Mídia consegue esconder da opinião pública um problema de R$ 4,3 trilhões
02 de outubro de 2017 às 10h01TRILHÕES DE REAIS
por Aldemario Araujo Castro*
“Preço da gasolina no DF sofre reajuste pela quarta vez em uma
semana. Valor do litro varia de R$ 3,87 a R$ 4,29. Aumento de 3,3%
anunciado pela Petrobrás entrou em vigor nesta terça; motoristas
reclamam … o preço do botijão de 13 quilos deve subir cerca de R$ 2,44.
Na semana passada, o botijão [de gás] era vendido no DF pelo preço médio
de R$ 60,10”.
Nos termos do Decreto n. 8.948, de 29 de dezembro de 2016, o salário
mínimo para 2017 foi fixado em 937 reais mensais. Esse é o menor valor
que um empregador pode pagar para um empregado por definição
constitucional (artigo sétimo, inciso IV).
Por força de decisão monocrática do Ministro Luiz Fux, do Supremo
Tribunal Federal, (praticamente) todos os magistrados brasileiros
recebem mensalmente um auxílio-moradia no valor de R$ 4.377,73.
Por ser considerada verba de caráter indenizatório, não incide sobre o
ganho desconto de imposto de renda. Essa mesma vantagem também é
auferida pelos membros do Ministério Público.
O pagamento desses valores é visto amplamente pela sociedade
brasileira como um privilégio inaceitável que consome, somente no âmbito
da União, cerca de 437 milhões de reais por ano.
Recentemente, foram apreendidos, pela Polícia Federal, cerca de 51
milhões de reais em imóvel vinculado ao ex-ministro Geddel Vieira Lima.
As imagens de malas e caixas abarrotadas de cédulas de reais e
dólares foram exaustivamente divulgadas na imprensa, nas redes sociais e
circularam o mundo.
No bojo de uma reforma político-eleitoral açodada, suspeita e
ilegítima, buscou-se a instituição de um fundo de financiamento de
campanhas com a disponibilidade de aproximadamente 3,6 bilhões de reais
(0,5% da receita corrente líquida da União). Esse novo aporte de
recursos funcionaria paralelamente ao antigo fundo partidário que
distribuiu 738 milhões de reais em 2016.
“O presidente Michel Temer sancionou nesta quarta-feira (13) a
mudança na meta fiscal de 2017 e 2018, que poderá chegar a um déficit de
até R$ 159 bilhões, informou o Palácio do Planalto. O Congresso
Nacional concluiu no início de setembro a votação que alterou as
previsões de déficit. Para 2017, a meta anterior previa um rombo nas
contas públicas de até R$ 139 bilhões, enquanto para 2018 o déficit
poderia alcançar a cifra de R$ 129 bilhões”.
Como visto, o cotidiano do brasileiro, pautado pela grande imprensa e
pelo governo, convive com referências monetárias (preços, valores ou
montantes) de alguns reais a bilhões de reais.
Esse último patamar numérico já é algo de difícil mensuração ou
dimensionamento. A título de ilustração, um bilhão de reais corresponde a
aproximadamente:
a) um milhão de salários-mínimos ou
b) 28 mil carros populares novos.
Ocorre que os elementos mais relevantes no mundo
econômico-financeiro, abrangidas as vertentes fiscais, monetárias e
cambiais, estão postos na casa dos trilhões de reais.
O PIB (Produto Interno Bruto), soma das riquezas produzidas no país, atingiu o patamar de 5,9 trilhões de reais no ano de 2015.
Por exprimir o tamanho da atividade econômica, é disparado o mais
importante dado utilizado para comparações macroeconômicas e coloca o
Brasil entre as dez maiores economias do mundo.
A condição de um dos países mais ricos do planeta convive com a
triste marca de sermos uma das mais desiguais sociedades no plano
internacional.
Emblemática demonstração desse perverso quadro socioeconômico está
representada na quantia depositada por brasileiros em paraísos fiscais.
A cifra atinge algo em torno de 1,6 trilhão de reais.
“Ricos brasileiros são os quartos no mundo em remessas a paraísos fiscais”.
Em recente entrevista à Folha de São Paulo, o economista Marc Morgan Milá afirmou:
a) “o grupo dos 1% mais ricos tem cerca de 1,4 milhão de pessoas, com
renda anual a partir de R$ 287 mil. O 0,1% mais rico reúne 140 mil
pessoas com renda mínima de R$ 1,4 milhão. Enquanto isso, a renda média
anual de toda a população é de R$ 35 mil. É uma discrepância muito
grande. Esse é o ponto importante no caso brasileiro: a concentração do
capital é muito alta”
e b) “o Brasil é um animal diferente. É o país mais desigual do
mundo, com exceção do Oriente Médio e, talvez, da África do Sul. Um
ponto importante é que todos os governos brasileiros das últimas décadas
têm responsabilidade por isso”.
A principal fonte de receita dos entes estatais (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios), representada pelos tributos, alcançou em
2015 a impressionante cifra de 1,9 trilhão de reais.
Esse montante implicou numa carga tributária macroeconômica da ordem
de 32,66% do PIB e sustenta um enganoso discurso da inviabilidade de
aumento da pressão tributária.
Nesse campo, é preciso atentar para o fato de que a tributação no
Brasil está concentrada majoritariamente no consumo e no trabalho.
A propriedade, o capital e as operações financeiras são
proporcionalmente menos oneradas e gozam de absurdos privilégios
tributários.
Ademais, precisam ser levados na devida conta os seguintes elementos:
a) sonegação tributária em níveis alarmantes;
b) renúncias fiscais de várias ordens;
c) intensas ações de planejamento tributário e
d) estoque considerável da dívida ativa.
A reunião dos três primeiros itens seguramente ultrapassa o patamar do trilhão de reais a cada ano.
O último item, a dívida ativa, representava, somente no plano
federal, um valor na casa de 1,84 trilhão de reais ao final de 2016.
Registre-se uma histórica resistência em dotar os órgãos responsáveis
pela recuperação desses valores de condições satisfatórias para atuar.
Na referida entrevista, o economista Marc Morgan Milá afirmou ainda:
“A história recente indica que houve uma escolha política pela
desigualdade e dois fatores ilustram isso: a ausência de uma reforma
agrária e um sistema que tributa mais os pobres. Para nós, estrangeiros,
impressiona que alíquotas de impostos sobre herança sejam de 2% a 4%.
Em outros países chega a 30%. A tributação de fortunas fica em torno de
5%. Enquanto isso, os mais pobres pagam ao menos 30% de sua renda via
impostos indiretos sobre luz e alimentação”
e b) “As transferências chegam aos mais pobres, mas o sistema
tributário injusto faz com que o ganho líquido se torne menor. Como
esses programas representam cerca de 1,5% da renda nacional, o nível de
redistribuição que se pode obter com eles é limitado. Fora que as
transferências são financiadas por impostos que incidem sobre o consumo.
E como o consumo pesa mais no orçamento dos mais pobres, é possível
dizer que os mais pobres estão pagando por parte das transferência que
recebem”.
As observações do economista Milá seguem o mesmo rumo daquelas realizadas por Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil.
Essa entidade lançou o estudo “A Distância Que Nos Une, Um Retrato das Desigualdades Brasileiras”.
“De acordo com Katia Maia, diretora-executiva da entidade, o objetivo
é divulgar um relatório anual sobre a desigualdade e mostrar os
diferentes problemas do tema, como, por exemplo, o da tributação
brasileira. ‘Nós pagamos muitos impostos. Mas não é que a nossa
tributação é excessiva, na verdade ela é injusta. A gente está abaixo da
média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico) [em termos de carga tributária]. Mas é uma
tributação onde quem paga o pato é a classe média e as pessoas mais
pobres’, disse”.
O chamado “sistema da dívida pública” cumpre um papel central nas finanças públicas brasileiras.
Segundo dados do Banco Central, o montante da dívida pública (bruta)
atingiu, em dezembro de 2016, o patamar de 4,3 trilhões de reais.
Apesar dos sucessivos esforços fiscais voltados para a obtenção de
superávits primários direcionados ao pagamento desse passivo, o
endividamento público cresceu e cresce continuamente.
A razão básica para esse triste fenômeno reside na profunda relação
entre as políticas fiscais, monetárias, cambiais e creditícias,
convenientemente “escondidos” do debate social mais amplo.
Anote-se que as reservas internacional no patamar de 1,2 trilhão de
reais respondem por parte substancial do endividamento do Estado.
Na mesma linha, as operações compromissadas, no valor de 1,02 trilhão
de reais em dezembro de 2016, respondem por outra parte considerável da
dívida pública.
Ademais, o pagamento dos juros sobre essa dívida chegou a meio trilhão de reais em 2016.
Em grande medida, o tamanho crescente do endividamento e do seu
serviço decorre de uma taxa de juros altíssima sem nenhuma razão
plausível e somente explicável na medida em que se considere o “sistema
da dívida” um enorme e perverso mecanismo detransferência de renda da
grande maioria da população para um reduzido grupo de privilegiados.
Apesar de invisíveis no dia a dia e no debate público pautado pela
grande imprensa e pelo governo, as trilionárias realidades
econômico-financeiras destacadas, na forma como funcionam, para além dos
escândalos de corrupção, da previdência social e da folha de pagamento
do serviço público, são alguns dos mais importantes pilares de
sustentação de uma das sociedades mais desiguais, atrasadas e
discriminatórias do planeta.
*Advogado, mestre em Direito, procurador da Fazenda Nacional, professor da Universidade Católica de Brasília
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