ESF e Atenção Primária: o bode está na sala há pelo menos 13 anos « Blog Saúde com Dilma: "ESF e Atenção Primária: o bode está na sala há pelo menos 13 anos
Posted by Felipe Cavalcanti on março 30, 2011 · 4 Comentários
por Felipe Cavalcanti, médico sanitarista, professor do curso de medicina da UFV e sub-editor do Saúde com Dilma
Primeiro: qual é o bode?
Em seu discurso de posse, o ministro Padilha sinalizou que a Atenção Básica seria prioridade e que haveria flexibilização no modelo de indução para atenção primária à saúde (APS) atualmente sustentado pelo ministério da saúde (MS). Este modelo restringe o repasse de parcela considerável dos recursos apenas a municípios que seguem a cartilha do MS (com um modelo, na minha visão, bem engessado – 1 médico, 1 enfermeiro, 1 técnico e assim segue, todos 40 horas, e etc. etc., tudo prescrito). Após a posse, tanto o ministro como outros atores do ministério da saúde (MS) continuaram sinalizando a flexibilização do modelo, sendo a mais recente e contundente a afirmação de Heider Pinto, diretor do departamento de atenção básica (DAB) em entrevista à rede de APS: “E tudo isso tem que valer para toda a APS, não importando se é Saúde da Família de um jeito A ou de um jeito B, ou mesmo se é modelo X de APS que não tem sua sustentação no médico de Família. O Ministério vai trabalhar para que todos implantem os princípios da APS […]”. As afirmações dos atores do MS, entretanto, não passaram em branco. Diversas reações tem sido esboçadas, inclusive com algumas manifestações públicas em favor da saída de Heider do ministério.
Na última segunda-feira, li o texto “Tirando o bode da sala com 53 dias de governo” e resolvi entrar na contenda. Não para colocar mais lenha na fogueira, mas para sugerir um caminho do meio. Nesse sentido, a primeira pergunta talvez seja justamente “qual é o bode”? É preciso relembrar os muitos textos, falas e posicionamentos críticos desde que o MS adotou (no sentido de sua ampliação) nos idos de 1998 um modelo de APS que desconsiderava muito das experiências dos municípios no que se refere às redes de atenção básica. Movimento que, inclusive, redundou no desmonte de redes bem consolidadas e que davam conta dos princípios da APS, sendo substituídas pela ESF por conta do financiamento. Desse modo, pode-se afirmar que o verdadeiro bode esteve na sala durante os treze últimos anos sem que as diversas críticas fossem sequer consideradas e na minha visão a discussão posta pelo MS faz com que se comece a falar, institucionalmente, do bode.
O que importa, agora, entretanto, não é definitivamente quem é o dono do modelo, ou quem esteve certo ou errado durante esse tempo. O que importa, de verdade, é discutir que alternativas atendem à melhoria real da qualidade do acesso, do acolhimento, enfim, da produção do cuidado no Sistema Único de Saúde.
Por que não devemos entrar numa luta fraticida?
A despeito das críticas que possam haver ao modelo da ESF adotado praticamente como único pelo MS nos últimos treze anos, é inegável o papel que o mesmo teve na extensão de cobertura, melhoria do acesso e início das mudanças necessárias à reorientação do modelo tecnoassistencial do SUS. Creio que todos, inclusive os próprios atores hoje no MS, enaltecem o papel da ESF. Nesse sentido, possíveis mudanças no modelo de indução da APS precisa ser dialogado, aproveitando tanto a experiência das pessoas envolvidas na implantação da APS quanto de outros modelos de atenção básica existentes no Brasil e no mundo. Se a questão vira um Fla-flu, uma mera questão de saúde da família ou não saúde da família, não caminhamos em produzir um sistema de saúde integral. Em minha opinião, é preciso sim abrir a possibilidade para outros modelos, principalmente nos lugares onde é sobremaneira difícil atender aos requisitos colocados pelo atual modelo da ESF, mas simultaneamente criando as condições (carreira, salário, possibilidade de deslocamento progressivo, etc.) para consolidar a ESF nos lugares onde ela funciona hoje de maneira mais ou menos efetiva. Mas reforço: é preciso sair do fla-flu e analisar concretamente a possibilidade e necessidade de outros modelos onde não é possível nem efetivo manter a ESF da maneira atual. Ninguém desconhece, por exemplo, que a ESF funciona com profissionais – principalmente médicos – vinculados muito precariamente, trabalhando um ou dois dias por semana em dois ou mais ESFs, enquanto no papel consta como se tudo estivesse as mil maravilhas (vide reportagem d´O Globo). O papel não sabe, mas dona Maria, seu João, Regina, Débora, Virgílio e todos os milhares de usuários das unidades da ESF sabem que na maior parte dos dias não podem contar com assistência nessas unidades, pois não há profissionais disponíveis.
Concluindo: é possível combinar flexibilização do modelo e estímulo a atenção integral?
Talvez uma das questões mais importantes e que está no cerne de toda esta polêmica diz respeito a que tipo de formação os profissionais da APS devem ter. No caso dos médicos, devem ter especialização em saúde da família, ou é possível ter unidades com pediatras, ginecologistas-obstetras, clínicos, etc.? E no caso dos enfermeiros? E dos demais profissionais? Certamente esta não é uma questão fácil de ser equacionada, mas também quanto a ela é necessário parcimônia e tranquilidade nas discussões.
Pessoalmente, compartilho da tese de que é mais interessante ter profissionais que atendam numa perspectiva generalista, cuidando ao mesmo tempo de crianças, mulheres, homens, idosos, etc. Isso, me parece, tende a proporcionar maior integralidade no cuidado, mas definitivamente não é nenhuma garantia absoluta. É nesse sentido que afirmei anteriomente a importância de fortalecer a ESF onde ela tem se mostrado possível, fortalecendo a formação dos profissionais na perspectiva da saúde da família. Mas também não se pode negar a possibilidade de construir arranjos cuidadores quando se envolvem profissionais formados em outras perspectivas, com outros aportes. Por exemplo, não seria interessante – uma vez tendo ginecologistas-obstetras na atenção primária – que os casais possam ter a opção de ter seus partos realizados por um profissional previamente conhecido, que os acompanhasse durante todo pré-natal? Isso não seria um arranjo com potência para produzir cuidado? O que precisa ser colocado em discussão é como mudar a formação desses profissionais (no caso dos médicos, sobretudo as residências médicas) incluindo como cenários decisivos a atenção primária. Seria o caso de fazer algo semelhante ao PRO-Saúde em relação aos cursos de especialização?
Não sei. Antes de mais nada e sobretudo acredito que o importante é entrarmos neste debate sempre refenciados na necessidade de construir arranjos que incidam na produção de cuidado, procurando sim contemplar os jogos colocados nas relações de poder (afinal não vivemos no mundo de Platão), mas abrindo mão de convicções que se aproximam da noção de que haveria um só modelo que é melhor que os outros em essência e por isso deveria ser soberano.
Um abraço fraterno a todas e todos.
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