quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Dívida pública e gastos com juros


Dívida pública e gastos com juros


Paulo Kliass


 

A linha acordada entre os (de)formadores de opinião passou a se concentrar no novo mote de plantão. Ao que tudo indica, de comum acordo entre eles foi estabelecida a estratégia do “deixou de piorar”. Esse é o mote desesperado na tentativa de resgatar a credibilidade de uma equipe de governo que foi inicialmente apresentada como sendo um verdadeiro time de sonhos, sempre na opinião de onze em cada dez integrantes da seleta nata do clube do financismo. Um ex-presidente internacional do Bank of Boston e um diretor do Banco Itaú no comando da economia: isso era tudo o que se podia esperar para assegurar a defesa dos nobres interesses do sistema financeiro.

Porém, nem tudo é tão simples quanto aparenta. Por mais que apostem todas as suas fichas no impedimento judicial e definitivo da candidatura de Lula no pleito de outubro próximo, os representantes dessa elite atrasada e descomprometida com qualquer resquício de respeito ao processo democrático precisam apresentar alguma alternativa viável eleitoralmente. Até o presente momento, poucos candidatos se arriscam pela seara de defender - de forma explícita e com o peito aberto - o legado da tragédia do golpeachment e do austericídio. A única tábua de salvação que se apresenta para as figuras que se aventurem a sustentar as forças da direita nas eleições refere-se a uma disputa de narrativa em torno de uma eventual melhora nos indicadores da economia.

Deixou de piorar? E quando vai começara melhorar?


É fato que a SELIC foi reduzida ao longo dos últimos meses nas reuniões do COPOM. É também realidade que a inflação medida pelo IPCA também tem sofrido diminuição nos últimos meses em relação aos períodos anteriores. Boas notícias? Talvez em tese, mas só que não no caso concreto. O problema é que a taxa de juros em termos reais terminou por se elevar, não obstante as duas reduções antes mencionadas. Além disso, o Banco Central continua fazendo cara de paisagem no que se refere à sua missão institucional precípua, qual seja, a de regular o mercado financeiro e evitar o abuso de poder econômico do punhado de grandes oligopólios que dominam o nosso sistema bancário. Em poucas palavras, o fato relevante é que os custos financeiros estão mais elevados do que nunca em nosso País. Péssima notícia.

Mas talvez o elemento que mais provoque descrença e desgosto na maioria da população seja a continuidade tão longa quanto dramática da atual fase recessiva, com suas consequências desastrosas em termos sociais e econômicos. O Brasil está atravessando há mais de 2 anos seguidos a maior depressão de toda a nossa História. O desemprego recorde chegou à marca dos 14 milhões de pessoas, sem mencionar a elevação brutal do subemprego e das deploráveis relações de trabalho típicas da informalidade. A falência de empresas também tem oferecido marcas nunca antes atingidas. Péssima notícia que se mantém.

Assim, por mais que o governo tente sacar números oficiais oferecendo um quadro menos ruim, o fato é que a repetição ad nauseam do “deixou de piorar” ainda está muito longe de permitir a reversão da linha de criação positiva de novos postos de trabalho. O que dizer então do tempo e esforço necessários para se retornar a dinâmica da economia brasileira às condições reinantes à época em que Lula era o ocupante do Palácio do Planalto? Na dúvida, então, realmente é mais seguro impedir que o nome dele apareça como opção na urna para os eleitores.

Dívida aumenta para pagar juros


Um dos problemas enfrentados pelo núcleo duro de Temer é que as notícias ruins insistem em continuar a sair dos fornos das próprias instituições oficiais. No início da semana, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) divulgou seu Relatório Mensal da Dívida Pública. Ali encontramos os dados de encerramento do ano passado e verificamos que o estoque da dívida pública federal deu um alto enorme entre dezembro de 2016 e 2017. Em tese, não há razões para se criticar de forma apriorística tal movimento - como o costumam fazer, aliás, os próprios admiradores do trabalho desastrado de Meirelles, Goldfajn & Cia. Para esse povo, dívida pública é sinônimo da força do mal. Normalmente, eles se esquecem das primeiras aulas de economia, quando se aprende que o recurso a esse instrumento é legítimo e necessário para o desenvolvimento de políticas públicas e para a construção de qualquer projeto nacional de desenvolvimento.

O detalhe que agrava essa súbita elevação do nível do endividamento da Administração Pública Federal reside no fato de que ela ocorreu “apesar” da equipe econômica. A ortodoxia e o financismo alardearam entre nós o péssimo hábito de criticar de forma irresponsável qualquer alteração nos valores ou índices de aumento da dívida pública. O recurso à nossa velha e conhecida prática de anunciar o catastrofismo quando se trata de assunto de política fiscal ou monetária não alinhada com os preceitos do establishment. Aliás, não nos esqueçamos jamais que o principal mote para o impedimento inconstitucional de Dilma Roussef sempre esteve ligado a alguma suposta irresponsabilidade fiscal e na condução da política econômica de forma geral.

Pois bem, a própria STN acaba de nos informar que o estoque total da dívida pública federal atingiu a marca de R$ 3,6 trilhões em 31 de dezembro do ano que se encerrou. Isso significou uma elevação superior a 14% na comparação aos R$ 3,1 trilhões do final de 2016. Apesar de parecer muito elevado para quem não está habituado a lidar com tais cifras, ele ainda é bastante razoável em sua comparação com a magnitude da economia brasileira. Devemos encerrar 2017 com a dívida líquida representando algo em torno de 52% de nosso PIB.

O elemento complicador desse salto no estoque da dívida reside no fato de sua taxa de crescimento ter sido muito elevada. O aumento ocorrido foi de algo próximo a meio trilhão de reais no período de 12 meses. Mais precisamente ele foi de R$ 446 bi - um recorde nunca antes atingido. Além disso, vale sublinhar que essa elevação no estoque deu-se sob uma orientação de administração de política econômica absolutamente ortodoxa e conservadora. Ou seja, a dívida cresceu sob o reinado da política da tesoura, com cortes e ainda mais cortes nas despesas orçamentárias.

E nem sempre a evolução ocorreu dessa maneira. Entre 2003 e 2014, por exemplo, taxa de crescimento anual do estoque ficou em torno de 8%. Não por acaso, a partir da implementação da política criminosa do austericídio, o ritmo de crescimento da total da dívida dobrou. Assim, a média anual para o triênio 2015-2017 subiu para 16%.

Ora, frente a esse quadro, até mesmo o leitor mais incauto vai se remexer na cadeira, depois de sentir um certo incômodo nas costas. Ora, como a dívida pública federal pode aumentar se o Meirelles vai para diante das câmeras, dia sim e outro também, anunciar reduções e contingenciamentos nos gastos públicos sob os holofotes atentos e exigentes do povo da banca? A resposta a esse aparente paradoxo reside no fenômeno que chamo de “dominância do financismo”. O fato é que o Estado deixou de aplicar seus recursos em investimentos há muito tempo. Por outro lado, a recessão deliberadamente provocada teve como um de seus efeitos colaterais a queda das receitas tributárias.

Superávit primário e a dominância do financismo


Assim, a lógica do superávit primário permitiu que as despesas de natureza financeira permanecessem intocáveis. Todos os que tivessem direito a receber algum tipo de remuneração associada ao pagamento de juros foram preservados dos cortes e tiveram suas necessidades devidamente satisfeitas. Apesar de toda a sandice de promover cortes nos gastos com pessoal, saúde, educação, previdência, segurança pública e investimentos, as despesas financeiras com juros e rolagem da dívida permanecem com a via livre. Assim, essa é a fonte básica do crescimento do estoque da dívida - juros e mais juros sobre o principal. Uma loucura!

O País é diariamente chamado a realizar um grande esforço fiscal, em nome de uma suposta responsabilidade na condução das contas públicas. No entanto, ao mesmo tempo, o sistema dominado pelos banqueiros permite e até estimula um vazamento nesse “controle rígido” das despesas não financeiras. No período de 12 meses entre dezembro de 2016 e novembro de 2017, por exemplo, as estatísticas do Banco Central apontam para uma despesa efetuada com juros da dívida que soma R$ 402 bi.

O mais dramático fica por conta do acumulado de juros pagos por meio de recursos orçamentários ao longo do período 2003-2017. Esse valor é idêntico ao estoque da dívida atualmente. Ou seja, sempre segundo as informações divulgadas pelo Banco Central, o setor público destinou ao sistema financeiro o equivalente a R$ 3,6 trilhões a título de juros da dívida.

E ainda assim os jornalões seguem insistindo que o problema fiscal brasileiro reside nos privilégios dos benefícios da previdência social. Repetem a não mais poder as mentiras das apresentações oficiais em “power point”, que insistem em denunciar o absurdo de se conceder a fortuna mensal de 1 salário mínimo a milhões de aposentados e pensionistas em nosso País.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

O Judiciário resolveu ser réu

O Judiciário resolveu ser réu

Elio Gaspari

O juiz Marcelo Bretas resolveu passar de símbolo da faxina das roubalheiras do Rio de Janeiro a ícone dos penduricalhos do Judiciário. Contrariando uma resolução do Conselho Nacional de Justiça e respondendo a um questionamento da Ouvidoria da Justiça Federal, cobrou num tribunal o seu auxílio-moradia e o de sua mulher, também juíza.
Bretas sempre morou no Rio e o casal obteve um penduricalho de R$ 8.600 mensais. Num cálculo grosseiro, para pagar uma quantia dessas à Viúva, uma pequena empresa que pague impostos pelo regime de lucro presumido, precisa faturar R$ 5.000 por dia.
Bretas não é o único juiz ou promotor beneficiado pelo penduricalho. A desembargadora Marianna Fux, dona de dois apartamentos no Leblon, também recebe auxílio-moradia. Seu pai, o ministro Luiz Fux, reteve por três anos no Supremo Tribunal Federal o processo que contesta legalidade do mimo classista.
Quando as repórteres Daniela Lima e Julia Chaib revelaram a bizarrice de Bretas ele se explicou com a ironia dos poderosos: "Pois é, tenho esse 'estranho' hábito. Sempre que penso ter direito a algo eu vou à Justiça e peço. Talvez devesse ficar chorando num canto ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito".

Pegar escondido ele não pega, mas se o doutor tem medo de castigo, não deve levar seu pleito ao balcão de uma lanchonete da rodoviária. Lá, trabalhadores que esperam pelo transporte teriam dificuldade para entender como juízes ou promotores, cujos salários iniciais estão em R$ 27.500 ou R$ 26.125, precisam de R$ 4.300 de auxílio moradia para trabalhar na cidade em que sempre viveram. No caso de Bretas ele deveria explicar como um casal precisa de mais R$ 4.300, morando na mesma casa.
Os penduricalhos transformaram-se numa ferida na cara do Judiciário, agravada pela má qualidade da argumentação dos doutores na defesa do mimo. Argumentam que outros servidores também recebem a prebenda. Dois erros nunca somaram um acerto.
O juiz Roberto Veloso, presidente da guilda dos juízes federais, chegou a dizer que um magistrado não pode ter tranquilidade para trabalhar "se o advogado que está a seu lado está ganhando mais que ele". Parolagem de má qualidade. Para recolher em impostos o que o casal Bretas recebe de auxílio-moradia (noves fora o salário) um advogado precisa faturar R$ 70 mil por mês. Além disso, juiz não fica sem clientes, mesmo sendo um mau servidor. Em São Paulo, um juiz condenado por extorsão está em regime semiaberto e em agosto recebeu R$ 52 mil pela sua aposentadoria.
A Lava Jato colocou o Judiciário no centro da política nacional. Transformado em agente da moralidade pública, esse poder está empesteado pela cobiça, pelo corporativismo e pela onipotência. Bretas decidiu simbolizar as três coisas.
Há poucos dias o professor Conrado Hübner Mendes publicou um artigo intitulado "Na prática, ministros do STF agridem a democracia. Uma joia de coragem, informação e lógica. Expôs baixarias, contradições e automistificações de ministros do Supremo. Sobraram poucos.
Sua amarga conclusão: "O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte".

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Supremo se apequenou faz tempo

 Blog do Kennedy

Supremo se apequenou faz tempo

Corte está dividida sobre prisão após decisão de 2ª instância
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KENNEDY ALENCAR
BRASÍLIA
Parece que alguém esqueceu de avisar à ministra Cármen Lúcia que o Supremo Tribunal Federal  se apequenou faz tempo. Durante encontro ontem em Brasília com jornalistas e empresários, ela disse que o tribunal correria esse risco caso viesse a rediscutir a prisão após condenação em segunda instância em função do caso do ex-presidente Lula.
O STF já se apequenou em outros episódios. Por exemplo, decidiu que medidas cautelares contra o senador Aécio Neves (PSDB-MG), como prisão e afastamento do mandato, deveriam passar pelo crivo do Congresso.
A medida, impopular, foi acertada. Mas, logo depois, o mesmo STF decidiu que esse entendimento não valia para três deputados estaduais do PMDB presos no Rio de Janeiro. Ou seja, a corte julgou de acordo com o nome na capa do processo. Julgou casos iguais de forma diferente.
No caso de Aécio, havia um detalhe que agravava a situação. As provas, inclusive produzidas pelo senador na conversa gravada pelo empresário Joesley Batista, eram bem mais consistentes do que as usadas pelo TRF-4 para confirmar a sentença do juiz Sergio Moro contra Lula no processo do apartamento no Guarujá.
Até hoje o Supremo não julgou um recurso final da defesa da ex-presidente Dilma Rousseff contra o impeachment, apesar de frequentemente levar ao exame do plenário assuntos que têm imediata e grave repercussão política. Difícil imaginar algo mais importante do que um impeachment.
O privilégio do auxílio-moradia se ampara numa liminar do ministro do STF Luiz Fux, que criou uma verdadeira farra no Judiciário com a sua decisão. O Supremo vem empurrando com a barriga uma decisão sobre essa liminar há cerca de quatro anos. Preferiu não mexer com a mordomia de juízes e procuradores.
Enfim, sobram exemplos de medidas diferentes adotadas pelo Supremo em situações similares, quiça exatamente iguais. Mais um exemplo: o mesmo STF impediu a posse de Lula na Casa Civil e confirmou a de Moreira Franco na Secretaria Geral.
Ora, o tribunal mostra dureza em relação a alguns. Ora, moderação no que se refere outros. Está difícil encontrar um paralelo histórico para um Supremo tão apequenado como o atual. Aliás, é duro lembrar quando foi que a atual composição da corte se agigantou. Sergio Moro e Deltan Dallagnol têm mais influência no Judiciário do que os 11 ministros do STF _somados.
*
No matadouro
A recomendação do STF para o PT diminuir o tom em relação ao Judiciário é contraditória com a declaração de Cármen Lúcia sobre Lula e eventual revisão da prisão em segunda instância pelo tribunal.
Se depender da presidente da corte, a defesa de Lula terá menos margem jurídica para evitar eventual prisão. Restarão os recursos ao STF e ao STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Cármen Lúcia deixou bem claro que pretende continuar resistindo a submeter ao plenário do Supremo uma rediscussão da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Como ela controla a pauta, tem poder para dificultar um novo debate, como deseja uma parcela do tribunal.
Mas há ministros do STF que pensam diferente dela e vão continuar a pressionar. A tensão permanecerá como marca desse Supremo dividido e apequenado.

Não seja modesta, Ministra: quem apequena o STF é a senhora…


Não seja modesta, Ministra: quem apequena o STF é a senhora…

apeq
Tem destaque, em toda a imprensa, a declaração da ministra Cármem Lúcia – publicada originalmente no site Poder360 – de que não pautará a discussão sobre a prisão de acusados condenados em 2ª instância que ainda tenham recursos pendentes em tribunais superiores, pelo fato de que a discussão – recorrente dentro do STF, desde que se inverteu a jurisprudência histórica de recusá-la – agora envolver o ex-presidente Lula.
“Seria apequenar muito o Supremo”, disse, para acrescentar que  não conversou “sobre isso com ninguém”.
Engana-se a ministra.
O que apequena um tribunal onde todos os juízes estão no mesmo patamar é que sua presidenta indique decisões sobre a pauta sem “conversar sobre isso com ninguém” durante um convescote jornalístico-empresarial – estavam no jantar a direção da Shell, da Coca Cola, da Siemens, da Vivo, da Souza Cruz (British American Tobacco).
Ainda mais quando – e  ela sabe perfeitamente disso – a questão já vem sendo objeto de polêmica interna há tempos, muito antes da ratificação da sentença de Sérgio Moro no TRF-4. Precisamente, desde 2015, muito antes que se falasse em julgar Lula.
Vários ministros já se manifestaram em contrário, seja por votos, seja por decisões. No primeiro caso, Rosa Weber e Marco Aurélio Mello. No segundo, Gilmar Mendes, Ricardo Levandowski, Celso de Mello e Dias Tóffoli. A menos que se conte como voto no Supremo a opinião de Sérgio Moro, seriam seis os ministros com objeções a isso; maioria, portanto.
Não se concebe, senão na paradoxal figura de Gilmar Mendes, magistrado tão pequeno e vaidoso capaz de discutir no restaurante Piantella uma questão de tamanha repercussão, não só nas liberdades individuais, mas na cena política do país. Talvez, para não ser injusto, Luiz Fux, do qual, como de Gilmar, ao menos se pode dizer que a vaidade, embora ocêanica, tenha mais dificuldade em afogar o saber jurídico.
Se a ministra o desejava, conseguiu. Em dois dias, começa o ano judiciário com um mal-estar – que, aposto, não será silencioso – instalado na Corte. Aliás, dois, porque a sessão inaugural do STF se dará com um magote de juízes e promotores à porta, defendendo seu auxílio-moradia, tema no qual Cármem Lúcia preferiu ser vaga, dizendo que o assunto “poderá” ser pautado, mas não o foi.
Além do mais, em matéria de apequenamento do Tribunal, a ministra chegou tarde. Já de há tempos a corte se deixou arrastar para a vala da politização e entregou-se ao jogo de fanatismos que a deixou cercada de uma matilha, que no passado atacou a casa de Teori Zavascki e, ainda sábado, “escrachou” Gilmar Mendes num voo comercial.
Retrato acabado de uma Justiça que passou a reger-se pela “cognição sumária” e pelos aspectos “morais” construídos fora dos tribunais, mas na mídia e nas redes sociais furiosas.
Esta noite, com o regabofe no Piantella, enquanto o país arde na crise político-institucional, Cármem Lúcia mostrou-se à altura de uma única coisa: ao nível do rebaixamento das instituições judiciais a simples jogadoras de um jogo político e, portanto, sujeitas ao clamor das torcidas.

Santayana: Moro corre para “apagar” o triplex


Santayana: Moro corre para “apagar” o triplex

justiaprivadaaroeira
Faça como faz o gato ao “fazer”: enterre.
A brincadeira do velho jogo de palavras cai como uma, digamos, luva para a decisão de Sérgio Moro de mandar leiloar, a toque de caixa, o tal apartamento do Guarujá, do qual ele afirma ser Lula o “proprietário de fato”. O triplex passou a ser um estorvo, ali, a lembrar que, a prevalecer a sentença de corrupção contra o ex-presidente com o argumento de que ele “aceitou promessa” de vantagem, não poderia ser proprietário do que era apenas promessa ou, se a recebeu, algo deveria, ao menos a chave do imóvel, para dizer-se seu proprietário.
Como se destacou aqui, ontem, a decisão de Moro de mandar leiloar o apartamento, por risco de abandono, e, no caso de destituição do confisco que ordenou, ser o valor pago à OAS ou a Lula mostra que o próprio juiz não tem sequer um elemento a sustentar a esdrúxula tese do “proprietário de fato”, a figura inexistente no direito especialmente criada para condenar Lula.
Mauro Santayana também o observa, em artigo escrito em seu blog, hoje e diz que  “se é formal é de fato e se não é formal não é de fato” e, é obvio, não se poderia mandar indenizar com o resultado do leilão quem não tem e não teve jamais a propriedade do imóvel e nem sequer a sua posse, utilizando-o ainda que por um mísero dia ou noite.
O lobo, porém, não precisa de lógica nos argumentos com que devora o cordeiro.

 Os olhos do mundo e o terceiro ato

Mauro Santayana, em seu blog
Desmascarado no mundo inteiro depois da repercussão alcançada pelo caso Lula para leitores de jornais como o Le Monde e o New York Times, o Juiz Moro, com a justificativa de devolver aos cofres públicos a fantástica soma representada pelo apartamento mais falado do Guarujá – e a pressa de “acabar” com as evidências – pediu o fim da penhora do imóvel para pagamento de dívida pela OAS, justamente determinada pelo TJDF – que equivale ao reconhecimento de que o imóvel pertence, claramente, à construtora – com o seguinte texto, que resgata fielmente a velha estratégia goebbelsliana de que a repetição constante de uma inverdade acaba transformando-a exatamente no oposto:
“A omissão do recolhimento do IPTU pela OAS Empreendimentos, proprietária formal, ou pelo ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proprietário de fato, coloca o imóvel em risco, com a possibilidade de esvaziamento dos direitos de confisco da vítima, no caso uma empresa estatal e por conseguinte com prejuízo aos próprios cofres públicos”.
Ora, a aparente conclusão de um fato não diminui a sua infâmia, apenas a evidencia.
Se é formal é de fato e se não é formal não é de fato – ao menos aos olhos da Lei – ou o país pode, a partir de agora, fechar os cartórios e rasgar todos os contratos, que já não valerão mais que o papel do lixo dos banheiros públicos, a não ser que houvesse provas, de fato, de usufruto continuado e escancarado do imóvel, que não existem nesse caso, porque o negócio, iniciado e abandonado pela falecida esposa do ex-presidente, jamais chegou a ser prática ou legalmente concretizado, o que, caso tivesse ocorrido, poderia ter sido feito, eventualmente – ninguém pode afirmar com absoluta certeza o contrário – quando da definitiva entrega do imóvel, a preço de mercado.
Os cães ladram e a História passa.
Com tudo isso, embora muitos tentem tapar o Sol com óculos de peneira, não é necessário ser Mandrake para saber que, do ponto de vista dos livros do futuro, da opinião pública internacional e da comunidade jurídica mundial – cada vez mais atenta ao que está acontecendo no Brasil – prevalecerá a interpretação da defesa do ex-presidente, que afirma:
“a venda do tríplex é uma tentativa de evitar novas decisões da própria Justiça que reforcem que o imóvel não é e jamais foi do ex-Presidente Lula, como ocorreu recentemente com a Justiça de Brasília, que vinculou o bem ao pagamento de dívidas da OAS”.
O leilão do apartamento do Guarujá pode ser, depois das condenações de Lula de Curitiba e de Porto Alegre, o terceiro ato da trágica – e perigosa – peça que está sendo pregada, neste país, contra a Lei, o Estado de Direito e a Democracia.
Mas – omnes est vigilantes actibus nostris  (todos estão vendo o que nós fazemos)- apesar da estréia do próximo espetáculo, o do Sítio de Atibaia – ele não será o último.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Os viciados e os traficantes das redes sociais


Os viciados e os traficantes das redes sociais, por Roger McNamee

Ilustração TecMundo
no Project Syndicate
Os viciados e os traficantes das redes sociais
por Roger McNamee
Tradução de Caiubi Miranda
NOVA IORQUE — Fomos alertados. O investidor de capital de risco e fundador da Netscape, Marc Andreessen, escreveu um ensaio em 2011, intitulado "Why Software Is Eating the World” (Porque razão o software está  comendo o mundo). No entanto, não levamos a sério Andreessen; consideramos que se tratava apenas de uma metáfora. Agora, estamos perante o desafio de extrair o mundo das garras dos monopólios das plataformas de Internet.
Eu costumava ser bastante otimista relativamente às tecnologias. Ao longo de uma carreira de 35 anos em que investi nos melhores e mais brilhantes em Silicon Valley, tive a sorte de integrar os setores dos computadores pessoais, das comunicações móveis, da Internet e das redes sociais. Entre os exemplos que se destacam na minha carreira primeiro  figuram os investimentos iniciais na Google e na Amazon, bem como o fato de ser mentor de Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, entre 2006 e 2010.
Cada nova onda de tecnologia permitiu aumentar a produtividade e o acesso ao conhecimento. Cada nova plataforma que surgiu foi mais fácil de utilizar e revelou-se mais conveniente. A tecnologia impulsionou a globalização e o crescimento econômico. Durante décadas, tornou o mundo num lugar melhor. Partimos do princípio que seria sempre assim.
Quando chegamos a 2016, a Internet revelou dois “lados obscuros”. Um deles está relacionado com os usuários individuais. Os smartphones com infra-estrutura móvel LTE criaram a primeira plataforma de entrega de conteúdos continuamente disponível, transformando o setor de tecnologias e as vidas de dois bilhões de utilizadores. Sendo alvo de pouca ou nenhuma supervisão regulamentar na maior parte do mundo, as empresas como o Facebook, a Google, a Amazon, a Alibaba e a Tencent e utilizavam técnicas comuns relativamente à propaganda e aos jogos de casino, tais como as notificações constantes e as recompensas variáveis para promover o vício psicológico.
O outro lado obscuro é a geopolítica. Nos EUA, na Europa ocidental e na Ásia, as plataformas de Internet, especialmente o Facebook, permitem que os poderosos causem danos aos que não detêm qualquer poder nas esferas da política, da política externa e do comércio. As eleições em toda a Europa e nos EUA demonstraram repetidas vezes que as redes sociais automatizadas podem ser exploradas para prejudicar a democracia.
O referendo relativo ao Brexit e as eleições presidenciais nos EUA em 2016 também revelaram que o Facebook proporciona vantagens significativas para a primazia das mensagens negativas sobre as positivas. Os governos autoritários podem utilizar o Facebook para promover o apoio público a políticas repressivas, como pode estar a acontecer agora em Mianmar, Camboja, Filipinas, e não só. Em alguns casos, o Facebook presta apoio efectivo a tais governos, do mesmo modo que o faz a todos os grandes clientes.
Estou confiante de que os fundadores do Facebook, da Google e de outras grandes plataformas de Internet não tinham intenção de causar danos quando adotaram os seus modelos de negócio. Eram jovens empresários, sedentos de sucesso. Passaram anos a conquistar grandes audiências, reorganizando o mundo online em torno de um conjunto de aplicações que eram mais personalizadas, convenientes e fáceis de utilizar do que as anteriores. Além disso, não fizeram qualquer tentativa de rentabilizar os seus esforços até muito tempo após os utilizadores estarem “agarrados”. Os modelos de negócio de publicidade que escolheram foram alavancados pela personalização, que permitiu aos anunciantes direcionar as suas mensagens com uma precisão sem precedentes.
Depois, porém, veio o smartphone, que transformou toda a comunicação social e colocou efetivamente o Facebook, a Google e uns quantos outros no controlo do fluxo de informações destinadas aos usuários. Os filtros que dão aos utilizadores "o que eles querem" teve o efeito de polarizar populações e fragilizar a legitimidade das instituições democráticas fundamentais (sobretudo a imprensa livre). A automatização, que tornou as plataformas de Internet tão rentáveis, deixou-as vulneráveis à manipulação por agentes mal-intencionados de todas as partes — e não apenas de governos autoritários hostis à democracia.
Tal como Andreessen no alertou, estas empresas, com a sua ambição e alcance global, estão  devorando a economia mundial. Durante este processo, adotam a filosofia empresarial do Facebook — “avançar rapidamente e quebrar códigos” — sem ter em conta o impacto sobre as pessoas, as instituições e a democracia. Uma grande minoria de cidadãos no mundo desenvolvido vive atualmente nas bolhas de filtragem criadas por estas plataformas — as falsas realidades digitais em que as convicções existentes se tornam mais rígidas e extremas.
Nos EUA, cerca de um terço da população adulta tornou-se impermeável a novas ideias, incluindo fatos demonstráveis. Estas pessoas são fáceis de manipular, um conceito que o antigo especialista em assuntos éticos da Google, Tristan Harris, designa como "brain hacking."
As democracias ocidentais não estão preparadas para enfrentar esta ameaça. Os EUA não têm um quadro regulamentar eficaz para as plataformas de Internet, e não têm vontade política para criar tal quadro. A União Europeia tem um quadro regulamentar e a vontade política necessária, mas também não está apta para lidar com o desafio. O recente acórdão da UE contra a Google — uma coima recorde de 2,7 mil milhões de dólares por comportamento anti-concorrencial — foi bem concebido, mas não foi suficientemente dimensionado. A Google recorreu, e seus investidores encolheram os ombros. Pode ser um bom começo, mas foi claramente insuficiente.
Estamos a atravessar um momento crítico. A consciência dos riscos colocados pelas plataformas da Internet está a aumentar a partir de uma base reduzida, mas a conveniência dos produtos e o vício psicológico subjacentes são tais que a mudança pode demorar uma geração a produzir efeitos da parte do utilizador, à semelhança do que aconteceu com as campanhas contra o tabagismo. O reconhecimento do efeito corrosivo dos monopólios das plataformas sobre a concorrência e a inovação é maior na Europa do que nos EUA, mas ninguém encontrou uma estratégia regulamentar eficaz. A consciência de que as plataformas podem ser manipuladas para prejudicar a democracia também é crescente, mas os governos ocidentais ainda têm de conceber uma defesa contra esta manipulação.
Os desafios colocados pelos monopólios das plataformas de Internet exigem novas abordagens, para além da aplicação do direito da concorrência. Importa reconhecer e enfrentar estes desafios como uma ameaça para a saúde pública. Uma possibilidade é tratar as redes sociais de forma análoga ao que foi feito com o tabaco e o álcool, combinando educação e regulamentação.
No Fórum Econômico Mundial de Davos, a ameaça dos monopólios de plataformas de Internet foi um assunto prioritário para os participantes. Para restaurar o equilíbrio nas nossas vidas e a esperança na nossa política, é chego o momento de perturbar os perturbadores.

Fábrica de contas falsas no Twitter turbina perfis de atletas e astros da TV

Fábrica de contas falsas no Twitter turbina perfis de atletas e astros da TV

DO "NEW YORK TIMES"


A verdadeira Jessica Rychly é uma adolescente de Minnesota com um sorriso amplo e cabelos ondulados. Ela gosta de ler e do rapper Post Malone. Quando entra no Twitter ou no Facebook, ela, algumas vezes, fala sobre estar entendiada ou faz piadas com os amigos. Mas no Twitter há uma versão de Jessica que nenhum de seus amigos ou familiares reconheceria.
Apesar de as duas Jessicas dividirem o mesmo nome, fotografia e até a descrição, a outra Jessica promovia contas sobre investimentos em imóveis no Canadá, criptomoedas e uma estação de rádio em Gana. A Jessica falsa seguia ou retuitava contas em árabe ou indonésio, línguas que a Jessica real não fala. Enquanto ela era uma estudante de 17 anos no último ano do ensino média, a sua réplica falsa frequentemente promovia contas com pornografia.
Essas contas sobre pornografia pertencem a uma obscura companhia americana chamada Devumi, que obteve milhões de dólares no nebuloso mercado global de fraude em mídias sociais.
A Devumi vende seguidores e retuítes no Twitter para quem quiser parecer mais popular ou demonstrar influência on-line. Com um um grupo de estimados ao menos 3,5 milhões de contas automatizadas, cada um deles vendido várias vezes, a companhia ofereceu aos seus clientes mais de 200 milhões de seguidores no Twitter, segundo investigação do "New York Times".
"Eu não quero minha foto ligada a uma conta —nem meu nome", afirma Rychly, que agora tem 19 anos. "Não consigo nem imaginar que alguém possa pagar por isso. É simplesmente horrível."
Essas contas são moedas falsas na economia em ampla expansão da influência on-line, atingindo praticamente toda indústria em que a audiência em massa —ou a ilusão dela— possa ser monetizada.
As contas falsas infestam as redes de mídia social. Estimativas apontam que até 48 milhões das contas que o Twitter aponta como verdadeiras na realidade são contas automatizadas que buscam simular pessoas reais —a companhia afirma que esse número é bem menor.
Em novembro, o Facebook informou a investidores que o seu número de usuários falsos era pelo menos o dobro da sua estimativa anterior, indicando que até 60 milhões de contas automatizadas estão rondando a maior plataforma global de mídia social.
Essas contas falsas, conhecidas como bots, podem ajudar a influenciar a audiência para o mercado publicitário e remodelar os debates políticos. Elas podem lesar negócios e arruinar reputações. Ainda assim, a sua criação e a sua venda caem em uma zona nebulosa.
"A viabilidade dessas contas fraudulentas e suas interações nas plataformas de mídias sociais —e a profissionalização desses serviços fraudulentos— são um sinal de que ainda há muito trabalho a ser feito", afirmou o senador democrata Mark Werner, que integra a Comissão de Inteligência do Senado americano, que está investigando a disseminação de contas falsas no Facebook, no Twitter e em outras plataformas.
Apesar do aumento das críticas em relação às empresas de mídia social e de elas estarem cada vez mais no alvo dos políticos, o negócio envolvendo a venda de seguidores falsos continua, em grande parte, intocado.
Apesar de o Twitter e outras plataformas proibirem a compra de seguidores, a Devumi e dezenas de outros sites os vendem abertamente. E as empresas de mídia social, cujo valor de mercado na Bolsa de Valores tem relação direta com o seu número de usuários, fazem suas próprias regras para identificar e eliminar as contas falsas.
German Calas, fundador da Devumi, negou que a empresa venda seguidores falsos e disse não saber nada sobre o roubo de identidades de usuários de verdade.
"As acusações são falsas. Não temos conhecimento de nenhuma atividade desse tipo", afirmou Calas, em troca de e-mails realizada em novembro.
O "New York Times" analisou documentos em tribunais e empresariais da Devumi que mostram que ela tem mais de 200 mil clientes, incluindo estrelas de programas de reality show nos EUA, atletas profissionais, comediantes, pastores e modelos.
Os documentos mostram que, na maioria das vezes, os próprios clientes compram seus seguidores. Em outros, são empregadores, agentes, empresas de relações públicas, familiares ou amigos que fizeram a aquisição.
A Devumi oferece que suas contas vejam vídeos no YouTube, ouçam músicas no serviço SoundCloud e deem um endosso no LinkedIn. Tudo por apenas alguns centavos de dólar cada um.
O ator John Leguizamo tem seguidores da Devumi. O mesmo acontece com Michael Dell, o bilionário da informática, e Ray Lewis, ex-astro de futebol americano e que hoje comenta o esporte na TV dos EUA. Kathy Ireland, uma modelo que hoje comanda um empreendimento avaliado em meio bilhão dólares, tem centenas de seguidores falsos da Devumi. Até mesmo Martha Lane Fox, membro do conselho do Twitter, tem alguns.
Kristin Binns, porta-voz do Twitter, afirmou que a empresa não costuma suspender usuários pela compra de usuários falsos. Ela explica que isso acontece porque é difícil para a empresa identificar quem é responsável pela aquisição.
O Twitter não informou se os exemplos de contas falsas apresentados pelo "New York Times" —cada um deles baseado em um usuário verdadeiro— violam as regras da empresa sobre personificação.
"Nós continuamos a lutar duramente para impedir qualquer automação mal-intencionada em nossa plataforma assim como o uso de contas falsas ou spam", afirmou Binns.

PERFIS SUSPEITOS
Para tentar compreender o negócio, o "New York Times" se tornou cliente da Devumi. Em abril do ano passado, o jornal criou uma conta teste no Twitter e pagou US$ 225 (R$ 710 em valores atuais) em troca de 25 mil seguidores. Os primeiros dez mil pareciam pessoas de verdade. Eles tinham fotos, nomes completos, cidades de origem e, muitas vezes, descrições que pareciam autênticas. Uma das contas parecia ser de Richly, a jovem de Minnesota.
Mas, olhando mais de perto, alguns detalhes pareciam estranhos. Os nomes dos perfis tinham letras a mais ou trocas de caracteres que não notadas facilmente (mudar, por exemplo, um "l" por "I").
Os 15 mil seguidores seguintes eram claramente mais suspeitos: não tinham fotos de perfil e, em lugar de nomes, haviam fragmentos misturando letras e números.
RELAÇÕES OCULTAS
Os documentos analisados da Devumi mostram como ela e seus clientes preferem esconder as relações.
A maior parte dos clientes famosos da empresa usa as redes sociais para vender produtos, serviços ou para se promover.
Questionados pela reportagem, as suas explicações variavam: compraram seguidores porque ficaram curiosos sobre como o serviço funcionava ou se sentiram pressionados para aumentar o número de seguidores deles próprios ou de seus clientes. Alguns deles afirmaram que acreditavam que a Devumi fornecia verdadeiros fãs ou clientes em potencial, mas outros reconheceram que sabiam ou suspeitavam que eram contas falsas. Vários disseram ter se arrependido da aquisição.
"É uma fraude", afirmou o britânico James Cracknell, atleta de remo que ganhou medalha de ouro na Olimpíada de Sydney (2000) e que adquiriu 50 mil seguidores da Devumi. "Não é algo saudável que as pessoas julguem pelo número de curtidas ou de seguidores."
Vários clientes da Devumi ou seus representantes não quiseram comentar o caso, entre eles, Leguizamo, que participou de filmes como "O Pagamento Final", "De Volta ao Jogo e "A Era do Gelo. No caso dele, os perfis foram comprados por um sócio. Muitos outros não responderam aos repetidos esforços para entrar em contato com eles.
Alguns deles negaram a compra. Entre eles, estão Ashley Knight, assistente pessoal de Ray Lewis (ex-jogador da NFL), cujo endereço de e-mail aparece em um pedido de compra de 250 mil seguidores, e Eric Kaplan, amigo do presidente Donald Trump e palestrante motivacional —o e-mail pessoal dele aparece ligado a oito pedidos de compra.
Vários clientes da Devumi reconheceram que compraram os bots porque as carreiras, em parte, dependem da sua influência nas mídias sociais.
"Ninguém vai levar você a sério se você não tiver uma presença significativa", afirmou Jason Schenker, economista que adquiriu ao menos 260 mil seguidores.
Mais de cem autointitulados influenciadores digitais —cujo valor de mercado é ainda mais diretamente ligado ao número de seguidores nas mídias sociais— adquiriram contas no Twitter da Devumi.
Influenciadores precisam ser bem conhecidos para conseguir dinheiro de patrocínio. Recente reportagem do tabloide britânico "The Sun" mostrou que os jovens irmãos Arabella e Jaadin Daho, 14, ganham juntos US$ 100 mil (R$ 315 mil) ao ano como influenciadores digitais, trabalhando com marcas como Amazon, Disney, Louis Vuitton e Nintendo. Arabella, que tem 14 anos, usa no Twitter o nome Amazing Arabella.
Mas as contas dela e de seu irmão são turbinadas por milhares de retuítes comprados por sua mãe e administradora de suas carreiras, Shadia Daho, segundo documentos da Devumi.
Daho não respondeu às repetidas tentativas para entrar em contato com ela via e-mail ou por meio de uma agência de relações públicas.
A EMPRESA
Depois de mandar um e-mail para Calas (fundador da Devumi) no ano passado, a reportagem do "New York Times" visitou o endereço que a empresa apresenta no site dela como seu. O prédio tem dezenas de locatários, mas nem a Devumi nem a Bytion (a holding que é sua dona) aparecem entre eles. Um porta-voz do dono do prédio disse que a Devumi e a Bytion nunca alugaram nada lá.
Assim como os seguidores que a Devumi vende, o seu escritório era uma ilusão.
Segundo ex-funcionários da empresa, a entrada e saída de empregados era bastante alta na Devumi, e Calas mantinha uma operação altamente compartimentalizada.
Funcionários muitas vezes não sabiam o que os seus colegas estavam fazendo, mesmo quando estavam trabalhando no mesmo projeto.
Os ex-empregados pediram que seus nomes não fossem revelados por temor de processos ou porque fizeram acordo com as empresas de Calas que preveem que eles não se manifestem.
Mas as suas declarações coincidem com comentários no serviço Glassdoor (em que funcionários avaliam seus empregadores), em que alguns antigos trabalhadores afirmam que Calas era pouco comunicativo e exigia que eles instalassem softwares de monitoramento em seus aparelhos pessoais.
No mês passado, o fundador da Devumi pediu exemplos de perfis falsos encontrados pelo "New York Times" e que copiavam os de pessoas de verdade. Depois de receber os nomes de dez contas, Calas, que tinha concordado em dar entrevista, pediu mais tempo para analisá-los. Em seguida, ele parou de responder os e-mails.
Binns, a porta-voz do Twitter, afirmou que a companhia não analisa de modo proativo se as contas estão se passando por outros usuários. Em lugar disso, os esforços da empresa estão concentrados em identificar e suspender quem viola as políticas de spam do Twitter.
Todos os exemplos de perfis apresentados pelo "New York Times" violaram as políticas antispam do Twitter e foram cancelados, segundo Binns.
"Nós levamos muito a sério o ato de suspender uma conta da plataforma", afirmou Binns. "Ao mesmo tempo, queremos lutar duramente contra o spam."
Em janeiro, depois de quase dois anos promovendo centenas de clientes da Devumi, a conta da falsa Jessica Rychly foi finalmente flagrada pelos algoritmo de segurança do Twitter. Ela foi recentemente suspensa.
Mas a Rychly de verdade pode em breve deixar de vez o Twitter. "Eu provavelmente vou deletar minha conta no Twitter." 

Na prática, ministros do STF agridem a democracia, escreve professor da USP

Na prática, ministros do STF agridem a democracia, escreve professor da USP

CONRADO HÜBNER MENDES

RESUMO Professor de direito constitucional da USP faz duras críticas ao STF. Afirma que a corte, numa espiral de autodegradação, passou de poder moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. Explicações para isso se encontram na atuação dos ministros e no desarranjo de ritos e procedimentos.
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O Supremo Tribunal Federal é protagonista de uma democracia em desencanto. Os lances mais sintomáticos da recente degeneração da política brasileira passam por ali. A corte está em dívida com muitas perguntas, novas e velhas, e vale lembrar algumas delas antes que os tribunais voltem do descanso anual nos próximos dias.
Se Delcídio do Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso?
Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido o mesmo na conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em ministro?
Se o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância, por que ministros continuam a conceder habeas corpus contra a orientação do plenário, como se o precedente não existisse?
Se a restrição ao foro privilegiado já tem oito votos favoráveis, pode um ministro pedir vista sob alegação de que o Congresso se manifestará a respeito? Pode ignorar o prazo para devolução do processo?
Se lá chegam tantos casos centrais da agenda do país, como pode um magistrado, sozinho, manipular a pauta pública ao seu sabor (por meio de pedidos de vista, de liminares engavetadas etc.)?
Se o auxílio-moradia para juízes, criado em 2014, custa ao país mais de R$ 1 bilhão por ano, como pôde um ministro impedir que o plenário se manifestasse até aqui? Se a criminalização do porte de drogas responde por grande parte do encarceramento em massa brasileiro, como pode um pedido de vista interromper, por anos, um caso que atenuaria o colapso humanitário das prisões?
Se um ministro afirma que Ricardo Lewandowski "não passa na prova dos 9 do jardim de infância do direito constitucional", que Luís Roberto Barroso tem moral "muito baixinha", que Marco Aurélio é "velhaco", que Luiz Fux inventou o "AI-5 do Judiciário", que Rodrigo Janot é "delinquente" e que Deltan Dallagnol é "cretino absoluto", e além disso tem amigos espalhados entre o empresariado e a classe política julgados pelo STF, como expressará isenção nesses casos?
Se a Lei Orgânica da Magistratura proíbe juízes de se manifestarem sobre casos da pauta, como podem ministros antecipar posições a todo momento nos jornais?
A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas e autointeresse.
O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia.
CHOQUE DE REALIDADE
A separação de Poderes conferiu lugar peculiar ao Supremo. O Parlamento é eleito, o STF não. O parlamentar pode ser cobrado e punido por seus eleitores, os ministros do STF não. O presidente da República é eleito e costuma ser o primeiro alvo das ruas, os membros do STF estão longe disso. A corte suprema tem o poder de revogar decisões de representantes eleitos.
É um tribunal que se autorregula e não responde a ninguém. O que justifica tanto poder e a imunização contra canais democráticos de controle?
Há boas respostas teóricas para esse arranjo. Para alguns, a integridade constitucional depende de um órgão capaz de pairar acima dos conflitos partidários, praticar a imparcialidade e assumir o papel de poder moderador. Para outros, mais do que apenas moderar, caberia ao tribunal inspirar respeito por seus argumentos jurídicos, que tecem padrões decisórios e constroem jurisprudência.
A autoimagem construída pelo STF foi ainda mais longe. Apresentou-se como a última trincheira dos cidadãos, incumbido da missão de salvar a democracia de si mesma, domesticar maiorias, amparar e incluir minorias.
No ápice da automistificação, o ministro Barroso imaginou a corte como "vanguarda iluminista que empurre a história" na direção do progresso moral e civilizatório (Vinicius Mota descreveu a ideia no dia 14/1).
A crise política e a erosão de direitos dos últimos anos trouxeram ao Supremo a oportunidade (e o ônus) de atender a suas promessas. A resposta, porém, foi um choque de realidade.
O desarranjo procedimental cobrou seu preço. Despreparado para a magnitude do desafio, o tribunal reagiu da forma lotérica e volátil de sempre. A prática do STF ridiculariza aquele autorretrato heroico, frustra as mais modestas expectativas e corrói sua pretensão de legitimidade.
Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal tornou-se partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante do direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos. Desse caminho é difícil voltar.
Atado a uma espiral de autodegradação, o poder moderador converteu-se em poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. O ator que deveria apagar incêndios fez-se incendiário. Não foi vítima da conjuntura, mas da própria inépcia. A vanguarda iluminista na aspiração descobriu-se vanguarda ilusionista na ação (e na inação).

ILUSIONISMO
Como opera esse poder tensionador? Para decifrar a vanguarda ilusionista, precisamos olhar para além do resultado de cada decisão (se prende ou solta, se anula ou valida). Deve-se prestar mais atenção ao procedimento que gerou tal resultado e ao argumento que o justifica. É no procedimento e no argumento que mora o ilusionismo.
A síntese do desgoverno procedimental do STF está em duas regras não escritas: quando um não quer, 11 não decidem; quando um quer, decide sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu juízo de oportunidade. Praticam obstrução passiva no primeiro caso, e obstrução ativa no segundo.
A contradição entre as duas regras é só aparente, pois a arte do ilusionismo permite sua coexistência. Manda a lógica do "cada um por si", nas palavras de editorial da Folha (24/12).
O argumento constitucional do Supremo já não vale o quanto pesa e tornou-se embrulho opaco para escolhas de ocasião. Basta olhar com lupa as incoerências na fundamentação de casos juridicamente semelhantes que recebem decisão diversa.
A expressão "jurisprudência do STF" sobrevive como licença poética, pois perdeu capacidade de descrever ou nortear a prática decisória do tribunal. Perdeu dignidade conceitual e até mesmo retórica.
No âmbito da esfera pública, o ilusionismo serve para desviar a atenção, responder o que não se perguntou, jogar fumaça na controvérsia e confundir o interlocutor.
O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, é praticante rotineiro dessa técnica. Publicou nesta Folha (17/1) artigo em defesa do habeas corpus (HC). Invoca o direito abstrato à liberdade, do qual ninguém discordará, e se desvia das críticas contra suas decisões recentes.
As críticas às quais Mendes reage nunca miraram o HC em si, mas as evidências de suspeição para julgar, de forma monocrática, pessoas do seu círculo pessoal e político. O ministro se apresenta como defensor da liberdade, mas suas decisões passam a impressão de ser defensor dos amigos. Para dissipar essa impressão, basta que se declare suspeito —o que se recusa a fazer.
Manha ilusionista: discursar sobre o ideal revolucionário da liberdade e silenciar sobre a liberdade concedida a amigos indiciados.
OUTROS TEXTOS DESTA EDIÇÃO
O ilusionismo, nas suas faces procedimental e argumentativa, retira das decisões do STF o selo de integridade institucional.
Por essa razão, tem sido pouco útil aos advogados e analistas da corte perguntar se o texto da Constituição é lido de modo apropriado, se nossas categorias de análise dão conta da tarefa interpretativa e se o tribunal pratica ativismo ou deferência —questões nobres do debate constitucional.
Mais importante é conhecer a biografia do ministro e sua capacidade de atender a ética da imparcialidade, da responsabilidade e da colegialidade.

A ambição do Estado de Direito é produzir um "governo das leis, não dos homens". Soa como slogan a serviço da distorção ideológica, mas o sentido da expressão não tem nada de esotérico.
A mensagem é mais modesta: não quer dizer que o aparato institucional de interpretação e aplicação das leis deva ser composto por sujeitos sobre-humanos, imunes a afetos e interesses, mas apenas que esses sujeitos devem ter compromisso ético para decidir com maior isenção e ponderação analítica, além de gozar de garantias contra a pressão da barganha política. Não requer muito mais que isso.
A prática do STF pede adaptação daquela máxima: a interpretação constitucional deve estar submetida ao "governo do Supremo, não dos ministros". O tribunal, porém, tem sido governado pelo voluntarismo incontinente de seus membros. É muito poder individual de fato (e de legalidade duvidosa) para ser usado com tanta extravagância.
Como disse José Sarney, anos atrás, "um dos maiores desserviços ao país é desprestigiar o Supremo Tribunal Federal". Esse desserviço ao STF vem sendo prestado pelos seus próprios membros. Isso traz consequências.
ARBÍTRIO
O tempo do STF é místico. A corte pode tomar uma decisão em 20 horas ou em 20 anos (como publicou Ivar Hartmann, neste mesmo caderno, em 28/5 de 2017). A duração de um caso não guarda nenhuma relação com sua complexidade jurídica, sua importância política ou o excesso de trabalho do tribunal —alegações usuais de ministros.
É fruto, sim, da idiossincrasia e do instinto de cada julgador. E, às vezes, de negociações nos bastidores palacianos e corporativos.
Ninguém melhor que o ex-deputado Eduardo Cunha para iluminar o problema. Quando afastado de seu mandato pelo STF em 2016, ironizou com a pergunta cínica que muitos se fizeram: "Se havia urgência, por que levou seis meses?" Em outras palavras: por que agora?
Uma ótima questão, que poderia ser aplicada a muitos casos (por exemplo, o pacote natalino de liminares, todas monocráticas e abruptas, tomadas no apagar das luzes de 2017, antes de o Judiciário sair de férias).
Lewandowski, presidente da corte em 2016, desconversou: "O tempo do Judiciário não é o tempo da política e nem é o tempo da mídia. Temos ritos, procedimentos e prazos que devemos observar".
A resposta é mais um artefato ilusionista. Quando diz que o tempo do Judiciário não é o tempo da política nem o da mídia, recorre a um árido lugar-comum para se esquivar do que se queria saber. A resposta também ignora a inteligência empírica que vem sendo construída ao longo dos último anos sobre o STF por um crescente grupo de estudiosos da corte.
A definição arbitrária do seu tempo decisório é mais uma faculdade que o Supremo conferiu a si mesmo e não explicou a ninguém, um dos poderes mais antidemocráticos que um tribunal pode ter.
INSEGURANÇA
Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das decisões passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no futuro.
Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações interpretativas genuínas.
Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da segurança jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo razoável ou sabido. Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.
O STF, no entanto, não só tirou a credibilidade da noção de jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber quando uma decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros sequer de que haverá decisão, qualquer que ela seja.
Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente, "ritos, procedimentos e prazos", como quis Lewandowski, já seria um gesto quase revolucionário.
Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos, prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um espaço em que debates democráticos possam se desenvolver, que atores interessados possam mobilizar energia e recursos para participar. Esperam apenas que seus argumentos sejam respondidos e uma decisão seja tomada em tempo publicamente justificado.
Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a comparação tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o tempo não é exclusividade do Supremo.
Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul. Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos difícil.
Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou argentina, indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se consegue encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de ministros.
PERDA DO RESPEITO
Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que "cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem". Pelo menos parte do tempo.
Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia. A crônica constitucional só perde a inocência quando está apta a detectar a dissonância entre as palavras e os atos de instituição ainda tão obscura quanto o Judiciário.
Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo.
Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder para, sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos irreversíveis. A crônica constitucional brasileira vem captando essa lição à medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais, mais palpáveis.
O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte.
Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem, sozinhos ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de jornalistas.
Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco contestados (um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma honraria oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação com voto de colega etc.).
Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de autoridade) e deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a capacidade de ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido sem custos.
Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo.
Maquiavel sugeriu, em "O Príncipe", que um governante não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for respeitado, que ao menos não seja desprezado, sentimento político mais nocivo. Um governante torna-se desprezível quando é "inconstante, leviano, irresoluto".
O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.
Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do que pode, disfarça o tanto quanto consegue.
Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.
E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem na forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional.
Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo status se evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais avançada que já tivemos.
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CONRADO HÜBNER MENDES, 40, doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP, é professor de direito constitucional da USP e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.