domingo, 15 de janeiro de 2017

Reorientação radical

editorial: Reorientação radical - 15/01/2017 - Opinião - Folha de S.Paulo



Reorientação radical












É vergonhoso que tenha sido necessário um massacre de quase cem detentos
nos primeiros dias de 2017 para que autoridades judiciais voltassem a
debater com seriedade e sentido de urgência o caráter medieval das
prisões brasileiras.





A ministra Cármen Lúcia pediu que os presidentes dos Tribunais de Justiça informem até terça-feira (17) o número de processos penais não julgados em cada comarca e cobrou esforço concentrado nas varas criminais e de execução penal nos próximos 90 dias.





Cabe à ministra, como presidente do Supremo Tribunal Federal e do
Conselho Nacional de Justiça, coordenar o planejamento do Judiciário —e
por isso Cármen Lúcia também insiste na realização de um censo
penitenciário.





São iniciativas concretas e bem-vindas, mas a inexistência de
estatísticas atualizadas revela o tamanho da indiferença do poder
público. Os dados mais recentes compilados pelo Ministério da Justiça
remetem a dezembro de 2014.





Segundo essas informações, havia 622 mil detentos onde cabiam 372 mil, e
o índice de presos provisórios (sem condenação definitiva) ficava em
torno de 40% do total, ou quase 250 mil pessoas.





Dedicar-se a resolver os casos pendentes é o mínimo que os magistrados
podem fazer para diminuir a injustiça dentro das prisões. Tal
compromisso, contudo, deveria ser permanente, e não uma resposta pontual
a uma crise midiática.





Basta lembrar que os mutirões do CNJ, impulsionados sobretudo na gestão
do ministro Gilmar Mendes, levaram à soltura de dezenas de milhares de
pessoas que não deveriam estar atrás das grades.





Não se imagine, porém, que o esforço de agora mudará o panorama. O
problema é estrutural, como atesta a existência de mais de 500 mil
mandados de prisão não cumpridos no país. A pressão ocasionada pelo
encarceramento em massa seria ainda maior se o aparato punitivo fosse
mais eficiente.





Além disso, é inadmissível que se continue ignorando o horror dentro das
casas de detenção. São frequentes os relatos de maus-tratos, para nada
dizer das condições abjetas em que vivem os presos.





Afirmar que tais ambientes putrefatos servem à ressocialização não passa
de ingenuidade ou cinismo. A situação só piora com a expansão das
facções criminosas que comandam as penitenciárias.





Aproveitando-se do descaso do Estado, essas quadrilhas arregimentamos
milhares de detentos que são lançados às masmorras. A um só tempo
engrossam fileiras e aniquilam o que pudesse haver de esperança no
aspecto correcional.





Sabe-se o que fazem com esse exército. Ampliam seu domínio dentro das
prisões e, fora delas, disputam o controle do tráfico de drogas, seu
negócio mais lucrativo e fonte principal de sustento.





Numa ironia macabra, é cada vez maior o número de indivíduos sem
antecedentes criminais nem laços aparentes com facções criminosas que
terminam atrás das grades por força da Lei de Drogas, como relata
reportagem desta Folha.





Diante desse ciclo vicioso, o país precisa tomar uma decisão. Se
insistir no encarceramento em massa e na guerra às drogas, despenderá
dezenas de bilhões de reais em políticas cujo fracasso é patente aqui e
mundo afora.





A alternativa pressupõe reorientação radical.





A prisão deveria ser reservada apenas a criminosos que empreguem
violência ou grave ameaça; esses indivíduos precisam ser apartados da
sociedade. Os demais, cuja liberdade não implica risco, podem cumprir
penas alternativas, desde que suficientemente rigorosas.





Isso tornaria mais difícil que facções criminosas transformassem
delinquentes de menor potencial ofensivo em soldados perigosos. Ademais,
seriam gastos menos recursos para construir prisões e aplicam-se
sanções que, segundo diversos estudos, convivem com índices bem mais
baixos de reincidência.





Quanto às drogas, trata-se não se só de descriminalizar seu uso
(eliminar ou abrandar punições ao consumidor) mas também de legalizá-las
(autorizar também a produção e a venda).





Não seria um processo simples. A liberação deveria ocorrer de forma
gradual e passar por consulta popular; a iniciativa precisaria receber
apoio multilateral.





Justifica-se porque os trilhões de dólares que o mundo já gastou na
repressão não diminuíram a demanda nem a oferta. A proibição, aliás,
aproveita aos traficantes, pois encarece a droga; por outro lado, a
produção e a venda, se controladas e taxadas, gerariam verbas para
prevenção e tratamento.





Esta Folha há muito tempo defende essa reorientação —e hoje ela
se mostra especialmente oportuna para enfrentar a crise penitenciária e
sufocar as facções criminosas que se alimentam do caos.



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