental) e a renda familiar mensal
(chega a 76% no grupo mais rico e a 42% no mais pobre) do
entrevistado.”
Palmas ao Datafolha que cria um novo tipo de justiça no Brasil. Não
se “vota” mais apenas para escolher pesssoas para governar, mas para
decidir quem deve ser mandado apodrecer na cadeia, depois de julgado
pelo tribunal da mídia.


Do jeito que as coisas andam selvagens neste país, acho que, numa
pesquisa, até o goleiro do Flamengo seria mandado para a cadeia depois
dos penaltis do jogo do Cruzeiro.


Não adianta, depois, fazer biquinho de liberal escandalizado se uma
horda de fanático vai invadir e agredir os funcionários de um museu de
arte. Se a mídia “treina” a opinião pública para ser pitbull de marombeiro não pode reclamar quando alguns saem mordendo.


Sugere-se, depois desta que a Folha chame o Alexandre Frota para seu
conselho editorial. Pela linha de jornalismo estatístico, parece ter
mais a contribuir do que os meninos de camisa de fino algodão.


Felizmente, neste país, por enquanto, ainda não temos “votação para linchamento” e – ainda – temos eleição para presidente.


E nessa, eles piram, Lula sobe cada vez mais.


É isso que eles não aceitam, não perdoam e não medem consequências – nem ditadura, nem conflito civil – para impedir.

Não foi fraqueza, foi fascismo

Não foi fraqueza, foi fascismo. Por José Sardá* - TIJOLAÇO | 



Não foi fraqueza, foi fascismo. Por José Sardá*




Durante o velório do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, no final da tarde de hoje (ontem),
no hall da Reitoria da UFSC, uma dedução predominou: nem durante a
ditadura militar a Universidade foi tão chacoteada como agora pela
justiça federal e Polícia Federal. A vice-reitora Alacoque Erdmann,
resumiu a tragédia: “Luiz Carlos Cancellier deu seu sangue pela UFSC”.


Sim, claro. Na entrevista que concedeu há cerca de uma semana, Luiz Carlos afirmou a Moacir Pereira: nunca fui tão humilhado.


Vamos refletir. O reitor foi preso e conduzido à penitenciária da
Agronômica, igualado a bandidos e corruptos, sob a acusação de ter
obstruído a investigação judicial. Nenhum reitor foi sequer admoestado
durante a ditadura e hoje estamos assistindo à prepotência do
judiciário, que se acha no direito de governar a Nação pela imposição de
julgamentos pessoais ou de grupos de circunstâncias sociais e políticas
brasileiras.


O que é obstruir a justiça? Ora, há bandidos governando dentro de
penitenciárias o tráfico de drogas no Brasil, e a justiça entende que o
reitor pode obstruir as ações de investigação dentro da UFSC.
Cinematográfico ou circense?


Conheci Luiz Carlos em 1981, quando foi iniciar sua vida jornalística em O Estado.
A sua jornada foi brilhante. Paralelo ao jornalismo, cursou Direito e
ingressou na carreira de professor, crescendo como diretor do
Departamento Jurídico e diretor do Centro de Ciência Jurídicas da UFSC.
Há cerca de dois anos, em um encontro casual, ele me confessou: “vou
trabalhar por um candidato a reitor que recupere a dignidade da UFSC”. O
seu movimento culminou com uma decisão consensual de apoio ao seu nome.
E ele se elegeu com sinais vitoriosos de mudanças.


Aos poucos, ao lado da professora Alacoque Erdmann, Luiz Carlos
restaurou o clima de diálogo, reciprocidade de confiança e de relações
com a sociedade.


De repente, é preso, como em uma situação de guerra, de ditadura.
Levado à Penitenciária da Agronômica, Luiz Carlos perde-se na agressão a
um mandato que deveria ser, sobretudo, considerado pela autonomia e
respeitabilidade de uma universidade. Mas, não. Dane-se a instituição! O
que vale são os novos princípios da justiça e da Polícia Federal, que
poderiam ter exigido de Luiz Carlos o comparecimento a uma audiência,
prestação de provas, etc.etc. Mas, não. Preferiram humilhá-lo, ou seja,
dizer-lhe que a justiça e a PF estão bem acima das instituições de
ensino. Ou seja, uma caça a bruxas como se toda a Nação precisasse
provar que não é corrupta. Do geral para o particular, todo o brasileiro
é por natureza corrupto. E viva a autoridade judicial e policial que
tem os holofotes e aplausos populares.


Até que prove o contrário, Luiz Carlos, o Cao, não suportou a humilhação, tanto a ele quanto à UFSC.

Sintam-se como Cao: a imprensa dizendo que ele estava sendo acusado de
desvio de recursos. Aliás, os jornais Folha de S. Paulo e O Globo, e
seus sites de hoje, repetem isso ao anunciar a sua morte.


Não se trata de fraqueza humana, mas, sobretudo, de uma defesa – quem
sabe frágil – da sua moral, dignidade e do direito que a PF e a justiça
não lhe concederam, de provar a sua inocência antes de ser jogado numa
prisão, na mesma vala de Eduardo Cunha, Joesly Batista, etc.etc.etc.


A ditadura de hoje não é militar. É judiciária. O desembargado Lédio
Rosa tem razão: “Mataram meu amigo Cao. E não haverá responsável. Isso é
fascismo da pior espécie”.


*
Laudelino José Sardá é jornalista e professor da Unisul, Universidade
do Sul de Santa Catarinae publicou o texto em seu Facebook.