Décadas de uma guerra perdida. Por Leonel Brizola
Quando escrevi o texto Elefantes e Mosquitos, sobre a insânia de uma “guerra ao crime” que, desta forma, só se pode perder, vieram as inevitáveis lenga-lengas dos midiotizados a dizer que Leonel Brizola é que havia transformado o Rio no “paraíso dos criminosos”, uma bobagem que se repete há mais de 30 anos, como um mantra da estupidez.
Tive, claro, vontade de transgredir minha própria regra de jamais “falar em nome” de Brizola ou de escrever por ele, como fiz por duas décadas e dar a resposta que tantas vezes ele deu a esta gente. Poderia fazê-lo, mas, com ele morto, seria uma caricatura. Não como antes, quando eu sabia exatamente como ele pensava e traduzia isso para sua própria e característica linguagem.
Da tentação de fazer o Brizola “responder” aos seus detratores irracionais salvaram-me a memória e os arquivos implacáveis de meu colega Apio Gomes, que protege como um leão a memória de quase 600 escritos dos velhos “tijolaços”. Deles salta um texto escrito mal passara o primeiro ano de governo Brizola, o suficiente para se levantar a criminalidade como forma de, pela mídia, por-lhe a marca de leniente com criminosos.
O texto, apenas o quinto “tijolaço” com que ele começava a imensa série de publicações, é de agosto de 1984. Quase 34 anos depois, permanece atualíssimo e dá, ainda, um “chega pra lá” na mídia que começava com a história de que foi com ele que o crime tomou conta do Rio, esquecida do que ela própria dizia mais de três anos antes de sua chegada ao Governo do Rio.
Uma campanha sórdida – entre muitas – que acabaria nos levando, junto com a censura imposta por Sarney a Brizola nas eleições de 1986 levando o Estado a ser governado por uma pústula que se promovia prometendo “acabar com a violência em seis meses”.
Como se viu, os métodos da mentira continuam os mesmos.
Doença Social
Leonel Brizola, em 17 de agosto de 1984
A população tem os mais justos motivos, está coberta de razão: esse problema da violência e da criminalidade vem se tornando intolerável e inadmissível. É certo que esse drama não é somente nosso. Vem atingindo, de forma brutal e crescente, todas as grandes cidades brasileiras, particularmente as duas maiores – São Paulo e Rio de Janeiro.
Há esperanças de que esta situação venha a ser controlada e vencida pelas autoridades públicas? Considero que sim, se for enfrentada, conscientemente e em conjunto, pela sociedade e pelo Governo. Trata-se de uma verdadeira doença social. Estamos sofrendo seus trágicos efeitos. Não podemos fechar os olhos para suas causas. Tanto isto é verdade, que o mal vem se agravando nestes últimos anos, porque apenas se vem tratando de seus efeitos. Um certo nível tolerável de violência e criminalidade existe até mesmo nas comunidades mais evoluídas do mundo. Mas aqui, como em outras nações com as nossas características, não é isto o que ocorre. Chegamos a níveis de calamidade. A nossa situação pode ser comparável a de uma pessoa que vem tratando suas dores de cabeça apenas com analgésicos e foi aumentando a dose sem cuidar das origens de seus males.
Seria uma insensatez deixar de reconhecer a necessidade de medidas enérgicas, preventivas e repressivas, mais ação e mais policiamento ostensivo, melhor técnica e eficiência – mais remédios para aliviar os efeitos.
Mas chegamos a um ponto em que não podemos deixar que passe um minuto mais sem atentar, decididamente, para as causas de uma situação que adquire, cada dia mais, as características de uma verdadeira tragédia.
Se tão-somente a presença ostensiva da autoridade policial, a repressão, as batidas indiscriminadas, com todas as suas conseqüências de abusos e humilhações, representassem a solução, a erradicação da violência e da criminalidade, então o problema já estaria resolvido. Foi o que tivemos aqui durante quase 20 anos: prevaleceu essa mentalidade, inclusive sob o comando direto de oficiais superiores das Forças Armadas. E não faltaram demonstrações de força e espetacularidades, amplamente divulgadas.
E quais foram as conseqüências? O problema não foi sequer controlado, muito menos resolvido. Ao contrário, agravou-se dramaticamente. Basta comparar estas duas épocas: os anos próximos anteriores a 64 e os últimos tempos.
Argumentam com a urbanização incontrolada. Mas aí está uma das maiores acusações que se pode fazer a um regime que teve tudo nas mãos e permitiu, sem prever e planejar, essa balbúrdia que foi o processo de urbanização em nosso País. Hoje, Rio de Janeiro e São Paulo, para citar os exemplos mais escandalosos, em lugar de possuírem cinturões verdes, o que têm são cinturões de miséria e de pobreza, de abandono, desocupação e de fome, onde milhões de seres humanos, sabe Deus como, se agitam para sobreviver.
Afirmar que esse contexto de miséria e marginalização de milhões de pessoas, que se amontoam nas favelas e na periferia, não tem nada a ver com a incidência crescente de criminalidade no Rio de Janeiro é proceder como o avestruz ao esconder a sua cabeça. De onde vêm os novos contingentes de crianças, de adolescentes e jovens que a cada dia se tornam infratores?
Estou persuadido de que neste período complexo que atravessamos, ao sair de uma época de obscurantismo, o mais importante e urgente que temos a fazer – quanto às causas da criminalidade – é assistir e escolarizar as nossas crianças e adolescentes. Mais que uma prioridade, é uma emergência. Precisamos salvar as nossas crianças dos descaminhos, dos desvios de conduta. Não basta a escolarização de duas ou três horas. É indispensável que permaneçam na escola – estudando, comendo, ocupando-se durante todo o dia. É necessário, evidentemente, cuidar de todos os demais problemas. Mas esta é a prioridade das prioridades.
Encontro-me diante de uma herança trágica. A situação de miséria, sem perspectiva, de milhões de famílias é a fonte alimentadora dessa desgraça social que funciona como uma espécie de viveiro ou como se fora uma fábrica sempre com seus pátios cheios.
Se não atentarmos simultaneamente, com a mesma determinação e firmeza, para os efeitos e causas da criminalidade, estaremos diante de uma luta sem fim; a cada hora mais dramática, mas irremissivelmente perdida.
Leiam, a propósito, o que o Jornal do Brasil publicou, num dos seus editoriais, em 22-11-1979:
“Eles são os combatentes de uma guerra suja, que todos os dias atinge milhares de pessoas. Roubam, assaltam, matam. Muitas vezes são presos, espancados, torturados e mortos. Nas prisões e reformatórios, passam por verdadeiros cursos intensivos de criminalidade, com direito a pós-graduação. E, se sobrevivem aos embates com a polícia, ingressam na maioridade adestrados, capazes das maiores proezas criminais. Se isto acontece com 2 milhões de menores, vivemos uma calamidade pública, que o Governo e a sociedade tentam esconder, ignorar ou minimizar, ou então resolvê-lo sugerindo que o problema do menor é um caso de polícia. É uma visão estreita, simplista e simplificadora.
É claro que, bem aparelhada e bem paga, a polícia poderá atuar melhor e dar mais segurança à sociedade. Mas a questão crônica do menor abandonado é mais ampla. Trata-se de mais um Fruto da Miséria”.
É claro que, bem aparelhada e bem paga, a polícia poderá atuar melhor e dar mais segurança à sociedade. Mas a questão crônica do menor abandonado é mais ampla. Trata-se de mais um Fruto da Miséria”.
Não me surpreende. O velho e querido JB, de outros tempos, era assim mesmo: coerente, lógico, sério, isento, com a preocupação permanente de elucidar a fundo todos os problemas, seus efeitos, sem desconhecer suas causas. Atualmente, como já sabe a população, prevalecem outros interesses e compromissos predatórios da credibilidade e do conceito da instituição.
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