Jean Baudrillard e o mensalão em tela total
Em
menos de 50 anos, fomos submetidos a duas revoluções: a primeira, bem
perceptível, foi a invenção do mundo virtual, incialmente pela
televisão, agora pela realidade dos computadores; a segunda, em pleno
curso, é a incrível (re)criação da própria realidade pelo mundo virtual.
Os media, num processo já agora irreversível, implodiram de vez qualquer sentido que antes retirávamos da realidade. No dizer de uma das mais autorizadas vozes sobre a simulação e os simulacros em que se converteu a vida contemporânea, submetida à tela total do universo virtual: “Estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido. A informação é directamente destruidora ou neutralizadora do sentido e do significado. A perda do sentido está diretamente ligada à acção dissolvente, dissuasiva, da informação dos media e dos mass media”[1].
De fato, esse é um dos grandes paradoxos da contemporaneidade: quanto mais informação, menos sentido; quanto mais informação, menos informados estamos. “Vídeo, tela interativa, multimídia, Internet, realidade virtual: a interatividade nos ameaça em toda parte[2]”.
Nesse quadro, só podemos estar bastante apreensivos com o verdadeiro processo de espetacularização dos tribunais brasileiros. Aviso logo que não tenho qualquer esperança de mudança no comportamento da mídia. De outro lado, como fato político consumado, não tenho também qualquer expectativa numa solução de continuidade na superexposição que vivem agora ministros e o próprio STF. Mas como me permito o lamento, devo justificá-lo. Além disso, se o processo é irreversível, poderia, contudo, ser melhorado. Vejamos.
Seria bom, em primeiro lugar, que à ampla publicidade a que vem sendo submetido o Supremo Tribunal Federal, como em casos como o do chamado Mensalão, se seguisse alguma responsabilidade social por parte dos órgãos de comunicação de massa. Bastaria, para tanto, que jornalistas e demais comentaristas especializados — a maior parte deles, sem formação jurídica — esclarecessem ao público que é essencial, imanente mesmo, a qualquer espécie de decisão, notadamente a decisão judicial, a possibilidade de mais de uma escolha. Decidir é tautologicamente escolher[3]. Onde só há uma possibilidade de decisão ou de escolha, em termos lógicos, na verdade, não há decisão a ser tomada, mas inexorável posição e conduta que se impõem a quem decide.
Aliás, como os jornalistas e órgãos de imprensa não aceitam que o Supremo possa, nesse e em outros casos, ter mais de uma escolha — por exemplo, absolver/condenar —, isso explica perfeitamente a sua impaciência com o curso do processo. Por que demorar se todos já sabem o que deve ser feito?
Entretanto, é curial que os julgamentos levados a cabo numa democracia diferenciem-se daqueles próprios dos julgamentos prosseguidos na inquisição, em ditaduras ou em totalitarismos, precisamente, porque nessas aberrações históricas os indivíduos, por sua condição de classe ou de poder, já entram na corte — e no processo — em uma exclusiva posição: ou já condenados, ou já absolvidos.
Na democracia, a condição de culpado ou inocente do acusado só se permite alcançar ao final de um devido, repito, ao final de um devido processo legal.
Para ficar num exemplo absolutamente extremo dessa abominável pretensão de condenar antes de se concluir o processo, no Malleus Maleficarum — conhecido como Martelo das Feiticeiras —, principal documento da igreja católica sobre procedimentos em inquéritos e julgamentos de bruxas e feiticeiras, livro compilado e escrito por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, com base na bula Summis desiderantes do Papa Inocêncio VIII, ali, como de regra não se admitia a possibilidade de inocência das mulheres acusadas de feitiçaria, os inquisidores advertiam que naqueles procedimentos em que, mesmo sob tortura, a acusada negasse a culpa, aí mesmo é que se deveria condená-la, pois, justificavam, só alguém que de fato tenha firmado pacto com o demônio teria força para negar sua culpa debaixo de tortura. Numa democracia, é um contrassenso, pois, que alguém entre num processo já condenado.
Por outro lado, aqueles que defendem a ampla e irrestrita publicidade — e em tempo real — das sessões do Supremo confundem publicidade com superexposição. Confundem a reflexão, que exige tempo e é essencial quando cuidamos de julgar a vida das pessoas, com transmissão e espetáculos em tempo real, que, por sua própria natureza, prejudica ou mesmo impede a reflexão racional e amadurecida.
Decisões judiciais devem revelar racionalidade e adequação ao direito. Por isso carecem de tempo e exigem ser processadas: isso as legitimam[4], e não a sua eventual conformação aos anseios de justiçamento e sangue de interesses massificados. Serenidade não se compatibiliza com campeonatos de popularidade e a ansiedade própria do horário nobre da televisão.
Além disso, julgamento justo exige algum distanciamento de quem decide. Tudo isso é impossível ou, no mínimo, improvável em julgamentos sob o influxo do encurtamento do tempo real e sob a influência de interesses midiáticos.
Processos judiciais, sobretudo os de apelo midiático, exigem a serenidade de algum tempo de reflexão, além de distância e imparcialidade de quem decide em relação aos fatos e a seus supostos autores — no direito, quem é testemunha ou vítima, obviamente, não pode julgar. A mídia exige, ao contrário, o tempo real da transmissão “ao vivo” e a proximidade máxima de quem opina — mas, se todos se sentirem vítimas, inclusive os jornalistas, do chamado mensalão e de outros supostos crimes de apelo público, como pretendem ser seus juízes? Ainda uma vez Baudrillard: “Pela abolição da distância, do patos da distância, tudo se torna irrefutável. (...) A excessiva proximidade do acontecimento e de sua difusão em tempo real cria a indemonstrabilidade, a virtualidade do acontecimento que lhe retira a dimensão histórica e o subtrai à memória. Por toda parte onde opera essa promiscuidade, essa colisão de polos, há massificação[5]”.
Todo jurista sério sabe perfeitamente que não se deve opinar sobre casos submetidos ao Judiciário, quando não se tem amplo acesso aos autos do processo. Além disso, nenhum jurista que mereça esse nome se diria habilitado a julgamento de pessoas ou fatos dos quais se sentisse vítima.
No caso concreto, o que se tem visto é o julgamento midiático de quem, abertamente, se considera vítima — afirma-se, como se sabe, que todos são vítimas do mensalão — e tem certeza sobre a extensão da participação de cada um dos réus. Não aceita qualquer resposta do Supremo que não seja o de condenação. Alguns, é verdade, ainda que em menor número, têm o comportamento oposto: por compartilharem a posição política dos acusados, não admitem qualquer resultado no julgamento que não seja o de absolvição. Ambos têm em comum não conhecerem os autos e não terem distanciamento de espírito para emitirem uma opinião racional e com imparcialidade. A ambos a mesma resposta se impõe: vamos aguardar com serenidade o pronunciamento final do Supremo, que poderá ser tanto de absolvição quanto de condenação, em maior ou menos extensão, mas, pressupõe-se, será a mais justa possível.
Cotidianamente, nós, juízes, advogados e promotores, nos confrontamos com casos bem mais simples do que o tal mensalão, em que, por exemplo, assessores nossos, depois de examinar os autos, chegam a conclusão completamente oposta ou, no mínimo, diversa, daquela alcançada por outros assessores ou daquela a que nós próprios chegamos. O que dizer, então, da Ação Penal Originária 470, o chamado mensalão, cujo processo, segundo o que se noticia, conforma mais de 50 mil páginas em seus autos? Quem, com seriedade e honestidade de propósitos, não sendo juiz do STF, advogado ou membro do Ministério Público que funcionaram no caso, pode pretender estar habilitado a expressar certezas como, cotidianamente, os órgãos de mídia transmitem ao público?
Todas as vezes que jornalistas me procuram para opinar sobre casos nos os quais não funcionei como magistrado, minha resposta — como fazia à época em que era procurador da República — é simples e única: não conheço os autos. Aliás, as Leis Orgânicas de magistrados, promotores e advogados, limitam a sua liberdade de opinar sobre casos nos quais não estejam funcionando. Nada obstante, o que se vê, é uma plêiade de operadores do Direito expedindo certezas e opiniões a granel sobre um processo que, de saída, dizem não conhecer. E opiniões não apenas sobre as formalidades, mas também sobre o seu próprio conteúdo.
A eventual restrição a uma superexposição do Supremo nem de longe constrangeria o princípio da publicidade que deve governar os processos judiciais em uma democracia. O modelo de televisionamento ao vivo é uma opção certamente legítima do legislador brasileiro e do próprio Supremo. Mas, não se pode omitir, é uma exceção nas democracias ocidentais. Alemanha e Estados Unidos, por exemplo, passam muito bem sem essa espetacularização de suas mais altas cortes, como, aliás, chamou a atenção o grande magistrado brasileiro, irrepreensível em toda a sua vida de dedicação à Justiça brasileira, Dr. Vladimir Passos de Freitas.
Em outras palavras, não se exige, para resguardar o princípio da publicidade, a superexposição a que vemos submetidos os juízes de nossa mais alta corte. Com efeito, no âmbito do devido processo legal, a publicidade existe, sobretudo, para servir a um julgamento justo, e não o contrário. Tanto é assim, que o magistrado poderá — na verdade, deverá — restringir a publicidade do processo sempre que perceber que, de alguma forma, a publicidade se mostre prejudicial à verdadeira finalidade a que se presta a instituição do Judiciário numa democracia, que é precisamente a concretização do devido processo legal, ou, em outras palavras, a concretização de um processo o mais formal e substancialmente justo possível.
O justice Scalia, em depoimento no Senado norte-americano, como já relatei aqui na ConJur, justificando por que aquela alta corte, celebrada em todo o mundo civilizado, permanece infensa à ideia de transmissão em tempo real por câmeras de televisão, afirmava que, no geral, dez pessoas tomam conhecimento integral do caso, mas, com câmeras no Tribunal, mil pessoas o comentariam sem saber do que falam e o resto da população formaria sua opinião a partir desse fosso de informação.
No caso brasileiro, a própria Constituição contém limitação constitucional expressa à publicidade dos julgamentos, “podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (art. 93, IX, CF).
O mestre dos mestres em Direito processual, Giuseppe Chiovenda, ao conceituar a publicidade das atividades processuais, já insistia no dado absolutamente simples de que publicidade, em processo, “se pode entender de dois modos diferentes: ou como admissão dos terceiros (públicos) a assistir às atividades processuais; ou como necessidade entre as partes de que toda atividade processual tenha a presença de ambas[6].” Conclui o grande processualista que a publicidade para o público é mais um interesse da política do que interesse do próprio processo. Esses dois valores, obviamente, às vezes podem entrar em colisão. Por isso, “quando pela natureza da causa, a publicidade puder oferecer perigo à boa ordem ou aos bons costumes, e nos demais casos estabelecidos em lei, a autoridade judicial, a requerimento do Ministério Público, ou de ofício, determina que o debate se realize a portas fechadas[7]”.
O mais incrível é que, mesmo com o amplo acesso ao julgamento, a mídia não se conforma aos limites legítimos do seu código de comunicação (informar/não informar), pretendendo antes substituir-se ao próprio Supremo Tribunal, na sua competência constitucional de dizer o direito, pois passou abertamente a confrontar os próprios ministros, ao dizer ao público com ares de correção e perícia técnica o que é lícito ou ilícito nas condutas daqueles que estão sendo submetidos a julgamento naquela Suprema Corte.
Mais do que isso, alguns órgãos da imprensa e seus profissionais, não se limitando a “julgar” o caso, passaram a julgar os próprios juízes e ministros, não aceitando qualquer outra resposta ao caso que não seja aquela por eles próprios — órgãos de imprensa — considerada adequada, além de invadir outro sistema social — a ética — para dizer o que, no comportamento de cada ministro do Supremo, é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo (gerechtfertigt/ungerechtfertigt). Verdadeiros professores de Deus.
Jornalistas, quando atuam como jornalistas, têm como propósito precípuo informar. Se querem atuar como moralistas — e numa democracia têm esse direito —, têm, contudo, que advertir o público de que naquele momento não estão atuando como jornalistas, mas, sim, como qualquer outro cidadão ou moralista — na maior parte das vezes, tão desinformado quanto.
Numa democracia, as diferenciações funcionais são essenciais ao esclarecimento e à legitimação dos lugares e dos atores sociais. Por exemplo, um juiz não pode, no seu lar, pretender “decidir” através de sentenças com força vinculante, da mesma forma que não pode, no tribunal, pretender discutir ou negociar suas sentenças como se fosse como pai, marido ou irmão das partes. No caso da imprensa, as pessoas têm, pois, o direito de saber se estão recebendo informações do jornalista ou opiniões do opositor do regime ou do amigo do entrevistado.
Contudo, no mundo contemporâneo, não é isso o que ocorre. Pelo contrário, no mundo em que o virtual se torna real e o real se torna virtual, “por tudo, mistura-se o que era separado; por tudo, a distância é abolida: entre os sexos, entre os polos opostos, entre o palco e a plateia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e o seu duplo. Essa confusão dos termos e essa colisão dos polos fazem com que em mais nenhum lugar haja a possibilidade do juízo de valor: nem em arte, nem em moral, nem em política[8].”,
No mundo em que vivemos, as informações transmitidas pelos meios de comunicação de massa já não se limitam a criar uma base para a comunicação entre as pessoas, elas se transformaram na própria realidade. Nessa realidade de informações instantâneas, de publicidade e espetáculo, “o que estamos a viver é absorção de todos os modos de expressão virtuais no da publicidade. Todas as formas culturais originais, todas as linguagens determinadas absorvem-se neste porque não tem profundidade, é instantânea e instantaneamente esquecida. Triunfo da forma superficial. (...) Forma mais baixa de energia do signo. (...) Todas as formas atuais de atividade tendem para a publicidade, e na sua maior parte esgotam-se aí[9].”
Ora, entre as várias instâncias do Estado que pedem recolhimento, prudência e discrição para decidir — espero ter deixado claro que nada disso é antinômico com a necessidade de publicidade que governa o processo judicial —, neste mundo líquido e instantâneo, nenhum órgão corre mais perigo do que o Poder Judiciário. Muitos acreditam que o Supremo Tribunal irá se legitimar com a superexposição. O que antevejo é a sua canibalização. Mais uma vez, Jean Baudrillard, a informação devora os seus próprios conteúdos[10]. Obviamente, que essa frase só tem sentido no âmbito de uma realidade em que as informações circulam, em verdadeiro paroxismo, de maneira absolutamente descontrolada (instantânea). De fato, num âmbito em que toda a informação (certa ou errada) é possível, e é possível instantaneamente, os mass media estão ao lado das massas na liquidação do sentido.
Como, numa democracia, já agora instantânea e virtual, é impossível controlar o fluxo de informação, seja em qualidade, seja em sua justa adequação com o real, nesse quadro, “os media carregam consigo o sentido e o contra-sentido[11]”, não sobrando espaço para crítica[12].
Em conclusão, mesmo aqueles comprometidos com a mais ampla publicidade do Estado não podem deixar de estar apreensivos com esse estado de hiper-realidade a que querem converter os julgamentos e tribunais brasileiros, onde o público é levado a não distinguir entre fantasia (realidade virtual) e a realidade dos fatos[13].
[1] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 103.
[2] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[3] N. Luhmann. Organisation und Entscheidungen. Westdeutscher Verlag GmbH, Opladen/Wiesbaden, 2000, p. 122 e ss.
[4][4] Lembro aqui do ótimo livro “Legitimação pelo Procedimento” de Luhmann, que a UnB deveria fazer um esforço para reeditar.
[5] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[6] Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 4ª. Ed, 2009, p. 1045.
[7] Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 4ª. Ed, 2009, p. 1045.
[8] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[9] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 113.
[10] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 105.
[11] Segundo Baudrillard, “Até no reality show, onde assistimos, na narrativa ao vivo, no acting televisual imediato, à confusão da existência e de seu duplo. Nada mais de separação, de vazio, de ausência: entramos na tela, na imagem virtual sem obstáculo. Entramos na vida como numa tela. Vestimos a própria vida como um conjunto digital”.
[12] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 110.
[13] Como se sabe, a natureza do mundo hiper-real seria caracterizada a partir pelos teóricos pós-modernos como uma recriação ou "aperfeiçoamento" da realidade. As pessoas perderiam a habilidade de distinguir realidade e fantasia. Baudrillard em particular sugere que o mundo em que vivemos foi substituído por um simulacro (mundo-cópia), no qual vivemos cercados por um simulacro de ordem estimular, e nada mais. Mais do que isso, as pessoas passam a viver a virtualidade (a cópia) e não os fatos reais.
Os media, num processo já agora irreversível, implodiram de vez qualquer sentido que antes retirávamos da realidade. No dizer de uma das mais autorizadas vozes sobre a simulação e os simulacros em que se converteu a vida contemporânea, submetida à tela total do universo virtual: “Estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido. A informação é directamente destruidora ou neutralizadora do sentido e do significado. A perda do sentido está diretamente ligada à acção dissolvente, dissuasiva, da informação dos media e dos mass media”[1].
De fato, esse é um dos grandes paradoxos da contemporaneidade: quanto mais informação, menos sentido; quanto mais informação, menos informados estamos. “Vídeo, tela interativa, multimídia, Internet, realidade virtual: a interatividade nos ameaça em toda parte[2]”.
Nesse quadro, só podemos estar bastante apreensivos com o verdadeiro processo de espetacularização dos tribunais brasileiros. Aviso logo que não tenho qualquer esperança de mudança no comportamento da mídia. De outro lado, como fato político consumado, não tenho também qualquer expectativa numa solução de continuidade na superexposição que vivem agora ministros e o próprio STF. Mas como me permito o lamento, devo justificá-lo. Além disso, se o processo é irreversível, poderia, contudo, ser melhorado. Vejamos.
Seria bom, em primeiro lugar, que à ampla publicidade a que vem sendo submetido o Supremo Tribunal Federal, como em casos como o do chamado Mensalão, se seguisse alguma responsabilidade social por parte dos órgãos de comunicação de massa. Bastaria, para tanto, que jornalistas e demais comentaristas especializados — a maior parte deles, sem formação jurídica — esclarecessem ao público que é essencial, imanente mesmo, a qualquer espécie de decisão, notadamente a decisão judicial, a possibilidade de mais de uma escolha. Decidir é tautologicamente escolher[3]. Onde só há uma possibilidade de decisão ou de escolha, em termos lógicos, na verdade, não há decisão a ser tomada, mas inexorável posição e conduta que se impõem a quem decide.
Aliás, como os jornalistas e órgãos de imprensa não aceitam que o Supremo possa, nesse e em outros casos, ter mais de uma escolha — por exemplo, absolver/condenar —, isso explica perfeitamente a sua impaciência com o curso do processo. Por que demorar se todos já sabem o que deve ser feito?
Entretanto, é curial que os julgamentos levados a cabo numa democracia diferenciem-se daqueles próprios dos julgamentos prosseguidos na inquisição, em ditaduras ou em totalitarismos, precisamente, porque nessas aberrações históricas os indivíduos, por sua condição de classe ou de poder, já entram na corte — e no processo — em uma exclusiva posição: ou já condenados, ou já absolvidos.
Na democracia, a condição de culpado ou inocente do acusado só se permite alcançar ao final de um devido, repito, ao final de um devido processo legal.
Para ficar num exemplo absolutamente extremo dessa abominável pretensão de condenar antes de se concluir o processo, no Malleus Maleficarum — conhecido como Martelo das Feiticeiras —, principal documento da igreja católica sobre procedimentos em inquéritos e julgamentos de bruxas e feiticeiras, livro compilado e escrito por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, com base na bula Summis desiderantes do Papa Inocêncio VIII, ali, como de regra não se admitia a possibilidade de inocência das mulheres acusadas de feitiçaria, os inquisidores advertiam que naqueles procedimentos em que, mesmo sob tortura, a acusada negasse a culpa, aí mesmo é que se deveria condená-la, pois, justificavam, só alguém que de fato tenha firmado pacto com o demônio teria força para negar sua culpa debaixo de tortura. Numa democracia, é um contrassenso, pois, que alguém entre num processo já condenado.
Por outro lado, aqueles que defendem a ampla e irrestrita publicidade — e em tempo real — das sessões do Supremo confundem publicidade com superexposição. Confundem a reflexão, que exige tempo e é essencial quando cuidamos de julgar a vida das pessoas, com transmissão e espetáculos em tempo real, que, por sua própria natureza, prejudica ou mesmo impede a reflexão racional e amadurecida.
Decisões judiciais devem revelar racionalidade e adequação ao direito. Por isso carecem de tempo e exigem ser processadas: isso as legitimam[4], e não a sua eventual conformação aos anseios de justiçamento e sangue de interesses massificados. Serenidade não se compatibiliza com campeonatos de popularidade e a ansiedade própria do horário nobre da televisão.
Além disso, julgamento justo exige algum distanciamento de quem decide. Tudo isso é impossível ou, no mínimo, improvável em julgamentos sob o influxo do encurtamento do tempo real e sob a influência de interesses midiáticos.
Processos judiciais, sobretudo os de apelo midiático, exigem a serenidade de algum tempo de reflexão, além de distância e imparcialidade de quem decide em relação aos fatos e a seus supostos autores — no direito, quem é testemunha ou vítima, obviamente, não pode julgar. A mídia exige, ao contrário, o tempo real da transmissão “ao vivo” e a proximidade máxima de quem opina — mas, se todos se sentirem vítimas, inclusive os jornalistas, do chamado mensalão e de outros supostos crimes de apelo público, como pretendem ser seus juízes? Ainda uma vez Baudrillard: “Pela abolição da distância, do patos da distância, tudo se torna irrefutável. (...) A excessiva proximidade do acontecimento e de sua difusão em tempo real cria a indemonstrabilidade, a virtualidade do acontecimento que lhe retira a dimensão histórica e o subtrai à memória. Por toda parte onde opera essa promiscuidade, essa colisão de polos, há massificação[5]”.
Todo jurista sério sabe perfeitamente que não se deve opinar sobre casos submetidos ao Judiciário, quando não se tem amplo acesso aos autos do processo. Além disso, nenhum jurista que mereça esse nome se diria habilitado a julgamento de pessoas ou fatos dos quais se sentisse vítima.
No caso concreto, o que se tem visto é o julgamento midiático de quem, abertamente, se considera vítima — afirma-se, como se sabe, que todos são vítimas do mensalão — e tem certeza sobre a extensão da participação de cada um dos réus. Não aceita qualquer resposta do Supremo que não seja o de condenação. Alguns, é verdade, ainda que em menor número, têm o comportamento oposto: por compartilharem a posição política dos acusados, não admitem qualquer resultado no julgamento que não seja o de absolvição. Ambos têm em comum não conhecerem os autos e não terem distanciamento de espírito para emitirem uma opinião racional e com imparcialidade. A ambos a mesma resposta se impõe: vamos aguardar com serenidade o pronunciamento final do Supremo, que poderá ser tanto de absolvição quanto de condenação, em maior ou menos extensão, mas, pressupõe-se, será a mais justa possível.
Cotidianamente, nós, juízes, advogados e promotores, nos confrontamos com casos bem mais simples do que o tal mensalão, em que, por exemplo, assessores nossos, depois de examinar os autos, chegam a conclusão completamente oposta ou, no mínimo, diversa, daquela alcançada por outros assessores ou daquela a que nós próprios chegamos. O que dizer, então, da Ação Penal Originária 470, o chamado mensalão, cujo processo, segundo o que se noticia, conforma mais de 50 mil páginas em seus autos? Quem, com seriedade e honestidade de propósitos, não sendo juiz do STF, advogado ou membro do Ministério Público que funcionaram no caso, pode pretender estar habilitado a expressar certezas como, cotidianamente, os órgãos de mídia transmitem ao público?
Todas as vezes que jornalistas me procuram para opinar sobre casos nos os quais não funcionei como magistrado, minha resposta — como fazia à época em que era procurador da República — é simples e única: não conheço os autos. Aliás, as Leis Orgânicas de magistrados, promotores e advogados, limitam a sua liberdade de opinar sobre casos nos quais não estejam funcionando. Nada obstante, o que se vê, é uma plêiade de operadores do Direito expedindo certezas e opiniões a granel sobre um processo que, de saída, dizem não conhecer. E opiniões não apenas sobre as formalidades, mas também sobre o seu próprio conteúdo.
A eventual restrição a uma superexposição do Supremo nem de longe constrangeria o princípio da publicidade que deve governar os processos judiciais em uma democracia. O modelo de televisionamento ao vivo é uma opção certamente legítima do legislador brasileiro e do próprio Supremo. Mas, não se pode omitir, é uma exceção nas democracias ocidentais. Alemanha e Estados Unidos, por exemplo, passam muito bem sem essa espetacularização de suas mais altas cortes, como, aliás, chamou a atenção o grande magistrado brasileiro, irrepreensível em toda a sua vida de dedicação à Justiça brasileira, Dr. Vladimir Passos de Freitas.
Em outras palavras, não se exige, para resguardar o princípio da publicidade, a superexposição a que vemos submetidos os juízes de nossa mais alta corte. Com efeito, no âmbito do devido processo legal, a publicidade existe, sobretudo, para servir a um julgamento justo, e não o contrário. Tanto é assim, que o magistrado poderá — na verdade, deverá — restringir a publicidade do processo sempre que perceber que, de alguma forma, a publicidade se mostre prejudicial à verdadeira finalidade a que se presta a instituição do Judiciário numa democracia, que é precisamente a concretização do devido processo legal, ou, em outras palavras, a concretização de um processo o mais formal e substancialmente justo possível.
O justice Scalia, em depoimento no Senado norte-americano, como já relatei aqui na ConJur, justificando por que aquela alta corte, celebrada em todo o mundo civilizado, permanece infensa à ideia de transmissão em tempo real por câmeras de televisão, afirmava que, no geral, dez pessoas tomam conhecimento integral do caso, mas, com câmeras no Tribunal, mil pessoas o comentariam sem saber do que falam e o resto da população formaria sua opinião a partir desse fosso de informação.
No caso brasileiro, a própria Constituição contém limitação constitucional expressa à publicidade dos julgamentos, “podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (art. 93, IX, CF).
O mestre dos mestres em Direito processual, Giuseppe Chiovenda, ao conceituar a publicidade das atividades processuais, já insistia no dado absolutamente simples de que publicidade, em processo, “se pode entender de dois modos diferentes: ou como admissão dos terceiros (públicos) a assistir às atividades processuais; ou como necessidade entre as partes de que toda atividade processual tenha a presença de ambas[6].” Conclui o grande processualista que a publicidade para o público é mais um interesse da política do que interesse do próprio processo. Esses dois valores, obviamente, às vezes podem entrar em colisão. Por isso, “quando pela natureza da causa, a publicidade puder oferecer perigo à boa ordem ou aos bons costumes, e nos demais casos estabelecidos em lei, a autoridade judicial, a requerimento do Ministério Público, ou de ofício, determina que o debate se realize a portas fechadas[7]”.
O mais incrível é que, mesmo com o amplo acesso ao julgamento, a mídia não se conforma aos limites legítimos do seu código de comunicação (informar/não informar), pretendendo antes substituir-se ao próprio Supremo Tribunal, na sua competência constitucional de dizer o direito, pois passou abertamente a confrontar os próprios ministros, ao dizer ao público com ares de correção e perícia técnica o que é lícito ou ilícito nas condutas daqueles que estão sendo submetidos a julgamento naquela Suprema Corte.
Mais do que isso, alguns órgãos da imprensa e seus profissionais, não se limitando a “julgar” o caso, passaram a julgar os próprios juízes e ministros, não aceitando qualquer outra resposta ao caso que não seja aquela por eles próprios — órgãos de imprensa — considerada adequada, além de invadir outro sistema social — a ética — para dizer o que, no comportamento de cada ministro do Supremo, é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo (gerechtfertigt/ungerechtfertigt). Verdadeiros professores de Deus.
Jornalistas, quando atuam como jornalistas, têm como propósito precípuo informar. Se querem atuar como moralistas — e numa democracia têm esse direito —, têm, contudo, que advertir o público de que naquele momento não estão atuando como jornalistas, mas, sim, como qualquer outro cidadão ou moralista — na maior parte das vezes, tão desinformado quanto.
Numa democracia, as diferenciações funcionais são essenciais ao esclarecimento e à legitimação dos lugares e dos atores sociais. Por exemplo, um juiz não pode, no seu lar, pretender “decidir” através de sentenças com força vinculante, da mesma forma que não pode, no tribunal, pretender discutir ou negociar suas sentenças como se fosse como pai, marido ou irmão das partes. No caso da imprensa, as pessoas têm, pois, o direito de saber se estão recebendo informações do jornalista ou opiniões do opositor do regime ou do amigo do entrevistado.
Contudo, no mundo contemporâneo, não é isso o que ocorre. Pelo contrário, no mundo em que o virtual se torna real e o real se torna virtual, “por tudo, mistura-se o que era separado; por tudo, a distância é abolida: entre os sexos, entre os polos opostos, entre o palco e a plateia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e o seu duplo. Essa confusão dos termos e essa colisão dos polos fazem com que em mais nenhum lugar haja a possibilidade do juízo de valor: nem em arte, nem em moral, nem em política[8].”,
No mundo em que vivemos, as informações transmitidas pelos meios de comunicação de massa já não se limitam a criar uma base para a comunicação entre as pessoas, elas se transformaram na própria realidade. Nessa realidade de informações instantâneas, de publicidade e espetáculo, “o que estamos a viver é absorção de todos os modos de expressão virtuais no da publicidade. Todas as formas culturais originais, todas as linguagens determinadas absorvem-se neste porque não tem profundidade, é instantânea e instantaneamente esquecida. Triunfo da forma superficial. (...) Forma mais baixa de energia do signo. (...) Todas as formas atuais de atividade tendem para a publicidade, e na sua maior parte esgotam-se aí[9].”
Ora, entre as várias instâncias do Estado que pedem recolhimento, prudência e discrição para decidir — espero ter deixado claro que nada disso é antinômico com a necessidade de publicidade que governa o processo judicial —, neste mundo líquido e instantâneo, nenhum órgão corre mais perigo do que o Poder Judiciário. Muitos acreditam que o Supremo Tribunal irá se legitimar com a superexposição. O que antevejo é a sua canibalização. Mais uma vez, Jean Baudrillard, a informação devora os seus próprios conteúdos[10]. Obviamente, que essa frase só tem sentido no âmbito de uma realidade em que as informações circulam, em verdadeiro paroxismo, de maneira absolutamente descontrolada (instantânea). De fato, num âmbito em que toda a informação (certa ou errada) é possível, e é possível instantaneamente, os mass media estão ao lado das massas na liquidação do sentido.
Como, numa democracia, já agora instantânea e virtual, é impossível controlar o fluxo de informação, seja em qualidade, seja em sua justa adequação com o real, nesse quadro, “os media carregam consigo o sentido e o contra-sentido[11]”, não sobrando espaço para crítica[12].
Em conclusão, mesmo aqueles comprometidos com a mais ampla publicidade do Estado não podem deixar de estar apreensivos com esse estado de hiper-realidade a que querem converter os julgamentos e tribunais brasileiros, onde o público é levado a não distinguir entre fantasia (realidade virtual) e a realidade dos fatos[13].
[1] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 103.
[2] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[3] N. Luhmann. Organisation und Entscheidungen. Westdeutscher Verlag GmbH, Opladen/Wiesbaden, 2000, p. 122 e ss.
[4][4] Lembro aqui do ótimo livro “Legitimação pelo Procedimento” de Luhmann, que a UnB deveria fazer um esforço para reeditar.
[5] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[6] Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 4ª. Ed, 2009, p. 1045.
[7] Giuseppe Chiovenda. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 4ª. Ed, 2009, p. 1045.
[8] J. Baudrillard. Tela total. P. Alegre: Sulina, 2005, p. 129.
[9] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 113.
[10] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 105.
[11] Segundo Baudrillard, “Até no reality show, onde assistimos, na narrativa ao vivo, no acting televisual imediato, à confusão da existência e de seu duplo. Nada mais de separação, de vazio, de ausência: entramos na tela, na imagem virtual sem obstáculo. Entramos na vida como numa tela. Vestimos a própria vida como um conjunto digital”.
[12] J. Baudrillard. Simulacros e Simulações. Lisboa : Relógio D’Água, 1981, p. 110.
[13] Como se sabe, a natureza do mundo hiper-real seria caracterizada a partir pelos teóricos pós-modernos como uma recriação ou "aperfeiçoamento" da realidade. As pessoas perderiam a habilidade de distinguir realidade e fantasia. Baudrillard em particular sugere que o mundo em que vivemos foi substituído por um simulacro (mundo-cópia), no qual vivemos cercados por um simulacro de ordem estimular, e nada mais. Mais do que isso, as pessoas passam a viver a virtualidade (a cópia) e não os fatos reais.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2012
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