sábado, 22 de agosto de 2015

O crime perfeito

O crime perfeito — CartaCapital



O crime perfeito


por Vladimir Safatle



publicado
19/08/2015 03h57

A pauta do liberalismo brasileiro não será aplicada pelos liberais, mas por uma esquerda em autoeliminação


O Brasil não é para amadores, já dizia Tom Jobim. De fato, enquanto vários outros países
latino-americanos tiveram longos períodos de conflitos violentos no
interior de suas elites, com rupturas muitas vezes traumáticas, o Brasil
conseguiu apresentar continuidades impressionantes. Sua elite tem o dom
do acordo e da autopreservação. Ela sabe como criar situações nas quais
toda tentativa de entrar em confronto contra seus interesses sai
perdendo.
Mas há de se reconhecer que existem
momentos nos quais a inteligência animal de nossa elite supera toda
expectativa, demonstrando laivos de genialidade mefistofélica. Um desses
momentos é exatamente o presente. Se eu fosse afeito à teoria da
conspiração, diria que estaríamos vendo atualmente o crime perfeito.
No fim da eleição de 2014, o Brasil demonstrou-se radicalmente clivado.
Era óbvio que tal clivagem não passaria, pois o nível de
descontentamento e expectativa era muito alto para todos voltarem aos
negócios de sempre. Em uma situação como essa, a primeira coisa a fazer é
fortalecer a mobilização de seu próprio grupo. Você governa primeiro
para quem te elegeu, ou seja, levando em conta as expectativas de quem
te elegeu, pois são essas pessoas que te defenderão em contextos de
tensão.
Mas eis que algum grande estrategista
palaciano sugeriu uma manobra radical. O governo deveria esvaziar o
discurso da direita, ao realizar o que Lula fez várias vezes, a saber,
aplicar ações propostas pelo próprio adversário, colhendo nomes na seara
do adversário para construir seu ministério. Assim, Dilma daria um
sinal para os opositores e para a elite rentista do País. Algo como:
“Fiquem tranquilos, pois não haverá conflitos de interesses com o
governo”. A ala de esquerda
da população que votou no governo viria por gravidade. Afinal, não
haveria nenhuma outra opção para eles, gente que pode gritar, espernear,
mas no final vota no governo e ainda faz campanha mobilizada pelo medo
de a direita voltar.
Infelizmente, desta
vez, o truque não funcionou. Ele foi aplicado de maneira muito farsesca
para funcionar. Cansados de confiar em um governo que não temeu abraçar
a nata do liberalismo econômico nacional, a ala de esquerda da
população virou as costas e se desmobilizou. A ala conservadora sentiu o
campo aberto e colocou seu sistema de pressão na rua. Pela primeira vez
na história tal pressão não teve contrapressão. O desejo de impea
chment cresceu, alimentado pela tentativa desesperada do presidente da Câmara de escapar da Operação Lava Jato.
Mesmo com o governo nas cordas, ficou
claro, contudo, que a oposição não tinha unidade, que certamente
entraria em fagocitose se assumisse o poder. O estilo brutalizado de Cunha
era incapaz de aglutinar. Até que o golpe de mestre apareceu.
Aterrorizado pela possibilidade de perder o poder, o governo foi
procurado pelo presidente do Senado para um acordo em prol da
“governabilidade”, agora defendida abertamente pela Fiesp, pela Globo e
pelo sr. Trabuco, o verdadeiro chefe do ministro da Economia.
Na pauta, um conjunto de propostas para
explodir de alegria qualquer liberal defensor dos interesses da elite
rentista. O que seria visto, em situação normal, como proposições
inaceitáveis por colocar em questão a natureza pública de certos
serviços e direitos trabalhistas aparece agora como uma agenda positiva e
responsável para tirar o Brasil da crise política.
Assim, tudo o que a direita sonhou será aplicado pelo
governo dito esquerdista. É ele que pagará todo o preço, alcançando,
enfim, o grau zero de apoio popular. Mas como o espantalho Cunha
continuará amedrontando, tudo o que vier do agora esteio da
responsabilidade da República, Renan Calheiros, será visto como um mal menor.
Assim, o crime perfeito se completa. Toda a pauta mais
radical do liberalismo brasileiro será aplicada sem que os liberais
tenham de arcar com o peso de aplicar tal política. Ela será aplicada
não pelos liberais de plantão, mas por uma esquerda em vias de
autoeliminação. Há de se admirar a astúcia da elite brasileira na defesa
de seus interesses. Realmente, um trabalho de profissionais.

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