domingo, 28 de fevereiro de 2016

Sociedade brasileira: violência e autoritarismo por todos os lados

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Sociedade brasileira: violência e autoritarismo por todos os lados

A filósofa Marilena Chaui analisa a situação política e econômica brasileira e comenta a ocupação das escolas paulistas


por Juvenal Savian Filho e Laís Modelli



Desde o início dos anos 1980, Marilena Chaui tem proposto como chave
de leitura de nosso país a ideia de que a sociedade brasileira é
autoritária e violenta. Em obras como Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, de 1981 (que será reeditado em seus Escritos,
publicados pela Editora Autêntica), a filósofa contraria a imagem de
uma cultura nacional pretensamente formada pelo acolhimento recíproco e
pela cordialidade, revelando estruturas enraizadas de hierarquização e
de sedução pela autoridade.


Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como
individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas
históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e
republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da
cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.


Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui,
extremamente atual para analisar o momento vivido pelo Brasil. Apesar
dos percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas décadas, o
país tenta entrar na Modernidade, que exige necessariamente inclusão
social. Essa mesma inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os
auxílios financeiros para inserção econômica, distribuídos por países
como Alemanha e França às populações mais pobres, são considerados por
lá sinais de desenvolvimento, o Bolsa Família, no Brasil, é chamado de
assistencialismo e de estratégia eleitoreira. Se a ação do Estado no
controle do mercado é vista como necessária em outras partes do mundo,
aqui ela é chamada de “ameaça comunista” e de inchaço da máquina
pública.


O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço
público, porque não agimos como sujeitos, transferindo a
responsabilidade pela construção da cidadania aos aparelhos de governo.
Focamo-nos nas salvações que podem vir do poder e não obrigamos o poder
público a representar de fato todos os setores sociais. O resultado
dessa prática (ou ausência de prática) é o fortalecimento da violência e
do autoritarismo, que atualmente se intensificam nas formas de controle
policial, por exemplo, e a falta de pensamento no jogo político (não
somente de direita, mas também de esquerda!).


Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na entrevista que concedeu à CULT.





CULT: Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?


Marilena Chaui: É uma situação gravíssima. É
gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do
governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita
e protofascista que está tomando conta da pauta política. Quando
examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até
agora, vemos o poder dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É
uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva,
antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados
ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário
protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média
urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas completamente
desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os
direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do
Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos problemas da democracia e do
socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de
extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em
vigência no início dos anos 1960. É uma ameaça de golpe para reverter o
processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e
sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”. Aliás, a atuação de grupos
religiosos é muito preocupante e vai além de uma questão propriamente
política, porque, apesar de se manifestar na representação política, ela
é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas
interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.





CULT: Como se dá essa interiorização e reformulação evangélica da concepção neoliberal?


Marilena: Uma das características do neoliberalismo é
a maneira como ele concebe o indivíduo, que não é entendido nem como
parte de uma classe social, nem como ser em formação que vai se
relacionar com o restante da sociedade. O indivíduo não é pensado nem
como átomo nem como classe, mas como um investimento. Na medida em que
um indivíduo é um investimento, o salário não é entendido como salário,
mas como provento, como renda. Então, o ser humano é programado para ser
rendoso e rentável. A família, a escola e o emprego passam a ter por
função a rentabilidade do indivíduo, porque ele é um investimento. As
igrejas evangélicas se apropriam desse ideário e o desenvolvem por meio
de uma teologia – a teologia da prosperidade, que considera cada
indivíduo justamente como um investimento ou uma empresa. Ele não é um
empresário, mas uma empresa, e, como tal, precisa de uma série de
condições para funcionar. Então as igrejas, além de convencerem a pessoa
de que ela nasceu para vencer na vida e ser rentável, levam a ética
calvinista ao máximo, explorando a crença de que ser rentável é um sinal
de salvação, porque é isso que Deus espera.


Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia.
Elas se espalham no campo da produção e do comércio e empregam todas as
pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as escolheu e que são um
investimento rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da
franquia; depois abrem outra e assim por diante. Há, portanto, um
fenômeno de fortalecimento da ideologia neoliberal e das concepções
conservadoras da classe média por meio da maneira como as igrejas
evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma teologia para isso. Se
você juntar o conservadorismo com o reacionarismo da classe média urbana
e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de toda a
discussão sobre a vida no campo (a reforma agrária), vai entender por
que politicamente se exprime, de modo efetivo, nos grupos do “boi, bala e
Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.


A minha preocupação é, evidentemente, por um lado, denunciar de todas
as maneiras possíveis a tentativa de golpe. Por outro, assegurar que
governos voltados para os direitos sociais (e, desse ponto de vista, com
uma pauta antineoliberal) sejam garantidos. Ao lado disso, a minha
preocupação é com a sociedade, ou seja, com a ideologia. Depois de muito
tempo, lá retorno eu à questão da ideologia. É preciso refletir sobre
como erguer um dique para impedir a entrada avassaladora da ideologia
neoliberal na sua forma teológica. Estamos vivendo um momento que vai
fazer 1964 parecer uma coisa muito simples. 1964 estava inserido na
Guerra Fria, no poderio dos Estados Unidos sobre os países da América
Latina. Por causa do exemplo de Cuba, acreditava-se ser possível uma
revolução socialista. Os componentes eram muito óbvios. Havia uma
clareza na compreensão do momento vivido. Agora não há clareza. Tudo é
muito difuso, muito opaco, obscuro, porque há fundo teológico.





CULT: A senhora acredita em um golpe militar?


Marilena: Está fora de questão.





CULT: O que pode acontecer?


Marilena: Se as coisas continuarem no ritmo em que
estão e se o golpe dos 3B se concretizar, haverá uma efervescência
social enorme, porque todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo
Estado depois da era militar terão esses mesmos direitos cortados. E
haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça urbana, uma situação de
vigilância e intimidação em todas as instituições. Isso provocará
reação, uma resposta social enorme. É um risco que o PSDB não quer
correr porque ele não tem condição de conter essas reações; e esse risco
também não interessa ao PMDB, porque o partido está dividido. Então, no
fim das contas, as forças que poderiam produzir um golpe não têm mais
interesse que ele aconteça, porque a convulsão que ele vai provocar, à
direita e à esquerda, não pode ser controlada nem pelo PSDB e nem pelo
PMDB. Eles não têm quadros e condições institucionais para controlar
convulsões sociais.





CULT: E o que daria as condições de governabilidade nesse possível contexto?


Marilena: Se houver golpe, a prática será a pura
intimidação e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos
Institucionais. Um Ato Institucional poderia concretizar, por meio da
polícia – já que o Exército não se misturará –, a intimidação e a
violência.





CULT: Pensando na materialização da violência, que espaço resta ao diálogo nesse momento condicionado à truculência?


Marilena: Nenhum. Vamos tomar o caso de São Paulo
como exemplo. Há uma coisa muito interessante: quase ninguém se dá conta
de que o estado de São Paulo – o único estado realmente capitalista no
Brasil, já que os outros são semicapitalistas – é governado desde o
final dos anos 1980 por um único partido político. Economicamente, São
Paulo é um estado capitalista, mas politicamente é uma capitania
hereditária. Parece haver um contrassenso entre o conservadorismo
político e o desenvolvimento econômico. Mas é só na aparência que isso é
contraditório, porque o conservadorismo político é a base de
sustentação desse tipo de desenvolvimento capitalista. Vejam o que
acontece com o governador. Há o problema da água, da luz, das escolas,
da saúde – escândalos –, mas nada gruda no Geraldo Alckmin. Escorre.
Isso acontece porque ele representa o tipo de poder político do estado
de São Paulo: forte e autoritário. A juventude sai às ruas e faz uma
manifestação? Polícia nos jovens, bate neles! O pessoal do transporte
sai para se manifestar? Polícia neles, bate neles! Isso é referendado
pela sociedade paulista, não só a paulistana, que está de acordo e
espera que isso seja feito. Esperaríamos uma reação profunda, mas não é o
que acontece. Eu me lembro de ter visto pela televisão estudantes
algemados durante a ocupação das escolas. Eu disse, “Meu Deus, não se
algema estudante!”. Eles não só foram algemados, como isso foi dado pela
mídia como algo natural; e pela sociedade, como uma coisa necessária.


Então nós temos a consagração, da maneira menos retórica possível, da
violência estrutural da sociedade brasileira. Não uma violência
pontual, de modo que possamos falar em “ondas de violência”. Não. Há uma
violência estruturante. É a estruturação violenta de uma sociedade
hierárquica, vertical, oligárquica, conservadora, que defende os
privilégios contra qualquer forma de direitos; é a mesma que dá a
sustentação ideológica e política para a manifestação da violência
governamental. Essa violência governamental é a expressão da violência
não só paulista e paulistana, mas brasileira, e é ela que legitima essas
ações. Se consideramos todo o ideário da burguesia e da alta classe
média brasileira, vemos que qualquer contestação, qualquer revolta é uma
“crise”. A noção de crise está identificada por essa classe com a ideia
de desordem e perigo. Ora, diante da desordem e do perigo, o que é que
se pede? Repressão. Cada vez que há uma luta por direitos contra
privilégios, essa luta é vista como violenta e precisa ser reprimida.
Há, portanto, uma inversão ideológica fantástica no Brasil: a violência é
vista como ordem.





CULT: A senhora ainda acredita na desobediência civil?


Marilena: Eu acho necessária! Outro dia um colega me
disse: “Marilena, você tem que levar em conta que a juventude que tinha
13, 14 anos em 2000 só conhece o PT como governo, não conhece a
história do PT como movimento social e sindical, como presença
contestadora e de desobediência civil no interior da ordem brasileira”.
Isso quer dizer que a figura do PT se apagou e sobrou somente esse
pedaço, esse triste pedaço que é o PT no aparelho de Estado.


Seria preciso lembrar, por exemplo, a criação do CEDEC [Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea]. Existia no Brasil o CEBRAP [Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento], que era dirigido pelo Fernando
Henrique Cardoso. O Francisco Weffort, em 1976, disse que o CEBRAP era
muito economicista e que precisávamos de um centro que pensasse as
questões políticas e sociais. Reunimo-nos, então, o Francisco Weffort, o
José Guilhon de Albuquerque, o José Álvaro Moisés, o Lúcio Kowarick e
eu, criamos o CEDEC. A Sociologia, a Ciência Política e a História
explicavam (e ainda explicam) o Brasil sempre a partir do aparelho de
Estado. A História do Brasil era contada como história das mudanças no
aparelho de Estado e das decisões tomadas pelo Estado. O Estado aparecia
como o sujeito histórico, político e econômico, como se não existisse
uma sociedade nem uma luta de classes. O CEDEC propôs inverter esse
processo e lembrar que a sociedade brasileira existe, com os movimentos
sociais e populares. Era o momento em que surgia o Movimento dos Sem
Terra, o movimento feminista, o movimento sindical. Os movimentos
começavam a se organizar; os sindicatos criam as comissões de fábrica no
ABC e fazem as greves. É desse momento histórico que nasce o PT. Nós
surgimos da ideia de que a história do Brasil e a sociedade brasileira
não são feitas pelo aparelho de Estado e de que o Estado não é o sujeito
social. Existe a luta de classes e é no interior do conflito que se
criam as bases da democracia. O PT se originou, então, de atos de
desobediência civil. Mas isso os jovens não sabem, porque eles só
conhecem o PT como um partido institucionalmente posto, envolvido nas
questões do Estado e governamentais, como se isso desse conta de toda a
história do PT.


É isso que permite entender também por que jovens de esquerda querem
outras opções, em vez de ligar-se ao PT. Proliferam os pequenos partidos
de esquerda porque toda a história social e política ficou encolhida
nesses últimos quinze anos. Isso também explica o quanto nós do PT
ficamos despreparados na hora em que surgiu o atual golpe. Imagine o PT
do qual eu venho, o PT dos anos 1980 e 1990… Ele não teria aceitado
minimamente aquilo que iria desencadear o golpe. Ele nem permitiria que
isso sequer aflorasse. Muito do que estamos vendo em termos de pauta
conservadora na política está ligado ao encolhimento de tudo aquilo que
representa uma pauta de esquerda.





CULT: A esquerda tornou-se obediente?


Marilena: Sim, claro. O PT ficou desarmado no
momento em que teria de tomar uma posição pública e esclarecer as
coisas. Agora, de um lado temos o Eduardo Cunha, com as igrejas
evangélicas, e, do outro, o Alckmin, com a Opus Dei. É demais da conta!
Eu venho de uma tradição em que a grande aliança era sustentada pela
Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Ver os
cristãos perdidos entre os evangélicos e a Opus Dei é demais; é
insuportável para a minha cabeça porque eu vi a outra experiência que o
cristianismo é capaz de ter e que teve na América Latina inteira.





CULT: A senhora interpreta a frase “Meu partido é meu país”,
comum nas manifestações de 2013, como a manifestação de um desejo de
algo novo ou como uma frase conservadora?



Marilena: “Meu partido é meu país” é uma frase
nazista. Ela nasceu na luta contra a social-democracia, sobretudo quando
o nazismo se opõe à República de Weimar e leva a pensar que os partidos
políticos roubam ou tomam para si as ações políticas que caberiam
exclusivamente ao governante. O governante aparece, então, como o chefe.
É dele que deve emanar, transcendentemente, toda a decisão política.
Desse ponto de vista, se os partidos políticos usurpam uma função que
não é deles, é preciso eliminá-los. Daí a ideia de que “meu partido é
meu país”.





CULT: Falando de encolhimento da pauta de esquerda, como a
senhora interpreta a ação de setores do movimento estudantil que
consideram os docentes como inimigos ou representantes do capital? É
delicado tocar nesse ponto, porque não se trata de ser contra o
movimento estudantil. Mas entender a universidade como espaço de tensão
entre estudantes, servidores (técnicos) e docentes não é também uma
forma de violência ou de exclusão de diferenças?



Marilena: Há algo que marca com força a história da
política de esquerda no Brasil: é o fato de que, periodicamente, vindos
da baixa classe média ou da classe média, há grupos que se apropriam do
marxismo e do leninismo e se apresentam como revolucionários. Na
verdade, o encolhimento do espaço público e de tudo o que ele representa
alimenta pequenas formas privatizadas do pensamento de esquerda, dando
origem a pequenos movimentos e pequenos partidos. Não vou nomear nenhum
deles, mas estou apontando para a origem deles, a maneira pela qual eles
privatizam um ideário. Isso significa, em primeiro lugar, fazer com que
esse ideário não apareça como um ideário em expansão, mas como um
ideário de exclusão. Esses partidos e movimentos se fecham sobre si
mesmos, porque a condição de sobrevivência deles está na recusa de
qualquer inclusão e de qualquer ampliação. Eles se mantêm pela sua
pequeneza e pelo fato de que eles excluem tudo o que não se restrinja a
uma pauta mínima produzida por eles mesmos. É uma mescla da vulgata
marxista, da vulgata leninista e do stalinismo puro, simples e cru. É
mais do que uma coisa reacionária, é uma vertente totalitária. E é por
essa maneira totalitária, privatizada e excludente de se organizar que
esses grupos encaram todo o restante como inimigo que precisa ser
destruído. O outro não é inimigo por causa disso ou daquilo. Ele é
inimigo porque simplesmente é outro. É a mesma lógica de Carl Schmitt,
incorporada por grupos pretensamente de esquerda.





“Você
conversa com alguém da direita e vê que ele é capaz de dizer quatro
frases contraditórias e sem perceber as contradições. Você conversa com
alguém da extrema esquerda e vê o totalitarismo que também opera com a
ausência do pensamento. Então nós estamos ensanduichados entre duas
maneiras de recusar o pensamento.”



CULT: A senhora sabe que um curso seu, de leitura rigorosa da Ética de Espinosa, seria hoje considerado, em alguns contextos, como um trabalho burguês, não sabe?


Marilena: Eu sei!





CULT: Então, por que a cultura erudita ou o pensamento é associada por alguns movimentos a uma prática burguesa?


Marilena: O pensamento é associado à prática
burguesa porque esses movimentos operam pela ausência de pensamento.
Estamos em uma situação aterradora: do lado da direita e da esquerda há
ausência de pensamento. Você conversa com alguém da direita e vê que ele
é capaz de dizer quatro frases contraditórias e sem perceber as
contradições. Você conversa com alguém da extrema esquerda e vê o
totalitarismo que também opera com a ausência do pensamento. Então nós
estamos ensanduichados entre duas maneiras de recusar o pensamento. Lá
onde o pensamento estiver se exercendo, ele receberá mil e um nomes, e
como para esse pessoal de esquerda xingar é chamar de burguês, eles
tratam a cultura erudita como coisa de burguês. Mas se você perguntar o
que é a burguesia e o que é o capital, se pedir uma explicação, verá que
eles não sabem muita coisa; apenas repetem um chavão. Nesses grupos há
uma coisa muito parecida com o que acontece nas igrejas evangélicas: uma
teologia e uma lavagem cerebral. É um esvaziamento de qualquer
capacidade de pensamento. Não é por acaso que dos dois lados o exercício
da violência é igual, e vai da violência verbal à física, à exigência
de sangue. Quando o João Grandino Rodas foi reitor da USP e houve a
segunda ocupação da reitoria, nós, professores, fomos negociar com os
alunos e com a própria reitoria, e os alunos finalmente aceitaram
desocupar. Veio então um membro desses pequenos partidos de esquerda e
disse: “Ninguém sai; nós queremos ver sangue”. Por que ele queria ver
sangue? Porque ele achava que ganharia poder pela destruição física do
outro – uma destruição que não é nem política, nem social.





CULT: Há um encolhimento da capacidade humana de refletir e
fazer escolhas ponderadas? Tanto do lado da polícia como do de certos
grupos de esquerda…



Marilena: Eu entendo isso com Espinosa. O que há nos
seres humanos? Há paixões. A maneira como entendemos o mundo, a nós
mesmos e aos outros é dada pela maneira como o mundo e os outros nos
afetam. Eles causam em nós a sensação de perigo ou de aumento da nossa
capacidade de viver. Se tudo o que se passa em mim é produzido pela
maneira como o que está fora age sobre mim, eu sou passiva e todos os
meus sentimentos são apenas paixões: o amor, a esperança, o ciúme, a
misericórdia, a honra, a glória etc. O que eu sinto é pura e
simplesmente uma reação passiva ao que vem de fora.


Ao contrário, se eu tenho força interior para saber que eu posso ser a
causa dos meus sentimentos e, que se sinto raiva de você, não é por sua
causa, mas por aquilo que eu sinto com relação ao que eu penso a seu
respeito, então me vejo como a causa da raiva que sinto por você, em
função do modo como eu penso em você ou percebo você. A partir do
momento em que eu sou capaz de me reconhecer como causa dos meus
sentimentos, eu sou ativa e descubro que não tenho de responsabilizar os
outros por aquilo que se passa em mim. Se eu for passiva, nunca serei
livre; tudo o que eu fizer será determinado pelo que os outros exigem de
mim; e, mesmo que eles não façam nenhuma exigência, eu sinto como uma
exigência. Então só obedeço ao que eu imagino que seja o desejo do
outro. Ao contrário, se é o meu desejo que determina o que eu vou fazer e
como vou fazer, eu sou livre.


Dessa perspectiva, o que é a violência? É aquilo que se passa
inteiramente no campo das paixões, porque é lá que os desejos entram em
conflito. Se eu me entregar a elas, faço o meu desejo valer destruindo o
desejo do outro; e o outro faz a mesma coisa: ele acha que, para
existir, deve dobrar o meu desejo, deve se apropriar de mim e me dominar
física e psicologicamente, pela manipulação dos desejos e sentimentos,
pela ideologia, por um série de manipulações sociais, amorosas etc.
Pense no caso da violência policial: é a força física pura e simples. Um
policial não é capaz de tomar uma decisão em que ele enfrentaria uma
ordem recebida, dizendo, por exemplo: “Puxa vida, um filho meu poderia
estar entre os manifestantes…”. Mas isso não acontece só porque ele
recebeu uma ordem. É porque essa ordem constitui o modo como ele é,
pensa e opera. Ele encarna essa ordem, é o portador dela e opera em um
contexto de pura paixão. Essa é uma análise puramente psicológica. É
preciso pensar também em termos sociais: o policial encarna a repressão;
ele a realiza em nome da ordem, da paz e da segurança.
Psicologicamente, ele não é capaz de deliberar sobre como poderia agir
diante de manifestantes que gritam por direitos e denunciam privilégios,
porque ele é, naquele instante, pura paixão. Social e
institucionalmente, ele só existe como policial porque recebe, cumpre ou
dá uma ordem. A polícia existe, então, como instituição social
garantidora de determinados privilégios de classe. Trata-se do embate
entre o direito e o privilégio. Esse embate se realiza, na sociedade
brasileira, por meio da violência.





CULT: A senhora diria que o movimento de ocupação das escolas foi um bom uso político das paixões?


Marilena: Um excelente uso…





CULT:  E que diferença a senhora vê entre esse movimento e o das  ruas de 2013?


Marilena: Em 2013, o movimento foi algo inesperado.
Pouco antes das manifestações, eu estava dando um seminário na faculdade
e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “É o movimento do Passe
Livre, que está convocando uma reunião”. Havia só uns 30, 40 gatos
pingados. Até que eles puseram nas redes sociais e aconteceu aquela
movimentação toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um
evento com a motivação mais diversa possível. Não estou dizendo que era
um movimento totalmente despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo
determinado pelo grupo do Passe Livre, ao qual se juntaram outras
formas de descontentamento. Foi estarrecedor ver que, na segunda
manifestação, quando a juventude começou a comemorar, levando bandeiras
do PT, do PSTU, do PSol, do movimento dos sem teto, apareceram jovens
embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando e ensaguentando
os manifestantes de esquerda. Assim, em lugar do conflito democrático,
passou-se ao combate violento e à agressão ao adversário. Mas algo
curioso aconteceu: construiu-se um sentido político para toda aquela
movimentação. A própria mídia, que falava dos “vândalos” das primeiras
manifestações, depois passou a falar de “manifestantes”. Houve uma
construção política de uma manifestação que não existiu realmente como
algo político. Ninguém prestou atenção nisso! Eu procurei falar do
assunto e fui violentamente agredida, mesmo pela esquerda. Disseram que
eu não tinha entendido o momento histórico. Mas fizeram mais: pegaram a
afirmação que eu fiz sobre o caráter fascista dos jovens vestidos com a
bandeira e disseram que eu havia considerado todas as manifestações como
fascistas. Na época das eleições, o Fernando Gabeira chegou a escrever
um artigo de uma página inteira no jornal O Globo contra mim,
afirmando que, na minha opinião, a presença do povo na rua era fascismo.
O que eu tinha dito era: houve um momento fascista nessas manifestações
e ninguém está prestando atenção nisso. Aí, quando começaram os
panelaços de 2015, ficou evidente o que eu queria dizer. O que veio a
seguir? Veio a demanda de retorno da ditadura, a presença da TFP [Grupo
de extrema direita intitulado Tradição, Família e Propriedade] e a
afirmação da pauta conservadora dos 3Bs.





CULT: Na verdade, em 2013, a senhora previu, em entrevista à
CULT, que no Brasil iriam acontecer panelaços parecidos com os da
Argentina.



Marilena: Fui a única. Eu não sei por que as pessoas
– algumas delas inclusive feridas por 1964 e 1968 muito mais do que eu,
como o próprio Gabeira – não se deram conta do que estava vindo. Não
sei se eu conseguia ver porque presto muita atenção no Brasil como uma
sociedade violenta e autoritária… Não sei se é por isso, mas eu fiquei
muito surpresa ao perceber que muita gente de esquerda não percebia o
que estava se montando e que junho de 2013 não era maio de 1968. Maio de
1968 foi a ocupação das escolas agora. Isso foi maio de 68.





CULT: Por quê?


Marilena: Porque, no caso da ocupação das escolas,
há, em primeiro lugar, um movimento de inclusão e ampliação. A marca dos
movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação. Em
segundo lugar, pelo fato de que ele foi se dando à maneira do que, no
meu tempo, se conhecia como “greve pipoca”. Em uma fábrica, por exemplo,
às seis horas da manhã, um setor para por 40 minutos. Durante o tempo
em que ele parou, outros três ou quatro setores não conseguiram
funcionar. Então, aquele primeiro setor volta a funcionar, mas, daí, em
outra ponta, outro setor para por 40 minutos. Tudo o que está em volta
não funciona. Assim, sobretudo quando a greve era proibida, ia pipocando
paralisação, de modo que as instituições (uma fábrica, uma escola
etc.), mesmo sem parar, ficavam inteirinhas paralisadas. Nos lugares
estratégicos pipocava a paralisação. Foi assim que a ocupação das
escolas seguiu o princípio da greve pipoca. Quando os administradores da
educação achavam que iam resolver a ocupação de uma escola, começava na
outra; quando eles iam resolver nessa outra, começava em outra. Ou
seja, ela foi pipocando até o instante em que parou tudo.


Além disso, a maior diferença entre a ocupação das escolas e o
movimento de 2013 é que a paralisação aconteceu no interior de uma
instituição pública e social para a garantia do caráter público dessa
instituição. Não foi um evento em favor disso ou daquilo; foi uma ação
coletiva de afirmação de princípios políticos e sociais. Os dois grandes
princípios foram, primeiro, o princípio republicano da educação – a
educação é pública; segundo, o princípio democrático da educação – a
educação é um direito. A ação dos estudantes e professores foi tão
significativa porque eles disseram: “O espaço da escola é nosso. Somos
nós, alunos e professores, que somos a escola”. Então, foi a “integração
de posse” das escolas pelos alunos e professores. É gigantesco o fato
de alguém no Brasil pensar que algo público é nosso! É diferente das
ocupações de reitorias, em que os estudantes dizem: “Nós somos contra
isso que o reitor fez…” Agora, os estudantes disseram: “Esse lugar, essa
instituição é pública; ela é nossa e não vamos sair daqui”. Eles se
posicionaram contra algo típico do neoliberalismo – posto em prática,
sob certos aspectos, no decorrer da Ditadura e, depois, explicitamente
nos governos Fernando Henrique Cardoso: a ideia de que um direito social
e político é aquilo que pode ser transformado em serviço e comprado no
mercado. As pessoas falam das privatizações como se elas fossem apenas a
da Vale e das grandes empresas… É isso também, mas o núcleo da
privatização está em outro lugar, está na transformação de um direito
social em serviço que se compra e vende no mercado. Isso foi feito com a
educação, com a saúde, com o transporte, com todos os direitos sociais.
E, em São Paulo, com grandes baterias, isso foi feito. Os estudantes
mostraram que a escola pública não é mercadoria; fizeram uma ação
republicana e democrática de um alcance incrível. Eu só vi algo
parecido, em termos de configuração social no Brasil, nas greves de 1978
e 1979 no ABC. Por quê? Não pela repercussão, mas pelo sentido que elas
tiveram.


Pensem no fato de que, durante as ocupações, só foram chamados para
dar entrevistas cientistas políticos, sociólogos, historiadores, mas
nenhum professor ou estudante das escolas ocupadas! Nenhum professor ou
estudante foi considerado capaz de explicar o que se passava. Só se
ouviu gente que estava fora das salas de aula e que vinha explicar
falando disparates. Quando a mídia entrevistava algum estudante, só
perguntava coisas do tipo: “O que você sente? Do que você gosta e não
gosta? O que você quer?”. Ou seja, ficava no nível puro e simples do
sentimento, não do pensamento. Apesar disso, a palavra deles chegou à
sociedade por outras vias; e isso mostra o tamanho da ação que eles
realizaram. Houve uma solidariedade que há muitos e muitos anos não se
via no estado de São Paulo inteiro. Por fim, as ocupações deixaram claro
o motivo de fechar as escolas. Em um país como o nosso, não se fecha
escola; se abre. Mas o governador de São Paulo queria os terrenos para
uma exploração imobiliária gigantesca. E para fazer o quê? Para fazer
fundo de campanha. É claro que agora o Geraldo Alckmin vai tentar
fragmentar tudo e implantar devagarzinho o seu projeto. Hoje essa
escola, amanhã aquela. Não sei se ele vai conseguir, mas vai tentar.
Como o Ensino Fundamental é praticamente todo municipal, o Ensino Médio é
estadual e, de um modo geral, o Ensino Universitário é responsabilidade
federal, essas instâncias operam de modo fragmentado; e isso permite
tentativas de reestruturação como as de São Paulo e de Goiás. De todo
modo, os estudantes revelaram que a ideia de fechar uma escola não
significava fechar uma escola, significava vender um terreno. Portanto,
eles denunciaram o caráter corrupto da suposta política de
reestruturação escolar.





“A
ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles
disseram: ‘O espaço da escola é nosso. Somos nós, alunos e professores,
que somos a escola’. ”



CULT: Como a senhora vê o atual momento da economia brasileira?


Marilena: No primeiro ministério montado pela
presidente Dilma, enfatizou-se, por um lado, a crise internacional em
que o elemento financeiro é decisivo, e, por outro, o fato de haver, no
Brasil, uma disputa entre a indústria, o comércio e o setor agrário. A
Dilma pôs representantes desses setores no governo e deu a eles a
responsabilidade de resolver o conflito. Um banqueiro junto com o
agronegócio. Eles não resolveram. Não sei se a presidente foi
maquiaveliana, mas ela parecia prever que eles fracassariam e que o
fracasso mostraria para onde o barco deve ir. Então, o que ela está
fazendo agora? Ao chamar o principal assessor do Guido Mantega, ela
sinaliza claramente que vai retomar a política de desenvolvimento e
crescimento econômico, a começar pelo aumento do salário mínimo.


É claro que há uma crise internacional gigantesca e que vai pegar os
membros do BRIC. Já pegou a China, está pegando a Índia; a situação vai
complicar. Mas, de todo modo, a opção agora é a do desenvolvimento. Sem
desenvolvimento e crescimento não se faz, efetivamente, a política dos
programas sociais. Se não há mudança no mercado de trabalho com aumento
do emprego e da escolaridade, a manutenção dos programas sociais vira
assistência.





CULT: Como a senhora entende a crítica da classe média alta e
de alguns economistas que afirmam ser o Brasil um país protecionista e
que faz pouco investimento?  



Marilena: O grito contra o protecionismo é o grito
da direita. São os republicanos nos EUA, o Le Pen na França, o pessoal
da Alemanha. O que eles entendem por fim do protecionismo? Um “liberou
geral”, um capitalismo “adulto”. A ideia de que o Estado intervenha é o
que eles chamam de protecionismo. Mas se o Estado não limitar a ação do
capital, cai-se na barbárie. Com relação ao investimento, a gente sabe
que o Estado brasileiro investe. Há dados inacreditáveis. Na verdade,
não são inacreditáveis se conhecermos bem a burguesia brasileira. Vejam:
o BNDES liberou todos os recursos possíveis para os empresários
brasileiros, mas eles não investiram; eles puseram tudo nos bancos, nas
ilhas Cayman, em Miami, onde quiseram. Em vez de investir no país, o
dinheiro do BNDES foi parar no setor financeiro fora do Brasil. E daí se
diz que o país não investe! Eu adoro a burguesia brasileira. Quando ela
disse “quero café”, foi ótimo. No mundo inteiro, quem vai plantar café
constrói estrada de ferro para levar o café até os pontos de
distribuição. Aqui no Brasil, porém, é o Estado que tem de construir
estradas de ferro. A burguesia só plantava o café. Se ela precisa de
porto, no mundo inteiro ela constrói portos. Aqui não. É o Estado que
tem de construir o porto para a burguesia mandar o café. A burguesia
quer industrializar, mas é o Estado que tem de fornecer eletricidade. A
burguesia brasileira mama nas tetas do Estado desde que ela nasceu. E
tem a ousadia de se colocar contra os programas sociais, quando ela
depena o Estado sistematicamente.





CULT: Recentemente, a senhora afirmou que o Bolsa Família fez
pelas mulheres o que seis décadas de feminismo no mundo não conseguiu…



Marilena: Esses dados estão consagrados em um livro feito pela Walquíria Leão Rego sobre o Bolsa Família (Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania,
em coautoria com Alessandro Pinzani, Editora da UNESP). O que ela
mostrou? Primeira coisa: como o dinheiro vai para as mulheres, elas
foram transformadas em chefes de família. Na tradição brasileira, o
dinheiro costuma ir para o homem, e só uma parte vai para a família; a
outra parte vai para os gastos pessoais dele. Com o Bolsa Família,
quebra-se o monopólio masculino sobre a administração da casa. Em
segundo lugar, as mulheres passaram a cuidar mais de si mesmas. Juntando
o dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo, elas
fizeram diminuir o número de doenças femininas. Finalmente, elas têm
participado mais de atividades públicas, filiaram-se a movimentos
sociais e criaram cooperativas. Há uma quantidade enorme de cooperativas
criadas pelas mulheres com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa
Família.





CULT: Qual seria o papel do Estado na promoção da igualdade e dos direitos das mulheres?


Marilena: A função do Estado não é a de promover.
Ele tem de reconhecer os direitos das mulheres e decretá-los. Sua função
é consignar na lei, institucionalmente, aquilo que os movimentos das
mulheres exigem e produzem, mas essa ação é social. A política se faz
pela sociedade. O Estado brasileiro precisa parar de agir como se não
houvesse uma sociedade. A ele cabe salvaguardar tudo o que há de
republicano e democrático nas ações políticas da própria sociedade. Mais
do que promover, o Estado tem de garantir.

O Datafolha e a profecia auto-realizável

O Datafolha e a profecia auto-realizável - TIJOLAÇO 



O Datafolha e a profecia auto-realizável

riotiras


Nada surpreende na pesquisa  Datafolha – parcialmente
divulgada à tardinha e certamente a manchete do jornal, amanhã – senão o
fato de que seja muito interessante que sejam só 55% dos entrevistados
que acham que Lula ofereceu “algum” benefício às empresas que teriam
feito obras no sítio de amigos que usa como refúgio em finais de semana.


Porque, afinal, é isso o que todo o país está, há dois meses,  vendo,
ouvindo e lendo nas televisões, rádios, jornais e revistas. Em todos os
meios de comunicação, exceto no pequeno mundinho dos blogs
progressistas.


E como o “acusado” não reage, a não ser timidamente, por meio de seus
advogados, nem mesmo o pequeno contraditório possível nos meios de
comunicação se faz.


É como se passasse um carro de som na sua rua, acusando você disto e daquilo e você permanecesse quieto, dois meses.


É coisa que deixaria com a pulga atrás da orelha o seu vizinho do lado, que dirá o lá do final da rua.


Portanto, tudo para somar, em cima de quem já tem os problemas
causados pelo desgaste abissal do Governo Dilma uma crise de
honorabilidade pessoal.


Em razão de quê?


Bastaria uma pergunta na pesquisa para que ela ruísse completamente:


– Acha que Lula foi beneficiado por construtoras no caso do sítio em Atibaia?
– Sim, e em troca ele beneficiou estas empresas.  
– Beneficiou, como? O que ele fez para elas?
Alguém duvida que o silêncio seria sepulcral? Aliás, é uma pergunta
que bem poderia ser feita aos promotores, aos policiais e ao próprio Dr.
Sérgio Moro e ficaria sem resposta ou seria respondida com uma conversa
de “Rolando Lero” cheia de “em tese”, “poderia”, “estamos
investigando”, etc, etc…


É um caso inédito na história do Direito: uma investigação sobre alguém por ter recebido algo em troca de…ah, não sei.


O guardinha recebe R$ 50 para não te multar por ter parado com duas
rodas na calçada. O fiscal da feira pede R$20 para deixar você montar
uma banquinha de limão ensacado em meio aos feirantes, até os
megaempresários da Zelotes pagam uma “baba” a conselheiros para não se
consumarem as autuações milionárias que suas empresas sofreram.


Mas Lula ganhou um churrasqueira, um “puxadinho”, uma reforma no
telhado de um sítio que nem lhe pertence em troca de um “não sei”.


Depois da grotesca deformação da tal “Teoria do Domínio do Fato”,
evoluímos para a “Teoria do Domínio da Hipótese”, isto é: “não sei o que
é, mas alguma coisa deve ter feito”.


Se Lula pretendesse se servir do seu prestígio, não bastaria ter feito uma ou duas palestras que cobrissem a obra?


Se quisesse agir de forma desonesta, não seria mais simples pedir que
as empreiteiras entregassem aos donos do sítio um “x” em dinheiro e
estes pagassem todas as obras?


Tem pouca ou nenhuma importância no estado de histeria policial-judicial em que nos encontramos.


Os carros de som passam em sua rua, nas ruas de todos e,
infelizmente, tirando uns guris (já meio encanecidos, é verdade),
ninguém aparece para tomar satisfações.


Eu compreendia a ironia da frase “lutamos como nunca, perdemos como sempre”.


Agora vou ter de tentar entender o “nunca lutamos, mas esperamos vencer”.


Lenio Streck: pacote retroage mais de mil anos

Lenio Streck: pacote retroage mais de mil anos - Opinião dos colunistas de ZH - ZH



Lenio Streck: pacote retroage mais de mil anos

Advogado e professor, doutor em Direito e ex-procurador de Justiça

Por: Lenio Streck
O
pacote contra a corrupção que o Ministério Público Federal apresenta dá
o que pensar. Por que deixaram de fora a legalização da tortura?
Afinal, ela é eficiente. Os procuradores se empolgaram. Teologia
juspunitiva. O "pacote" é tão cheio de inconstitucionalidades, que,
muitas delas, o porteiro do Supremo Tribunal invalida. Até quando
acertam propondo medidas contra o caixa 2, multa para bancos e
recuperação de ativos produtos de crimes, acabam colocando parágrafos
que violam direitos.

Mas meu papel, aqui, é de jurista e não de
torcedor. Ninguém é a favor da corrupção, a não ser o corrupto, é claro.
Um país não progride com impunidade. Mas também não progride com
supressão de garantias. Ah, nos EUA é assim. Comparação falsa. Sistemas
diferentes. Lá erros dão filme. Atire a primeira pedra quem, em
Pindorama, não tenha sido vítima (ou não saiba) de algum erro
judiciário. E na Alemanha? Não, não é assim.

O pacote propõe uma
"eugenia cívica". O agente público deve se submeter a testes que apontem
se é propenso a cometer crimes. Como? Já existe tal ciência? Mais: e se
o "teste" for positivo, será meio idôneo de prova, ainda que o acusado a
tenha produzido contra si mesmo? E será aplicado nos concursos de juiz e
procurador? E na indicação de ministros? Não são agentes públicos?

O
pacote retroage mais de mil anos ao restringir a possibilidade de
pedido liminar em habeas corpus. Mais: o pensamento mágico — corrupção
terá pena maior que homicídio. Código Penal reduzido a pó. O pacote
também cria o "informante confidencial", que só vale para corrupção. E
em homicídio, não?

Faltam páginas para elencar os erros. A maioria
das medidas é inconstitucional. Assalto não é crime hediondo, mas a
gorjeta para o guarda poderá ser. Se o pai paga dívida de filho servidor
público endividado, pode ser processado porque é um terceiro
enriquecendo ilicitamente o rebento. O que mais dizer? E olha que
coloquei só 10% das ilicitudes propostas pelo MPF. E nem falei das
provas ilícitas.

Em 2011, WikiLeaks já revelava os planos de Serra de entregar o Pré-sal - Portal Fórum

Em 2011, WikiLeaks já revelava os planos de Serra de entregar o Pré-sal - Portal Fórum










Em 2011, WikiLeaks já revelava os planos de Serra de entregar o Pré-sal














Relembre o texto da rede de Julian Assange que revela
telegramas do consulado norte-americano no Brasil falando sobre como
petroleiras estrangeiras estavam preocupadas com a lei de partilha do
pré-sal, que dava à Petrobras a condição de operadora única da reserva, e
como contavam com políticos e grupos empresariais brasileiros para
reverter a situação, como José Serra (PSDB) e a Fiesp



Por WikiLeaks

Brazil – Nos bastidores, o lobby pelo pré-sal


“A indústria de petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal?”.
Este é o titulo de um extenso telegrama enviado pelo consulado americano
no Rio de Janeiro a Washington em 2 de dezembro do ano passado.


Como ele, outros cinco telegramas a serem publicados hoje pelo
WikiLeaks mostram como a missão americana no Brasil tem acompanhado
desde os primeiros rumores até a elaboração das regras para a exploração
do pré-sal – e como fazem lobby pelos interesses das petroleiras.


Os documento revelam a insatisfação das pretroleiras com a lei de
exploração aprovada pelo Congresso – em especial, com o fato de que a
Petrobrás será a única operadora – e como elas atuaram fortemente no
Senado para mudar a lei.


“Eles são os profissionais e nós somos os amadores”, teria afirmado
Patrícia Padral, diretora da americana Chevron no Brasil, sobre a lei
proposta pelo governo . Segundo ela, o tucano José Serra teria prometido
mudar as regras se fosse eleito presidente.


Partilha


Pouco depois das primeiras propostas para a regulação do pré-sal, o
consulado do Rio de Janeiro enviou um telegrama confidencial reunindo as
impressões de executivos das petroleiras.


O telegrama de 27 de agosto de 2009 mostra que a exclusividade da
Petrobrás na exploração é vista como um “anátema” pela indústria.


É que, para o pré-sal, o governo brasileiro mudou o sistema de
exploração. As exploradoras não terão, como em outros locais, a
concessão dos campos de petroleo, sendo “donas” do petróleo por um
deteminado tempo. No pré-sal elas terão que seguir um modelo de
partilha, entregando pelo menos 30% à União. Além disso, a Petrobrás
será a operadora exclusiva.


Para a diretora de relações internacionais da Exxon Mobile, Carla
Lacerda, a Petrobrás terá todo controle sobre a compra de equipamentos,
tecnologia e a contratação de pessoal, o que poderia prejudicar os
fornecedores americanos.


A diretora de relações governamentais da Chevron, Patrícia Padral,
vai mais longe, acusando o governo de fazer uso “político” do modelo.


Outra decisão bastante criticada é a criação da estatal PetroSal para administrar as novas reservas.


Fernando José Cunha, diretor-geral da Petrobrás para África, Ásia, e
Eurásia, chega a dizer ao representante econômico do consulado que a
nova empresa iria acabar minando recursos da Petrobrás. O único fim,
para ele, seria político: “O PMDB precisa da sua própria empresa”.


Mesmo com tanta reclamação, o telegrama deixa claro que as empresas americanas querem ficar no Brasil para explorar o pré-sal.


Para a Exxon Mobile, o mercado brasileiro é atraente em especial
considerando o acesso cada vez mais limitado às reservas no mundo todo.


“As regras sempre podem mudar depois”, teria afirmado Patrícia Padral, da Chevron.


Combatendo a lei


Essa mesma a postura teria sido transmitida pelo pré-candidtao do
PSDB a presidência José Serra, segundo outro telegrama enviado a
Washigton em 2 de dezembro de 2009.


O telegrama intitulado “A indústria de petróleo vai conseguir
combater a lei do pré-sal?” detalha a estratégia de lobby adotada pela
indústria no Congresso.


Uma das maiores preocupações dos americanos era que o modelo
favorecesse a competição chinesa, já que a empresa estatal da China,
poderia oferecer mais lucros ao governo brasileiro.


Patrícia Padral teria reclamado da apatia da oposição: “O PSDB não apareceu neste debate”.


Segundo ela, José Serra se opunha à lei, mas não demonstrava “senso
de urgência”. “Deixa esses caras (do PT) fazerem o que eles quiserem. As
rodadas de licitações não vão acontecer, e aí nós vamos mostrar a todos
que o modelo antigo funcionava… E nós mudaremos de volta”, teria dito o
pré-candidato.


O jeito, segundo Padral, era se resignar. “Eles são os profissionais e
nós somos os amadores”, teria dito sobre o assessor da presidência
Marco Aurelio Garcia e o secretário de comunicação Franklin Martins,
grandes articuladores da legislação.


“Com a indústria resignada com a aprovação da lei na Câmara dos
Deputados, a estratégia agora é recutar novos parceiros para trabalhar
no Senado, buscando aprovar emendas essenciais na lei, assim como
empurrar a decisão para depois das eleições de outubro”, conclui o
telegrama do consulado.


Entre os parceiros, o OGX, do empresário Eike Batista, a Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a Confederação Naiconal
das Indústrias (CNI).


“Lacerda, da Exxon, disse que a indústria planeja fazer um ‘marcação
cerrada’ no Senado, mas, em todos os casos, a Exxon também iria
trabalhar por conta própria para fazer lobby”.


Já a Chevron afirmou que o futuro embaixador, Thomas Shannon, poderia
ter grande influência nesse debate – e pressionou pela confirmação do
seu nome no Congresso americano.


“As empresas vão ter que ser cuidadosas”, conclui o documento.
“Diversos contatos no Congresso (brasileiro) avaliam que, ao falar mais
abertamente sobre o assunto, as empresas de petróleo estrangeiras correm
o risco de galvanizar o sentimento nacionalista sobre o tema e
prejudicar a sua causa”.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

As lições de Umberto Eco para identificar o neofascismo

As lições de Umberto Eco para identificar o neofascismo



As lições de Umberto Eco para identificar o neofascismo

Para o intelectual, filósofo e romancista italiano, o fascismo eterno ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis
Enviado por Sérgio T.
Do Opera Mundi
 
Intelectual italiano, romancista e
filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da Rosa" morreu em
19 de fevereiro, aos 84 anos; 'O fascismo eterno ainda está ao nosso
redor, às vezes em trajes civis', diz Eco
 
A Revista Samuel reproduz o texto de
Umberto Eco Ur-Fascismo, produzido originalmente para uma conferência
proferida na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa celebração da
liberação da Europa:
'O Fascismo Eterno'
Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um
concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas
italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha
trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto. 
Depois, em 1943, descobri o significado
da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu discurso.
Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros anos
entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e
aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício. 
Em abril de 1945, a Resistência tomou
Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que
eu vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de
gente que cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a
resistência na área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri,
envolveu-se com os partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna
nos primeiros confrontos. Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em
muletas, pálido; tentou acalmar a multidão com uma mão. Eu estava ali
esperando seu discurso, já que toda a minha infância tinha sido marcada
pelos grandes discursos históricos de Mussolini, cujos passos mais
significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo falo com voz
rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de tantos
sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela
liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os
membros da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto,
festivamente. Nós, rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos,
preciosos objetos de coleção, mas eu tinha aprendido então que
liberdade de palavra significa também liberdade da retórica. 
Alguns dias depois vi os primeiros
soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque que
encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick
Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro
bom.
Um dos oficiais (o major ou capitão
Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de
escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores
amontoavam-se em torno ao capitão Muddy, falando um francês
aproximativo. O capitão Muddy tinha uma boa educação superior e conhecia
um pouco de francês. Assim, minha primeira imagem dos libertadores
norte-americanos, depois de tantos caras-pálidas de camisa negra, era a
de um negro culto em uniforme cáqui que dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne…” Infelizmente,
faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro
chiclete e comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o
chiclete em um copo d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte. 
Em maio, ouvimos dizer que a guerra
tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a
guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses
seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local,
mas Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”, “armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”.
Vi as primeiras fotografias do Holocausto e assim compreendi seu
significado antes mesmo de conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido
liberados. 
Hoje na Itália existem algumas pessoas
que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no
curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante:
compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da
Resistência. Era motivo de orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos
esperado passivamente pela liberação. Penso que, também para os jovens
norte-americanos que derramaram seu sangue pela nossa liberdade, não era
irrelevante saber que atrás das linhas havia europeus que já estavam
pagando seu débito. 
Hoje na Itália tem gente que diz que a
Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a
Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um
papel primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com
bandeiras de diversas cores. 
Grudado ao rádio, passava as noites — as
janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em torno
ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio
Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e
poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior
parte eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que
Franchi era o líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da
Itália do Norte, um homem de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu
herói. Franchi (cujo verdadeiro nome era Edgardo Sogno) era um
monarquista tão anticomunista que, depois da guerra, se uniu a um grupo
de extrema direita e foi até acusado de ter participado de um golpe de
Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o sonho da minha
infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das mais
diversas cores. 
Hoje na Itália tem gente que diz que a
guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos
agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos
terríveis deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a
reconciliação significa compaixão e respeito por todos aqueles que
lutaram sua guerra de boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até
admitir que Eichmann acreditava sinceramente em sua missão, mas não
posso dizer: “Ok, volte e faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram. 
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos
totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial,
podemos dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles
retornassem sob a mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se
o fascismo de Mussolini baseava-se na ideia de um líder carismático, no
corporativismo, na utopia do “destino fatal de Roma”, em uma vontade
imperialista de conquistar novas terras, em um nacionalismo exacerbado,
no ideal de uma nação inteira arregimentada sob a camisa negra, na
recusa da democracia parlamentar, no anti-semitismo, então não tenho
dificuldade para admitir que a Aliança Nacional, nascida do MSI
(Movimento Social e Italiano), é certamente um partido de direita, mas
tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas razões, mesmo
preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali na
Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma
original, esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação
inteira. 
Todavia, embora os regimes políticos
possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua
legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo
de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de
instintos obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro
fantasma que ronda a Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos. 
Portanto, permitam-me perguntar por que
não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram
definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem "Por quem os sinos dobram",
de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan identifica seus inimigos
com os fascistas, mesmo quando está pensando nos falangistas espanhóis. 
Permitam-me passar a palavra a Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23 de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os
norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram
chamados de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater
Hitler nos anos 1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas
combater Franco cedo demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma
expressão como “fascist pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é o manifesto completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão
oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e
ateu. Se como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer
ato individual ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo
eram regimes totalitários. 
Wikicommons

Hitler e Mussolini em Munique, em 1940
O fascismo foi certamente uma ditadura,
mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura quanto
pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se
pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O
artigo sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia
Treccani foi escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni
Gentile, mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético
absoluto”, que Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não
tinha qualquer filosofia: tinha apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para depois
firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que
benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais,
segundo uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali
mesmo para provar sua existência. Deus estava, evidentemente,
distraído. Nos anos seguintes, em seus discursos, Mussolini citava
sempre o nome de Deus e não desdenhava o epíteto: “homem da
Providência”. Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira
ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos
os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no
regime de Mussolini. 
O fascismo italiano foi o primeiro a
criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se
— conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace.
Foi somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na
Inglaterra, com Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia,
Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal,
Noruega e até na América do Sul, para não falar da Alemanha. Foi o
fascismo italiano que convenceu muitos líderes liberais europeus de que o
novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes
de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça
comunista. 
Todavia, a prioridade histórica não me
parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra
“fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para
movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo
continha em si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por
assim dizer, em “estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não
possuía nenhuma quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era
um totalitarismo fuzzy[1].
O fascismo não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de
diversas ideais políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É
possível conceber um movimento totalitário que consiga juntar monarquia e
revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios
concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o
livre mercado?
O partido fascista nasceu proclamando
sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de
terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução. O
fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos
proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse
as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”.
Mas quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois
meses depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república
“social”, reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de
acentuações quase jacobinas. 
Existiu apenas uma arquitetura nazista,
apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não
havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se
Lamarck tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário,
existiram certamente arquitetos fascistas, mas ao lado de seus
pseudocoliseus surgiram também os novos edifícios inspirados no moderno
racionalismo de Gropius. 
Não houve um Zdanov fascista. Na Itália
existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era
controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que
encorajava uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados
Ascoltando all radio un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal
Fascismo); e o Prêmio Bergamo, patrocinado por um fascista culto e
razoavelmente tolerante como Bottai, que protegia a arte pela arte e as
novas experiências da arte de vanguarda que, na Alemanha, haviam sido
banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao Kitsch
nibelúngico, o único aceito. 
O poeta nacional era D'Annunzio, um
dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um
pelotão de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu
nacionalismo e seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses
de decadentismo francês. 
Tomemos o futurismo. Deveria ter sido
considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o
cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram
nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália
na Primeira Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o
risco e, de certa maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto
fascista da juventude. Quando o fascismo identificou-se com o império
romano e redescobriu as tradições rurais, Marinetti (que proclamava que
um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia e queria
inclusive matar o luar) foi nomeado membro da Accademia d'Italia, que
tratava o luar com grande respeito. 
Muitos dos futuros membros da
Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista,
foram educados no GUF, a associação fascista dos estudantes
universitários, que deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses
clubes tornaram-se uma espécie de caldeirão intelectual em que
circulavam novas ideias sem nenhum controle ideológico real, não tanto
porque os homens de partido fossem tolerantes, mas porque poucos entre
eles possuíam os instrumentos intelectuais para controlá-los. 
No curso daqueles vinte anos, a poesia
dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a
estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da
torre de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário
do culto fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta
distensão evidente, embora socialmente imperceptível, porque não
prestava atenção suficiente ao um jargão tão obscuro. 
O que não significa que o fascismo
italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte,
Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de
imprensa suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos
confinados em ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e
o executivo (que controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava
diretamente as novas leis, entre as quais a da defesa da raça (apoio
formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi não era
devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e
ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão
estruturada. O fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de
vista emocional era firmemente articulado a alguns arquétipos. 
Chegamos agora ao segundo ponto de minha
tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o
falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente
pagão, politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se
jogar com o fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda.
Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein,
acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo,
pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade
particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma
série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de
família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série de
grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo
2, pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida
em que têm dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante
a 1 (têm em comum o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4,
obviamente semelhante a 3 e a 2, mas sem nenhuma característica em comum
com 1. Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes
similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade
ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo
porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e
ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo
o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e
teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um
anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra
Pound. Acrescentem o culto da mitologia céltica e o misticismo do Graal
(completamente estranho ao fascismo oficial) e teremos um dos mais
respeitados gurus fascistas, Julios Evola. 


 



A despeito dessa confusão,
considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo
que eu gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais
características não podem ser reunidas em um sistema; muitas se
contradizem entre si e são típicas de outras formas de despotismo ou
fanatismo. Mas é suficiente que uma delas se apresente para fazer com
que se forme uma nebulosa fascista. 
1.   A
primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O
tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do
pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas
nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo
grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões
diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a
sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa
revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então
esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos
celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa
nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente,
como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças
ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as
mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer
coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem,
alegoricamente, a alguma verdade primitiva.
Como consequência, não
pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por
todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É
suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para
encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista
nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais
importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola,
misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o
Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua
abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu
ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de
sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias
americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo
Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de
juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O
tradicionalismo implica a recusa da modernidade. Tanto os fascistas
como os nazistas adoravam a tecnologia, enquanto os tradicionalistas em
geral recusam a tecnologia como negação dos valores espirituais
tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse orgulho de seus sucessos
industriais, seu elogio da modernidade era apenas o aspecto superficial
de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und Boden).
A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida
capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de
1789 (ou 1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos
como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode
ser definido como “irracionalismo”. 
3. O
irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela
em si, portanto, deve ser realizada antes de e sem nenhuma reflexão.
Pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na
medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração
atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a
pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos intelectuais”,
“Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um ninho de
comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um
sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam
empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência
liberal de abandono dos valores tradicionais. 
4. Nenhuma
forma de sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera
distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a
comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço
dos conhecimentos. Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. 
5. O
desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e
busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença.
O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando
fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por
definição. 
6. O
Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica
por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o
apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise
econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos
sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários”
estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto
exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu
auditório. 
7. Para
os que se vêem privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo
diz que seu único privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um
mesmo país. Esta é a origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que
podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz
da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô, possivelmente
internacional. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais
fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. Mas o complô
tem que vir também do interior: os judeus são, em geral, o melhor
objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e
fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The New World Order, de Pat Robertson. 
8. Os
adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força
do inimigo. Quando eu era criança ensinavam-me que os ingleses eram o
“povo das cinco refeições”: comiam mais frequentemente que os italianos,
pobres mas sóbrios. Os judeus são ricos e ajudam-se uns aos outros
graças a uma rede secreta de mútua assistência. Os adeptos devem,
contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo. Assim,
graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os inimigos são,
ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão
condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes
de avaliar com objetividade a força do inimigo. 
9. Para
o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”.
Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a
vida é uma guerra permanente. Contudo, isso traz consigo um complexo de
Armagedon: a partir do momento em que os inimigos podem e devem ser
derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento
assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica uma
sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da
guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa
contradição. 
10. O
elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária,
enquanto fundamentalmente aristocrática. No curso da história, todos os
elitismos aristocráticos e militaristas implicaram o desprezo pelos
fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar de pregar um “elitismo popular”.
Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do mundo, os membros do
partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se
membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus. O líder,
que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas
conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na
debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um
“dominador”. No momento em que o grupo é organizado hierarquicamente
(segundo um modelo militar), qualquer líder subordinado despreza seus
subalternos e cada um deles despreza, por sua vez, os seus subordinados.
Tudo isso reforça o sentido de elitismo de massa. 
11. Nesta
perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer
mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o
heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao
culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte!” À
gente normal diz-se que a morte é desagradável, mas é preciso
enfrentá-la com dignidade; aos crentes, diz-se que é um modo doloroso de
atingir a felicidade sobrenatural. O herói Ur-Fascista, ao contrário,
aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa para uma vida
heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E sua
impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes
levar os outros à morte. 
12. Como
tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o
Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é
a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma
condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade
à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o
herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus
jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente. 
13. O
Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia,
os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos
só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as
decisões da maioria são acatadas). Para o Ur-Fascismo os indivíduos
enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma
qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. Como
nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o líder
apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os
cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o
papel de povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um
bom exemplo de populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza
Venezia ou do estádio de Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um
populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um
grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz
do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve
opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases
pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”.
De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e
pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em
dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do
povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo. 
14. O
Ur-Fascismo fala a “novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por
Orwell em 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas
certos elementos de Ur-Fascismo são comuns a diversas formas de
ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em
um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os
instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar
prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a
forma inocente de um talk-show popular. 
Depois de indicar os arquétipos
possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho
de 1943 foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo
havia caído e Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe
mandou-me comprar o jornal. Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os
jornais estavam lá, mas os nomes eram diferentes. Além disso, depois de
uma breve olhada nos títulos, percebi que cada jornal dizia coisas
diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma mensagem impressa na primeira
página, assinada por cinco ou seis partidos políticos como Democracia
Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista, Partido de Ação, Partido
Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um partido em todas
as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido Nacional
Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu país,
podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu
era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que
tantos partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim
que eles já existiam como organizações clandestinas. 
A mensagem celebrava o fim da ditadura e
o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de associação
política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era a
primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas
palavras renasci como homem livre ocidental. 
Devemos ficar atentos para que o sentido
dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao
nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós
se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”.
Ai de mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as
vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador
para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do
mundo. Cito ainda as palavras de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a
democracia americana parasse de progredir como uma força viva, buscando
dia e noite melhorar, por meios pacíficos, as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país”
 (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”. 
E permitam-me acabar com uma poesia de Franco Fortini:

Sulla spalletta del ponte
Le teste degli impiccati
Nell'acqua della fonte
La bava degli impiccati
Sul lastrico del mercato
Le unghie dei fucilati
Sull'erba secca del prato
I denti dei fucilati
Mordere l'aria mordere i sassi
La nostra carne non à più d'uomini
Mordere l'aria mordere i sassi
Il nostro cuore non à più d'uomini.
Ma noi s'è letto negli occhi dei morti
E sulla terra faremo libertà
Ma l'hanno stretta i pugni dei morti
La giustizia che si farà.

Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens
Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.

Umberto Eco, O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais,
Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.
 


[1] Usado
atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos
imprecisos, o termo fuzzy poderia ser traduzido como “esfumado”,
“confuso”, “impreciso”, “desfocado”.