A coluna do Merval
Lenio Luiz Streck
Não é fácil fazer crítica jurídica. Advirto desde logo: quem achar que a crítica filosófica à dogmática jurídica é uma perda de tempo e que “o direito-não-tem-nada-a-ver-com-a-filosofia”, não continue a leitura. Peço que o leitor suspenda seus pré-juízos. Na verdade, iria escrever esta Coluna apenas depois do julgamento do mensalão. Mas, lendo a coluna de Merval Pereira, no jornal O Globo do dia 6 de outubro de 2012 (clique aqui para ler), senti-me na obrigação de fazer algumas considerações sobre o andar da carruagem. Pois o imortal Merval (para quem não sabe, ele é da Academia Brasileira de Letras) fez uma espécie de “crítica moral-fundamental” — estou sendo irônico — ao estado d’arte do julgamento. Ou seja, parem as máquinas, patuleus de terrae brasilis, que Merval falará.
Não tenho procuração para defender o ministro Lewandowski. Nem posso... Não sou advogado. Não tenho interesse na causa (assim como o Merval). Aliás, tenho escrito duros artigos tratando do mensalão [por exemplo, O Supremo, o contramajoritarismo e o “Pomo de ouro”e o O Direito AM-DM (antes e depois do mensalão)]. Minha tese, que não vale (e que não deve valer) só para o mensalão, é a seguinte: juízes (sempre) devem decidir por princípios e não por políticas (falo no sentido da hermenêutica que eu professo e de Dworkin). Isto é: sou um hermeneuta que faz imbricação das teses da hermenêutica filosófica com a teoria integracionista de Ronald Dworkin, o que significa dizer que todas as decisões devem ter um DNA.
Livre convencimento?
Qual é o cerne daquilo que defendo? Simples. Sou um dos poucos juristas de terrae brasilis que sustentam — com veemência — que juízes não possuem poder discricionário. Também, por consequência, sustento que não possuem “livre convencimento” e tampouco podem fazer “livre apreciação da prova”. Aliás, um importante professor de Processo Penal, querido amigo, advertiu-me: “Não tem aparecido bem você atacar o livre convencimento pelo nome, coisa que se superou há muito tempo, em função da evolução teórica, ou seja, para além da lei ou da íntima convicção.” Perguntei-lhe: Superado? Onde? No Brasil? Ah, agora tem o nome de “livre convencimento motivado” e isso teria respaldo no artigo 93, IX, da CF... Mas — reforço a pergunta — por que os livros de Processo Penal continuam falando disso? E por que as expressões “livre convencimento” ou “livre apreciação” aparecem tanto nos votos dos tribunais e nos livros doutrinários? Não vou desenvolver isso aqui, em face do espaço e de oportunidade (já escrevi mais de duas mil páginas sobre isso. Infelizmente, é algo que não dá pra ser simplificado ou resumido).
Minhas teses — de que juízes não devem decidir por políticas e, sim, por princípios, aliado ao meu antidiscricionarismo — têm acarretado interessantes debates: de um lado, alguns me acusam de ser um positivista exegético-pandectista, na medida em que minha tese “proibiria os juízes de interpretar” (meu estimado amigo ex-ministro Eros Grau, por exemplo, é um dos que me acusa disso — aqui remeto os leitores à coluna E a professora disse: “Você é um positivista”). Já, por outro lado, há os que “acham” que o que escrevo proporciona uma irracionalidade na interpretação, pelo qual os juízes interpreta(ria)m de qualquer jeito (Dimitri Dimoulis escreveu que eu “defendo o subjetivismo”). Vejam: alguns acham que sou o Angelo I do Medida por Medida, de Shakespeare; outros têm certeza que sou o Angelo II (assista aqui). Não sei qual das críticas é a mais injusta e/ou equivocada. Difícil de dizer.
De todo modo, quero dizer que não faço Filosofia do Direito e, sim, Filosofia no Direito, especialmente no Direito Constitucional e na jurisdição constitucional, circunstância que é reconhecida e atestada por filósofos do porte de Ernildo Stein. Para ser mais simples: juízes e tribunais não devem nem podem julgar segundo a consciência ou segundo seus sentimentos. Isso não é democrático nem republicano, pelo simples fato de que o que se passa na “consciência” do juiz pode não coincidir com a estrutura legal-constitucional do país... (aliás, nesse sentido, bastaria chamar à colação um autor como Jürgen Habermas, inimigo figadal do discricionarismo; por que será que Habermas é contra a ponderação?).
Exemplificando: quando o aborto é judicializado, não estamos perguntando ao juiz “qual a sua opinião pessoal”. Quando perguntamos sobre o aborto, perguntamos acerca de como o Direito[1] proporciona uma resposta sobre o case. Também nunca perguntamos em abstrato. Pela hermenêutica que sustento, não há respostas antes das perguntas. Para fazer uma blague: não existe um conceito de picanha em abstrato; também não existe uma corrupção em abstrato; o Direito não trabalha com “conceitos sem coisas”. Por isso, o Direito não cabe na lei; por isso, o Direito é maior que uma súmula. Não está errado dizer que a corrupção é um dos piores crimes; mas pode não ser verdadeiro que alguém — em um caso concreto — tenha comprovado seu ato de corrupção. Pode até ter cometido, mas, como não possuímos o dom de encontrar a essência das coisas (pelo menos acho que já ultrapassamos o realismo filosófico, pois não?) e temos que nos contentar com o que a intersubjetividade nos proporciona. Anselmo, da Novela de Um Curioso Impertinente, de Cervantes, é que queria encontrar uma verdade essencialista... Queria encontrar uma espécie de “traição fundamental”.
O ordinário se presume?
O acadêmico e jornalista Merval Pereira acusa o ministro Lewandowski de estar prestando um desserviço (sic) à nação e ao STF. Ao mesmo tempo — e dá para ver que ele (Merval) não é do ramo — enaltece frases ditas por outros julgadores que corresponderiam ao seu anseio (dele, Merval, e da maioria do povo). Assim, por exemplo, Merval gosta muito da tese de que a admissão das provas pode “sofrer elasticidade”... (desde que ele não seja o acusado, é claro!). Gostou também — mas não só ele — da citação atribuída à Malatesta, dita em 1894, de que o ordinário se presume; só o extraordinário se prova.
Aqui, uma pequena parada: confesso que não entendi essa enunciação constante em um dos votos. Se no “ordinário” alguém é um mau motorista (presumivelmente, é claro), no dia em que ele se envolve em um novo acidente não é necessário provar a sua culpa? Caberia a esse motorista provar a sua inocência, que, no caso, seria “um fato extraordinário”? É isso que Malatesta queria dizer? Posso presumir que fulano, por ter comprado uma arma, está preparando um crime? Posso presumir que, pelo fato de que um juiz ou um promotor jantar com determinadas pessoas regularmente, isso seria o “ordinário”, que suas decisões serão a favor daquelas pessoas? Alguém que costume ir a eventos sociais igualmente frequentados por empresários que não recolhem os devidos tributos deve ser presumido sonegador? Ou, para utilizar um acórdão do Tribunal Constitucional Espanhol — posso presumir que o fato de alguien cargar ganzúas y otros instrumentos propios para robo é suficiente para condená-lo pelo tipo penal correspondente, que culmina em pena de 1 a 5 anos àquele que for pego carregando ganzúas? Pois o TC Espanhol aplicou, in casu, uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung — decisão redutiva, mostrando que não há responsabilidade objetiva em Direito Penal, o qual não se contenta com presunções (o ordinário, no caso, não se presume), problemática que analiso amiúde em Verdade e Consenso, 4. ed., p. 311. O TC Espanhol foi bem anti-malatesta, pois não?
O que (bem ou mal)atesta Malatesta?
Na verdade, não entendo essa reverência a (esse confuso) livro “a Lógica das Provas”, escrito por Nicola Dei Malatesta no final do século XIX. Vejamos: ao mesmo tempo em que Malatesta diz que “o ordinário se presume; só o extraordinário se prova”, ele mesmo diz, mais adiante, que “o ordinário no homem é a inocência, por isso ela se presume e é ao acusador que cabe a obrigação no juízo penal” (p. 143). E, na p. 144, arremata: “A experiência mostra-nos que são, felizmente, em número muito maior os homens que não cometem crimes, do que aqueles que os cometem; a experiência afirma-nos por isso que o homem ordinariamente não comete ações criminosas, isto é, que o homem ordinariamente é inocente: e como o ordinário se presume, a inocência por isso presume-se”.
E o que dizer dessa outra passagem de Malatesta: “Se se pudesse condenar em consequência de juízos simplesmente prováveis, a justiça punitiva, já o dissemos, perturbaria mais a consciência social, que o próprio delito: os cidadãos pacíficos achar-se-iam expostos, não só às agressões dos delinquentes particulares, como às mais temíveis, por isso que mais irresistíveis, da denominada justiça social. É sempre a certeza, e não pode ser senão a certeza como estado do espírito, que deve servir de base à condenação” (Lógica das Provas, p.63). E, então?
Na verdade, Malatesta — sim, dei-me a pachorra de lê-lo — até disse o que o voto da ministra do STF disse que ele disse. Mas ele — o Nicola Dei Malatesta — também disse, lá no longínquo século retrasado, o que acabei de citar acima. O problema é o contexto. Dizer que a água ferve a 100º pode estar certo ou errado; depende do contexto em que é dita. Noutros termos: Malatesta é uma espécie de “ponderação”,[2] que serve para qualquer lado.
Sigo. Merval também gostou muito de enunciados como o de que “os juízes se valem da regra da experiência”. Só que isso é uma máxima do processo civil (art. 335 que, mesmo sendo do CPC, é incompatível com o contemporâneo Estado Democrático de Direito).
O quero dizer com tudo isso? Quero apenas dizer que julgamentos não podem ser analisados como se fosse um Fla-Flu ou um Gre-Nal. Uma turma a favor e outra contra. Só porque o voto do ministro Lewandowski não foi a favor do que desejava Merval não quer dizer que ele esteja “prestando um desserviço”. Não seria tão duro assim. Até porque “aqui se faz, aqui se paga”. Comportamo-nos como torcedores: enquanto o árbitro apita a nosso favor, é o melhor do mundo; quando dá um pênalti contra o nosso time, queremos esfolá-lo. Minha tese é a de que o árbitro não deve aparecer. Ele deve “apitar” sempre de acordo com as regras, doa a quem doer. Caso contrário, o “jogo” deixa de ser o já conhecido “jogo” e passa a ser o jogo criado pelo árbitro, como já nos alertava Hart. Muitos dos julgadores que hoje são apontados como “vilões”, ontem eram enaltecidos pelos jornalistas e jornaleiros; e muitos que hoje são “heróis”, ontem eram criticados por outras decisões. Rememoro, a título de exemplo que, à época do julgamento da constitucionalidade da festejada Lei da Ficha Limpa, estampavam-se diversas capas dos maiores periódicos nacionais, sempre associando a notícia a adjetivos de ética e moralidade... Pois bem. O presidente do TSE, devidamente enaltecido, era justamente o ministro Lewandowski...
Qual é o problema? Já disse, em outro artigo, que não se pode culpar o Supremo Tribunal Federal. Ele está apenas seguindo uma linha de julgamentos que vinha fazendo. Apenas agora fez aquilo que nos meus tempos de faculdade se dizia: uma simples lei derruba uma biblioteca. Pois o Supremo Tribunal, com o julgamento do mensalão, derruba várias bibliotecas. As “várias bibliotecas” são representadas pela dogmática jurídica. E ela — a dogmática jurídica — é um queijo suíço “paradigmático”, porque serve para dar qualquer resposta em Direito.
O que sustenta (todos) os votos do STF? Nada mais, nada menos do que aquilo que a dogmática jurídica vem pregando e ensinando historicamente: a tese de que os juízes possuem “livre convencimento” e/ou que podem fazer “livre apreciação a prova”, e que sentença vem de sentire etc. No fundo, a dogmática (em geral) é refém do normativismo kelseniano, ou seja, grosso modo, juiz produz norma jurídica; estando ela mais ou menos na moldura, vale (não esqueçamos que, em Kelsen, está o ovo da serpente do decisionismo). O papel da operacionalidade (doutrina e jurisprudência) é apenas o de “expungir” as bizarrices. Ora, se o Direito serve apenas para isso e se qualquer decisão vale, então não temos muito a fazer. Se o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é, temos que dar razão ao ex-presidente do STJ, ministro Humberto Gomes de Barros, recentemente falecido, que foi enfático: “Não me importa o que dizem os doutrinadores...”. Talvez ele estivesse certo... Bingo.
No campo do processo penal, não conseguimos sequer fazer valer um artigo do CPP que diz que a prova deverá ser feita pelas partes e que “o juiz só pode fazer perguntas complementares”. Pois é. Graças a Guilherme Nucci, Luiz Flávio Gomes (mas não só eles) e a recepção de suas teses pelo STJ (e por uma das Turmas do STF — HC 103.525), o artigo 212 virou letra morta. Surpresos? Ora, o STF apenas faz o que diz a doutrina, embora seja a doutrina que esteja sempre se amoldando a ele, STF.
Aqui se faz, aqui se paga
Mas há algo que, retoricamente, não foi o STF que inventou. Sabem o que foi? Aquilo que está nos principais livros de processo penal do Brasil, dos mais antigos e tradicionais aos mais recentes escritos por jovens processualistas... O que é mesmo? Ah, lembrei: a tese de que os juízes possuem livre convencimento (claro, contemporaneamente, dá-se uma adoçada na tese, dizendo que o “livre convencimento é motivado”...[3] — ah bom, se é motivado, tudo bem! Como se isso se sustentasse no plano filosófico). Se não é o livre convencimento, há um mix entre livre convencimento e livre apreciação da prova (há inúmeros julgamentos com a incidência dessa fenomenologia). Várias vezes esses dois mantras — livre convencimento e livre apreciação da prova – aparece(ra)m no julgamento do mensalão. Entretanto, não culpem o STF de nada. Ele está só dando azo e vazão ao que a doutrina sempre sustentou. Só que agora parte dela parece não ter gostado.
É. Pois é. Aqui se faz, aqui se paga. Quando o ministro Lewandowski diz que não concorda com outros ministros — sem que precisemos nos imiscuir no mérito acerca do acerto ou erro de seus votos — setores do jornalismo e do Direito querem crucificá-lo. Ora, não tem ele também livre convencimento? Segundo a dogmática jurídica, não tem ele também o poder de “livre apreciação da prova”? “Livre apreciação da prova” é só para um lado? Viram? Entrei no jogo. Repito: aqui se faz... aqui... se paga! Vejam: nem é necessário entrar no mérito de qualquer dos votos proferidos. Basta fazer uma anamnese do discurso proferido pelo STF, pela acusação e pelos defensores. Aliás, venho guardando a necessária equidistância do triângulo processual. Da Teoria do Domínio do Fato ao uso de Malatesta, tenho também feito críticas ao modo como a defesa se comportou no julgamento do mensalão, mormente porque muitos dos advogados confiaram em uma espécie de “hermenêutica pequeno-estamental”, ou seja, uma hermenêutica “que-sempre-vinha-dando-certo-mas-que-no-mensalão...”.
Quem sabe, então, repensemos o processo (penal) brasileiro? A dogmática tradicional está indo à bancarrota. Se é que já não foi. Basta ver o estado d’arte do ensino jurídico... Quem sabe trabalhemos para que a doutrina volte a doutrinar e não mais fique caudatária de decisões tribunalícias? Aliás, embora as palavras não reflitam a essência das coisas (afinal, a palavra borboleta não voa, a palavra bomba não explode e o tipo penal “estupro” não tem a essência de “estuprez”), “doutrina” quer dizer que “deve doutrinar” e não ficar repetindo os que os tribunais dizem. Sou um chato por ficar repetindo isso. Mas, como já disse, trata-se de uma “chatice epistêmica”. Quando me pré-ocupo com as decisões dos tribunais, também me preocupo com as decisões do dia seguinte.
Isto é: Como se comportará o STF nos próximos julgamentos? E os juízes de primeiro grau? Eles poderão (ou deverão) utilizar essa posição do STF? A doutrina continuará a dizer que, no processo penal, os juízes tem livre convencimento ou livre apreciação da prova?[4] Os juízes de primeiro grau adotarão a tese de que “o ordinário se presume; só o extraordinário se prova”? Preocupo-me porque, em um país em que o caso concreto não passa de um álibi teórico, onde não se respeita a cadeia decisional e se encaixa o caso a fórceps em teses previamente escolhidas, o que mais se utilizará do acórdão da AP 470 serão frases (ou verbetes) descontextualizadas. E nisso mora o perigo do bullying hermenêutico que poderá ocorrer a partir desse uso fora de contexto.
Dois exemplos bem recentes sobre “O que é isto — o livre convencimento?”. Vejamos. Um juiz decreta a preventiva em caso de furto e outro determina a soltura de dois assaltantes que praticaram tentativa de latrocínio.... Pois bem. Inquiridos acerca das decisões, respondem: a decisão foi fruto do livre convencimento ou liberdade de consciência na apreciação do caso concreto. Ou seja, a doutrina — pelo menos aquela que sempre trilhou por um caminho “protagonista-solipsista” — não pode se queixar. De nada.
Que fique claro: o juiz, em um regime democrático, não é livre. Há, antes dele, o Direito.
Minha crença
Os alunos me perguntam: O que é decidir por princípio? Respondo invocando o grande Victor Hugo e seu Os Últimos Dias de um Condenado. E explico: o livro trata de um condenado à morte, sem que Victor Hugo revele o crime e as circunstâncias do acusado ser culpado ou inocente. Ele, Victor Hugo, simplesmente, por princípio, é contra a pena de morte. Por princípio. Não importa o crime. Ele era contra. E sua luta foi importante para acabar com a guilhotina na França e com a pena de morte em Portugal. Isso é “princípio”. No princípio, era o princípio. Simples, pois. No exemplo, devemos ser contra a pena de morte por princípio e não porque alguém cometeu um crime hediondo. Compreende(ra)m? Essa é a minha mensagem. And I rest my case. Mais claro que isso não posso ser!
Numa palavra final, alio-me a Santo Anselmo: fides quaerens intellectum. A minha crença no Direito precisa de entendimento (aqui parafraseio Rubem Alves e seu Pimentas). Preciso entender os mistérios que cercam a tese do “livre convencimento”... Preciso entender esse mistério: Por que a dogmática jurídica aposta em algo — o livre convencimento — que pode ser utilizado (veja-se o case mensalão), a qualquer momento, contra ela mesma? Não fosse por convicção filosófica, ela deveria ser contra para a sua própria sobrevivência... Mistério. Grande mistério.
Se eu tenho alguma esperança? Respondo com uma frase recolhida por aí, de Mia Couto: “Vantagem de pobre é saber esperar. Esperar sem dor. Porque é espera sem esperança...”
[1]Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador.
[2] Alguém diria: mas Nicola Dei Malatesta é um homem do seu tempo. Pois bem. É só nesse sentido que Malatesta pode ser reverenciado. Depois dele, o mundo mudou. A filosofia mudou. O direito mudou. E, convenhamos, não podemos sequestrar o tempo. Como bem disse Gadamer, a distância temporal é um aliado, jamais um inimigo. Por exemplo, não se pode defender a inferioridade das mulheres com base em um texto de Platão ou a escravidão com base em um texto de Aristóteles... E nem colocar defeitos na obra de Monteiro Lobato. Eles escreveram sobre uma série de coisas, mas... naquela época.
[3] Diz-se que, superada a intimação convicção, chega-se ao “livre convencimento motivado” (sic), onde “o magistrado tem liberdade na seleção e valoração dos elementos de prova”... É preciso dizer mais?
[4] Um jurista importante que faz a perfeita imbricação entre a academia e as práticas judiciárias, como o Professor Aury Lopes Júnior – e espero estar interpretando bem o que ele escreve e diz - já não aceita a tese do livre convencimento (motivado ou não). Sabe bem ele que o art. 93, IX, da CF, não resolve o problema da fundamentação. Como bem diz Aury, “tudo isso exige uma revisão da 'ambição de verdade' no processo penal, pois sem dúvida o peso da 'verdade' nos ancora no modelo inquisitório e serve de base para a manutenção do 'livre' convencimento, colocando o juiz como alguém apto a 'revelar a verdade'”. Portanto, o “furo” é mais embaixo. Temos discutido essa problemática a fundo (com mais alguns juristas, como Francisco Motta, Adalberto Hommerding, Georges Abboud, Rafael Oliveira, André Karam Trindade, Jânia Saldanha, Fausto Morais, Mauricio Ramires, Marcelo Cattoni, Dierle Nunes e tantos outros). Estamos de acordo com o fato de que, na democracia, há um algo anterior do que simplesmente motivar, conforme explicito em Verdade e Consenso e O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência. Estamos de acordo de que não podemos concordar com a máxima de que “se sou livre para escolher, motivo de qualquer jeito. Se quero condenar, condeno... e depois busco o fundamento. E vice e versa”. Não. Não pode ser assim. Uma sentença não é um ato teleológico. O ato de decidir é deontológico.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 11 de outubro de 2012
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