Vladimir Safatle
Não quero falar sobre gênero
'Acho que os gays são pervertidos e quero fazer meu filho achar isso. Por que o Estado me impediria?'
"Não quero que a escola trate de assuntos relacionados a comportamento sexual, religião ou política. Quero o Estado longe, tenho o direito de
ensinar meus valores a meus filhos. Chega de doutrinação."
Esse é um comentário que apareceu abaixo de uma notícia na internet
sobre a decisão "iluminista" e "corajosa" do prefeito de São Paulo de
não vetar o Plano Municipal de Educação, que exclui menção explícita à
importância de ensinar questões de gênero e respeito à diversidade
sexual.
Tais afirmações podem inicialmente parecer ter alguma sensatez. Afinal, o
que essa pessoa estaria a dizer é que o Estado não deveria impor
valores a seus filhos. Ao contrário, ele deveria respeitar as diferenças
de valores que existem nas famílias. Não seria possível aceitar
"doutrinações" monolíticas que visariam a impedir os indivíduos de
defender aquilo em que acreditam.
Sim, tais afirmações podem parecer sensatas, mas só para aqueles
acostumados ao caráter distorcido e farsesco do liberalismo brasileiro, o
mesmo liberalismo que outrora se esmerou em usar o discurso dos
"valores esclarecidos liberais" para justificar sociedade escravocrata e
golpe de Estado.
Poderíamos sintetizar o argumento acima da seguinte forma: "Não quero o
Estado dizendo para meu filho que ele deve respeitar homossexuais e
travestis e parar de vê-los, de uma vez por todas, como portadores de
alguma forma de doença ou perversão. Quero continuar a educar meus
filhos da maneira que achar melhor, mesmo que 'educar', nesse contexto,
signifique 'internalizar preconceitos'. Acho que homossexuais são
pervertidos e quero continuar a fazer meu filho acreditar nisso. Por que
o Estado me impediria?". Bem, talvez porque seja atribuição maior do
Estado proteger parcelas vulneráveis da sociedade de uma violência
arraigada e recorrente vinda de outros setores da população.
Estamos falando de um país, como o Brasil, que lidera rankings
internacionais de assassinato de homossexuais e travestis por motivações
homofóbicas e transfóbicas.
Uma das razões para isso é, certamente, que há muita gente que
compreende preconceito e violência como "liberdade de opinião", ou
respeito à diversidade e indiferença à diferença como "doutrinação".
No entanto, há de se lembrar que a democracia não respeita os "valores
da família" quando tais "valores" são, na verdade, máscaras para
perpetuar práticas de exclusão e desigualdade. Ela não os respeita
quando famílias são racistas, antissemitas, islamofóbicas e homofóbicas.
A democracia não é neutra do ponto de vista da enunciação de valores.
Ela tem um valor que toda e qualquer família deve entender. Ele se chama
"igualdade". O que uma criança e um adolescente aprendem quando uma
escola ensina gênero é a prática efetiva da igualdade.
Há ainda um ponto que explica muito da histeria de certos setores da
população brasileira a respeito de questões de gênero. O Brasil gosta de
ter uma imagem de si mesmo como um país tranquilo e permissivo, mesmo
enquanto pratica as piores violências contra grupos minoritários.
Essa imagem parte do pressuposto de que você pode agir de forma singular
desde que não se faça muito alarde, ou seja, desde que não quebre o
pacto da invisibilidade, pois é assim que o poder impõe suas normas, a
saber, decidindo o que pode ser visível, o que pode ser visto.
Todo poder é uma decisão sobre o que pode ser visto e o que deve ser
aceito apenas em silêncio. Nesse sentido, o que tais práticas escolares
fazem é quebrar o pacto de silêncio e invisibilidade que perpetua as
piores sujeições.
Mas é verdade que questões de gênero não precisam lidar apenas com o
estranhamento de alguns a respeito da extensão da igualdade como valor.
Há também algo a mais, que toca o cerne do edifício ideológico de nossas
sociedades, porque, a partir do momento em que se afirma que gêneros
não são meros decalques da diferença binária da anatomia dos sexos, que a
anatomia não é o destino, há algo que parece entrar em abalo profundo.
Ninguém está a dizer a proposição delirante de que a diferença sexual
não existiria. O que se está a dizer é algo ainda mais forte, a saber,
que a diferença sexual não tem nenhum sentido que lhe seja natural, que
dela não se deriva normatividade alguma. Isso significa que as nossas
formas de vida, a estrutura de nossas famílias, não estão assentadas na
natureza. Não, a natureza não é um álibi para nossas decisões culturais.
Com uma covardia que lhe é costumeira, foi isso o que o PT e seu prefeito acharam que não valia uma briga.
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