sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O preconceito é um exercício da liberdade?

O preconceito é um exercício da liberdade? - 13/10/2017 - Vladimir Safatle - Colunistas - Folha de S.Paulo



O preconceito é um exercício da liberdade?













Depois da Segunda Guerra, os EUA foram palco de lutas importantes contra
discriminação da população negra, em especial nos Estados do Sul. No
interior de tais embates, um caso emblemático ocorreu em uma escola na
cidade de Little Rock, em Arkansas.





O governo federal resolveu intervir na discriminação racial que ocorria
nas escolas, com instituições de fato para brancos e negros, utilizando a
força federal para garantir que alunos negros pudessem ser matriculados
e frequentar aulas em escolas ditas de brancos.





Nesse contexto, uma foto emblemática aparece na imprensa. Vemos
Elisabeth Eckford, então uma jovem negra, entrando impassível na escola
pública de ensino médio com uma turba branca atrás si vociferando ódio e
protegida por tropas federais. Ela fora uma das nove jovens negras
escolhidas para integrar a escola. No entanto, ao chegar no primeiro dia
de aula, Eckford viu-se sozinha e escoltada sozinha ela caminhou.





Na ocasião, a filósofa liberal Hanna Arendt escreveu um polêmico artigo a
respeito. Mesmo dizendo-se solidária da causa negra, ela criticava a
ação governamental, que à sua vista deveria se reduzir a mudar o
ordenamento legal e jurídico que suportava a segregação (como as leis
até então vigentes em alguns Estados americanos que impediam o casamento
inter-racial) e não intervir diretamente nos costumes sociais nos quais
a segregação seja alicerçava.





Utilizando uma distinção entre espaço público de cidadania no interior
do corpo político e relações sociais de cunho individual, ou seja,
marcados por decisões individuais sobre com quem quero me relacionar,
como quero ter minha vida em grupo, Arendt diz que a discriminação é
legítima, quando limitada à esfera social, mas destrutiva quando entra
na esfera política onde todos devem ser iguais.





Isso a leva a afirmar, por exemplo, que nada deveria obrigar associações
recreativas ou espaços privados de recreação que só aceitam brancos,
judeus ou homens a obrigar seus membros a estarem em relação com quem
não queiram. Pois nada poderia legislar na esfera de minhas escolhas
pessoais. Como não se trata de serviços públicos, mas de espaços
privados, a discriminação é legítima.





O argumento de Arendt encontra seu caso mais complexo na obrigação das
escolas de se tornarem racialmente mistas. Ao mesmo tempo que o Estado
teria o direito de garantir conteúdos que visem a formação de seus
cidadãos e profissionais, ele não poderia violar o direito social à
associação livre e o direito privado dos pais sobre seus filhos.





Se tais associações e pais querem educar seus filhos em um ambiente
etnicamente homogêneo, o Estado faria por bem não obrigar legalmente uma
mudança. Ainda mais levando em conta que a escola de Elisabeth Eckford
era estadual e o Estado de Arkansas estava disposto a garantir tal
prática. Daí a conclusão de Arendt, para quem a ação do governo federal
teria sido "controversa" e, no limite, indesejável.





Lembrar dos argumentos de Arendt atualmente é interessante para insistir
no tipo de distorção que o conceito de liberdade pode adquirir nas mãos
de um liberal.





Tal distorção parece estar na base de várias controvérsias recentes a
respeito do exercício social da liberdade. Ela nos leva a confundir o
exercício da liberdade com o "direito" à afirmação social e realização
de um comportamento patológico, a saber, o preconceito.





Dizer que a discriminação é legítima na esfera social, compreender o
exercício do preconceito como um "direito", e não como uma patologia
social a ser combatida, é o resultado da tese equivocada de que a
liberdade baseia-se na possibilidade de afirmação individual de
interesses e escolhas. Baseado nisso, poderia dizer que, se escolhi ter
uma vida sem negros por perto, quem poderia me obrigar ao contrário?





No entanto, a liberdade não é um atributo individual, ela é uma
realização social própria a sociedades marcadas pela igualdade e pela
indiferença social às diferenças antropológicas. Não há indivíduos
livres em uma sociedade não-livre.





Nesse sentido, é sim necessário intervir, em todos os níveis, sobre
práticas sociais que minam a adesão a princípios igualitários, sob pena
de ver os preconceitos recrudescerem e contagiarem campos cada vez mais
alargados da vida social. Em uma sociedade que luta pela liberdade, não
pode haver algo como o "direito" de ser preconceituoso na esfera privada
ou no campo imediato das relações sociais. Pois o que destrói a
liberdade não pode ser um direito exercido em nome da liberdade.

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