Elmir Duclerc | Direito e Sociedade.
Não que eu dê muita importância ao que Veja estampa na sua capa (a única parte que leio hoje, por inevitabilidade, quando vou numa banca de revistas). O problema, na verdade, é que essa pérola (mais uma) da estupidez fascista não brota de qualquer sensibilidade ou inteligência especial dos seus editores, mas apenas capta e reproduz um senso comum perigosíssimo e infelizmente disseminado no inconsciente coletivo do povo brasileiro, carente de tudo, inclusive de educação, e por isso totalmente vulnerável a manipulações ideológicas e fantasias autoritárias de toda ordem.
O fato é que Joaquim Barbosa não mudou e não mudará coisa alguma.
Primeiro (para aproveitar a moda) por uma questão de causalidade. Toda fantasia de herói, é bem verdade, exige a construção de um personagem imaculado. Assim é desde a imaculada concepção de Maria até o índio extraterrestre de Caetano Veloso, que virá…impávido que nem Muhammed Ali, apaixonadamente como Peri, tranquilo e infalível como Bruce Lee. Mas o fato é que, fora do mundo da fantasia, Joaquim Barbosa foi apenas o sorteado para a relatoria do processo. E como qualquer servidor, recebe um salário para realizar o seu ofício. Se o seu julgamento repercutiria para mudar o Brasil ou não, pouco importa: fez apenas aquilo que era a (bem remunerada) obrigação de qualquer um que estivesse no seu lugar. Como se vê, na re-pública não há espaço para algo tão infungível como um herói.
Além disso, o certo é que o nosso herói não poderia fazer nada se não fossem: os outros ministros que o têm acompanhado nos seus votos; O Ministério Público, que ofereceu a denúncia; a polícia federal, responsável pelo inquérito; o próprio Congresso Nacional (ah, esse eterno anti-herói!) que instalou e conduziu a CPI. Aliás, de todos os agentes que poderiam estar dando causa à mudança do Brasil, quem poderia ser apontado como o cabeça e detentor do domínio funcional do fato é justamente o autor original da notícia de crime, réu confesso, delator, e condenado pelo próprio Joaquim.
Por outro lado, acredito sinceramente, que nem mesmo os próprios editores de Veja apostem um centavo em qualquer mudança nos níveis de corrupção do país como consequência do julgamento no STF. Para aproveitar, também aqui, o jargão da teoria do delito, poderíamos falar de um resultado impossível por absoluta impropriedade do meio.
A final, quem pode ser tão ingênuo a ponto de esperar qualquer mudança no Brasil depois da condenação dos ditos mensaleiros? É curioso perceber como nos escandalizamos tão facilmente com as notícias sobre corrupção, mas não nos escandalizamos com a outra face dessa moeda, isto é, os financiamentos privados de campanhas eleitorais. Toda grande empresa, inclusive grandes grupos de comunicação, como aqueles a que pertencem Veja, Globo etc., financiam candidatos a fundo perdido. Para que? Por mera simpatia ou afinidade ideológica? No capitalismo (é preciso tomar consciência disso de vez por todas) há uma verdadeira confusão entre os ambientes público e privado, e ninguém “doa” nada para ninguém. A Lei de mercado impõe isso, sobretudo num país tão desigual e carente de educação. Para sobreviver no mercado, preciso vencer meus concorrentes. Se eu não corromper, não sonegar, não fizer lobby, meu concorrente o fará e eu vou perder o meu negócio. Simples assim. A lógica do mensalão é a lógica da relação público-privado no capitalismo. É a lógica do mensalinho tucano de Minas, do impeachtment de Collor, da emenda da reeleição de Fernando Henrique Cardoso (lembram?), do dinheiro na meia de José Roberto Arruda, da jogatina de Demóstenes (o último de tantos heróis decaídos), enfim, da obra pública licitada para a construção de Salvador, nos anos 1500, pela equipe de assessores de Tomé de Souza! Nesses 500 anos, os que foram pegos são somente aqueles que foram pegos, pois essa é a lógica do sistema.
Não precisamos nos conformar com isso, mas, por Deus, também não podemos mais crer que o sacrifício de alguns “bois de piranha” seja capaz de impedir que toda a manada atravesse o rio na direção do pasto verdejante do dinheiro fácil.
Mais uma vez, Joaquim Barbosa não mudou e não mudará o Brasil. Pelo contrário.
O mito do herói só aprofunda nossa incapacidade para atacar as raízes do mal, e é justamente a fantasia infantil e solitária que ele incorpora que imobiliza a sociedade para a construção coletiva e sistêmica de soluções reais e adultas para seus problemas.
Nesse passo, o mito acaba sendo a marca de sociedades moralistas e autoritárias. Temos um histórico de autoritarismo que não pode ser apagado facilmente. Como nação, surgimos de uma invasão que resultou no extermínio de quase toda a população nativa e no sequestro e escravização de milhões de estrangeiros de pele negra. Desde então, vivemos, em sequência: um império escravagista; um arremedo de república oligárquica; o fascismo travestido de Estado Novo; uma ditadura militar de 20 anos e alguns míseros aninhos (perdidos entre outros quase 500) de uma débil democracia política. Gostemos ou não, somos autoritários. Cultuamos a autoridade da carteirada, do “você sabe com quem está falando”, e por isso nos agrada tanto imaginar que o ministro negro (aquele menino pobrezinho da capa de Veja) está salvando o Brasil de capa e espada na mão, quando não está fazendo mais do que a sua obrigação.
Ao que parece, aliás, o próprio Ministro Joaquim Barbosa, certamente com as melhores intenções, vê-se muito à vontade no papel de herói. Não é à toa que as marcas registradas de sua atuação nas sessões plenárias têm sido o total menosprezo pelas teses defensivas (abobrinhas, nas suas palavras) e as virulentas reações contra os próprios pares que divergem da verdade absoluta que brota dos seus lábios. Afinal, como ousam discordar do herói negro, menino pobre que está mudando o Brasil?
Perdoe-me ministro Joaquim Barbosa, mas prefiro ficar com Fernando Pessoa e seu Poema em Linha Reta:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho.
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda
Eu, que tenho sido cômico às criadas do hotel
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisso tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o ideal, se os ouço e me falam.
Quem há, neste largo mundo, que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semi-deuses! Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”
Perdoe-me grande Ministro Joaquim, mas, gostemos ou não, se há algum menino que deveria ter sua foto na capa da pequena revista Veja, esse seria o pequeno Roberto Jefferson!
GRANDES E PEQUENOS NO JULGAMENTO DO “MENSALÃO”
Na capa da última edição da revista Veja está estampada, como sabemos, uma foto de infância do Ministro Joaquim Barbosa com a legenda: “O menino pobre que mudou o Brasil”.Não que eu dê muita importância ao que Veja estampa na sua capa (a única parte que leio hoje, por inevitabilidade, quando vou numa banca de revistas). O problema, na verdade, é que essa pérola (mais uma) da estupidez fascista não brota de qualquer sensibilidade ou inteligência especial dos seus editores, mas apenas capta e reproduz um senso comum perigosíssimo e infelizmente disseminado no inconsciente coletivo do povo brasileiro, carente de tudo, inclusive de educação, e por isso totalmente vulnerável a manipulações ideológicas e fantasias autoritárias de toda ordem.
O fato é que Joaquim Barbosa não mudou e não mudará coisa alguma.
Primeiro (para aproveitar a moda) por uma questão de causalidade. Toda fantasia de herói, é bem verdade, exige a construção de um personagem imaculado. Assim é desde a imaculada concepção de Maria até o índio extraterrestre de Caetano Veloso, que virá…impávido que nem Muhammed Ali, apaixonadamente como Peri, tranquilo e infalível como Bruce Lee. Mas o fato é que, fora do mundo da fantasia, Joaquim Barbosa foi apenas o sorteado para a relatoria do processo. E como qualquer servidor, recebe um salário para realizar o seu ofício. Se o seu julgamento repercutiria para mudar o Brasil ou não, pouco importa: fez apenas aquilo que era a (bem remunerada) obrigação de qualquer um que estivesse no seu lugar. Como se vê, na re-pública não há espaço para algo tão infungível como um herói.
Além disso, o certo é que o nosso herói não poderia fazer nada se não fossem: os outros ministros que o têm acompanhado nos seus votos; O Ministério Público, que ofereceu a denúncia; a polícia federal, responsável pelo inquérito; o próprio Congresso Nacional (ah, esse eterno anti-herói!) que instalou e conduziu a CPI. Aliás, de todos os agentes que poderiam estar dando causa à mudança do Brasil, quem poderia ser apontado como o cabeça e detentor do domínio funcional do fato é justamente o autor original da notícia de crime, réu confesso, delator, e condenado pelo próprio Joaquim.
Por outro lado, acredito sinceramente, que nem mesmo os próprios editores de Veja apostem um centavo em qualquer mudança nos níveis de corrupção do país como consequência do julgamento no STF. Para aproveitar, também aqui, o jargão da teoria do delito, poderíamos falar de um resultado impossível por absoluta impropriedade do meio.
A final, quem pode ser tão ingênuo a ponto de esperar qualquer mudança no Brasil depois da condenação dos ditos mensaleiros? É curioso perceber como nos escandalizamos tão facilmente com as notícias sobre corrupção, mas não nos escandalizamos com a outra face dessa moeda, isto é, os financiamentos privados de campanhas eleitorais. Toda grande empresa, inclusive grandes grupos de comunicação, como aqueles a que pertencem Veja, Globo etc., financiam candidatos a fundo perdido. Para que? Por mera simpatia ou afinidade ideológica? No capitalismo (é preciso tomar consciência disso de vez por todas) há uma verdadeira confusão entre os ambientes público e privado, e ninguém “doa” nada para ninguém. A Lei de mercado impõe isso, sobretudo num país tão desigual e carente de educação. Para sobreviver no mercado, preciso vencer meus concorrentes. Se eu não corromper, não sonegar, não fizer lobby, meu concorrente o fará e eu vou perder o meu negócio. Simples assim. A lógica do mensalão é a lógica da relação público-privado no capitalismo. É a lógica do mensalinho tucano de Minas, do impeachtment de Collor, da emenda da reeleição de Fernando Henrique Cardoso (lembram?), do dinheiro na meia de José Roberto Arruda, da jogatina de Demóstenes (o último de tantos heróis decaídos), enfim, da obra pública licitada para a construção de Salvador, nos anos 1500, pela equipe de assessores de Tomé de Souza! Nesses 500 anos, os que foram pegos são somente aqueles que foram pegos, pois essa é a lógica do sistema.
Não precisamos nos conformar com isso, mas, por Deus, também não podemos mais crer que o sacrifício de alguns “bois de piranha” seja capaz de impedir que toda a manada atravesse o rio na direção do pasto verdejante do dinheiro fácil.
Mais uma vez, Joaquim Barbosa não mudou e não mudará o Brasil. Pelo contrário.
O mito do herói só aprofunda nossa incapacidade para atacar as raízes do mal, e é justamente a fantasia infantil e solitária que ele incorpora que imobiliza a sociedade para a construção coletiva e sistêmica de soluções reais e adultas para seus problemas.
Nesse passo, o mito acaba sendo a marca de sociedades moralistas e autoritárias. Temos um histórico de autoritarismo que não pode ser apagado facilmente. Como nação, surgimos de uma invasão que resultou no extermínio de quase toda a população nativa e no sequestro e escravização de milhões de estrangeiros de pele negra. Desde então, vivemos, em sequência: um império escravagista; um arremedo de república oligárquica; o fascismo travestido de Estado Novo; uma ditadura militar de 20 anos e alguns míseros aninhos (perdidos entre outros quase 500) de uma débil democracia política. Gostemos ou não, somos autoritários. Cultuamos a autoridade da carteirada, do “você sabe com quem está falando”, e por isso nos agrada tanto imaginar que o ministro negro (aquele menino pobrezinho da capa de Veja) está salvando o Brasil de capa e espada na mão, quando não está fazendo mais do que a sua obrigação.
Ao que parece, aliás, o próprio Ministro Joaquim Barbosa, certamente com as melhores intenções, vê-se muito à vontade no papel de herói. Não é à toa que as marcas registradas de sua atuação nas sessões plenárias têm sido o total menosprezo pelas teses defensivas (abobrinhas, nas suas palavras) e as virulentas reações contra os próprios pares que divergem da verdade absoluta que brota dos seus lábios. Afinal, como ousam discordar do herói negro, menino pobre que está mudando o Brasil?
Perdoe-me ministro Joaquim Barbosa, mas prefiro ficar com Fernando Pessoa e seu Poema em Linha Reta:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho.
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda
Eu, que tenho sido cômico às criadas do hotel
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisso tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o ideal, se os ouço e me falam.
Quem há, neste largo mundo, que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semi-deuses! Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”
Perdoe-me grande Ministro Joaquim, mas, gostemos ou não, se há algum menino que deveria ter sua foto na capa da pequena revista Veja, esse seria o pequeno Roberto Jefferson!
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