domingo, 28 de fevereiro de 2016

Sociedade brasileira: violência e autoritarismo por todos os lados

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Sociedade brasileira: violência e autoritarismo por todos os lados

A filósofa Marilena Chaui analisa a situação política e econômica brasileira e comenta a ocupação das escolas paulistas


por Juvenal Savian Filho e Laís Modelli



Desde o início dos anos 1980, Marilena Chaui tem proposto como chave
de leitura de nosso país a ideia de que a sociedade brasileira é
autoritária e violenta. Em obras como Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, de 1981 (que será reeditado em seus Escritos,
publicados pela Editora Autêntica), a filósofa contraria a imagem de
uma cultura nacional pretensamente formada pelo acolhimento recíproco e
pela cordialidade, revelando estruturas enraizadas de hierarquização e
de sedução pela autoridade.


Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como
individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas
históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e
republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da
cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.


Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui,
extremamente atual para analisar o momento vivido pelo Brasil. Apesar
dos percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas décadas, o
país tenta entrar na Modernidade, que exige necessariamente inclusão
social. Essa mesma inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os
auxílios financeiros para inserção econômica, distribuídos por países
como Alemanha e França às populações mais pobres, são considerados por
lá sinais de desenvolvimento, o Bolsa Família, no Brasil, é chamado de
assistencialismo e de estratégia eleitoreira. Se a ação do Estado no
controle do mercado é vista como necessária em outras partes do mundo,
aqui ela é chamada de “ameaça comunista” e de inchaço da máquina
pública.


O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço
público, porque não agimos como sujeitos, transferindo a
responsabilidade pela construção da cidadania aos aparelhos de governo.
Focamo-nos nas salvações que podem vir do poder e não obrigamos o poder
público a representar de fato todos os setores sociais. O resultado
dessa prática (ou ausência de prática) é o fortalecimento da violência e
do autoritarismo, que atualmente se intensificam nas formas de controle
policial, por exemplo, e a falta de pensamento no jogo político (não
somente de direita, mas também de esquerda!).


Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na entrevista que concedeu à CULT.





CULT: Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?


Marilena Chaui: É uma situação gravíssima. É
gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do
governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita
e protofascista que está tomando conta da pauta política. Quando
examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até
agora, vemos o poder dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É
uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva,
antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados
ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário
protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média
urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas completamente
desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os
direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do
Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos problemas da democracia e do
socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de
extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em
vigência no início dos anos 1960. É uma ameaça de golpe para reverter o
processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e
sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”. Aliás, a atuação de grupos
religiosos é muito preocupante e vai além de uma questão propriamente
política, porque, apesar de se manifestar na representação política, ela
é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas
interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.





CULT: Como se dá essa interiorização e reformulação evangélica da concepção neoliberal?


Marilena: Uma das características do neoliberalismo é
a maneira como ele concebe o indivíduo, que não é entendido nem como
parte de uma classe social, nem como ser em formação que vai se
relacionar com o restante da sociedade. O indivíduo não é pensado nem
como átomo nem como classe, mas como um investimento. Na medida em que
um indivíduo é um investimento, o salário não é entendido como salário,
mas como provento, como renda. Então, o ser humano é programado para ser
rendoso e rentável. A família, a escola e o emprego passam a ter por
função a rentabilidade do indivíduo, porque ele é um investimento. As
igrejas evangélicas se apropriam desse ideário e o desenvolvem por meio
de uma teologia – a teologia da prosperidade, que considera cada
indivíduo justamente como um investimento ou uma empresa. Ele não é um
empresário, mas uma empresa, e, como tal, precisa de uma série de
condições para funcionar. Então as igrejas, além de convencerem a pessoa
de que ela nasceu para vencer na vida e ser rentável, levam a ética
calvinista ao máximo, explorando a crença de que ser rentável é um sinal
de salvação, porque é isso que Deus espera.


Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia.
Elas se espalham no campo da produção e do comércio e empregam todas as
pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as escolheu e que são um
investimento rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da
franquia; depois abrem outra e assim por diante. Há, portanto, um
fenômeno de fortalecimento da ideologia neoliberal e das concepções
conservadoras da classe média por meio da maneira como as igrejas
evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma teologia para isso. Se
você juntar o conservadorismo com o reacionarismo da classe média urbana
e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de toda a
discussão sobre a vida no campo (a reforma agrária), vai entender por
que politicamente se exprime, de modo efetivo, nos grupos do “boi, bala e
Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.


A minha preocupação é, evidentemente, por um lado, denunciar de todas
as maneiras possíveis a tentativa de golpe. Por outro, assegurar que
governos voltados para os direitos sociais (e, desse ponto de vista, com
uma pauta antineoliberal) sejam garantidos. Ao lado disso, a minha
preocupação é com a sociedade, ou seja, com a ideologia. Depois de muito
tempo, lá retorno eu à questão da ideologia. É preciso refletir sobre
como erguer um dique para impedir a entrada avassaladora da ideologia
neoliberal na sua forma teológica. Estamos vivendo um momento que vai
fazer 1964 parecer uma coisa muito simples. 1964 estava inserido na
Guerra Fria, no poderio dos Estados Unidos sobre os países da América
Latina. Por causa do exemplo de Cuba, acreditava-se ser possível uma
revolução socialista. Os componentes eram muito óbvios. Havia uma
clareza na compreensão do momento vivido. Agora não há clareza. Tudo é
muito difuso, muito opaco, obscuro, porque há fundo teológico.





CULT: A senhora acredita em um golpe militar?


Marilena: Está fora de questão.





CULT: O que pode acontecer?


Marilena: Se as coisas continuarem no ritmo em que
estão e se o golpe dos 3B se concretizar, haverá uma efervescência
social enorme, porque todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo
Estado depois da era militar terão esses mesmos direitos cortados. E
haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça urbana, uma situação de
vigilância e intimidação em todas as instituições. Isso provocará
reação, uma resposta social enorme. É um risco que o PSDB não quer
correr porque ele não tem condição de conter essas reações; e esse risco
também não interessa ao PMDB, porque o partido está dividido. Então, no
fim das contas, as forças que poderiam produzir um golpe não têm mais
interesse que ele aconteça, porque a convulsão que ele vai provocar, à
direita e à esquerda, não pode ser controlada nem pelo PSDB e nem pelo
PMDB. Eles não têm quadros e condições institucionais para controlar
convulsões sociais.





CULT: E o que daria as condições de governabilidade nesse possível contexto?


Marilena: Se houver golpe, a prática será a pura
intimidação e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos
Institucionais. Um Ato Institucional poderia concretizar, por meio da
polícia – já que o Exército não se misturará –, a intimidação e a
violência.





CULT: Pensando na materialização da violência, que espaço resta ao diálogo nesse momento condicionado à truculência?


Marilena: Nenhum. Vamos tomar o caso de São Paulo
como exemplo. Há uma coisa muito interessante: quase ninguém se dá conta
de que o estado de São Paulo – o único estado realmente capitalista no
Brasil, já que os outros são semicapitalistas – é governado desde o
final dos anos 1980 por um único partido político. Economicamente, São
Paulo é um estado capitalista, mas politicamente é uma capitania
hereditária. Parece haver um contrassenso entre o conservadorismo
político e o desenvolvimento econômico. Mas é só na aparência que isso é
contraditório, porque o conservadorismo político é a base de
sustentação desse tipo de desenvolvimento capitalista. Vejam o que
acontece com o governador. Há o problema da água, da luz, das escolas,
da saúde – escândalos –, mas nada gruda no Geraldo Alckmin. Escorre.
Isso acontece porque ele representa o tipo de poder político do estado
de São Paulo: forte e autoritário. A juventude sai às ruas e faz uma
manifestação? Polícia nos jovens, bate neles! O pessoal do transporte
sai para se manifestar? Polícia neles, bate neles! Isso é referendado
pela sociedade paulista, não só a paulistana, que está de acordo e
espera que isso seja feito. Esperaríamos uma reação profunda, mas não é o
que acontece. Eu me lembro de ter visto pela televisão estudantes
algemados durante a ocupação das escolas. Eu disse, “Meu Deus, não se
algema estudante!”. Eles não só foram algemados, como isso foi dado pela
mídia como algo natural; e pela sociedade, como uma coisa necessária.


Então nós temos a consagração, da maneira menos retórica possível, da
violência estrutural da sociedade brasileira. Não uma violência
pontual, de modo que possamos falar em “ondas de violência”. Não. Há uma
violência estruturante. É a estruturação violenta de uma sociedade
hierárquica, vertical, oligárquica, conservadora, que defende os
privilégios contra qualquer forma de direitos; é a mesma que dá a
sustentação ideológica e política para a manifestação da violência
governamental. Essa violência governamental é a expressão da violência
não só paulista e paulistana, mas brasileira, e é ela que legitima essas
ações. Se consideramos todo o ideário da burguesia e da alta classe
média brasileira, vemos que qualquer contestação, qualquer revolta é uma
“crise”. A noção de crise está identificada por essa classe com a ideia
de desordem e perigo. Ora, diante da desordem e do perigo, o que é que
se pede? Repressão. Cada vez que há uma luta por direitos contra
privilégios, essa luta é vista como violenta e precisa ser reprimida.
Há, portanto, uma inversão ideológica fantástica no Brasil: a violência é
vista como ordem.





CULT: A senhora ainda acredita na desobediência civil?


Marilena: Eu acho necessária! Outro dia um colega me
disse: “Marilena, você tem que levar em conta que a juventude que tinha
13, 14 anos em 2000 só conhece o PT como governo, não conhece a
história do PT como movimento social e sindical, como presença
contestadora e de desobediência civil no interior da ordem brasileira”.
Isso quer dizer que a figura do PT se apagou e sobrou somente esse
pedaço, esse triste pedaço que é o PT no aparelho de Estado.


Seria preciso lembrar, por exemplo, a criação do CEDEC [Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea]. Existia no Brasil o CEBRAP [Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento], que era dirigido pelo Fernando
Henrique Cardoso. O Francisco Weffort, em 1976, disse que o CEBRAP era
muito economicista e que precisávamos de um centro que pensasse as
questões políticas e sociais. Reunimo-nos, então, o Francisco Weffort, o
José Guilhon de Albuquerque, o José Álvaro Moisés, o Lúcio Kowarick e
eu, criamos o CEDEC. A Sociologia, a Ciência Política e a História
explicavam (e ainda explicam) o Brasil sempre a partir do aparelho de
Estado. A História do Brasil era contada como história das mudanças no
aparelho de Estado e das decisões tomadas pelo Estado. O Estado aparecia
como o sujeito histórico, político e econômico, como se não existisse
uma sociedade nem uma luta de classes. O CEDEC propôs inverter esse
processo e lembrar que a sociedade brasileira existe, com os movimentos
sociais e populares. Era o momento em que surgia o Movimento dos Sem
Terra, o movimento feminista, o movimento sindical. Os movimentos
começavam a se organizar; os sindicatos criam as comissões de fábrica no
ABC e fazem as greves. É desse momento histórico que nasce o PT. Nós
surgimos da ideia de que a história do Brasil e a sociedade brasileira
não são feitas pelo aparelho de Estado e de que o Estado não é o sujeito
social. Existe a luta de classes e é no interior do conflito que se
criam as bases da democracia. O PT se originou, então, de atos de
desobediência civil. Mas isso os jovens não sabem, porque eles só
conhecem o PT como um partido institucionalmente posto, envolvido nas
questões do Estado e governamentais, como se isso desse conta de toda a
história do PT.


É isso que permite entender também por que jovens de esquerda querem
outras opções, em vez de ligar-se ao PT. Proliferam os pequenos partidos
de esquerda porque toda a história social e política ficou encolhida
nesses últimos quinze anos. Isso também explica o quanto nós do PT
ficamos despreparados na hora em que surgiu o atual golpe. Imagine o PT
do qual eu venho, o PT dos anos 1980 e 1990… Ele não teria aceitado
minimamente aquilo que iria desencadear o golpe. Ele nem permitiria que
isso sequer aflorasse. Muito do que estamos vendo em termos de pauta
conservadora na política está ligado ao encolhimento de tudo aquilo que
representa uma pauta de esquerda.





CULT: A esquerda tornou-se obediente?


Marilena: Sim, claro. O PT ficou desarmado no
momento em que teria de tomar uma posição pública e esclarecer as
coisas. Agora, de um lado temos o Eduardo Cunha, com as igrejas
evangélicas, e, do outro, o Alckmin, com a Opus Dei. É demais da conta!
Eu venho de uma tradição em que a grande aliança era sustentada pela
Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Ver os
cristãos perdidos entre os evangélicos e a Opus Dei é demais; é
insuportável para a minha cabeça porque eu vi a outra experiência que o
cristianismo é capaz de ter e que teve na América Latina inteira.





CULT: A senhora interpreta a frase “Meu partido é meu país”,
comum nas manifestações de 2013, como a manifestação de um desejo de
algo novo ou como uma frase conservadora?



Marilena: “Meu partido é meu país” é uma frase
nazista. Ela nasceu na luta contra a social-democracia, sobretudo quando
o nazismo se opõe à República de Weimar e leva a pensar que os partidos
políticos roubam ou tomam para si as ações políticas que caberiam
exclusivamente ao governante. O governante aparece, então, como o chefe.
É dele que deve emanar, transcendentemente, toda a decisão política.
Desse ponto de vista, se os partidos políticos usurpam uma função que
não é deles, é preciso eliminá-los. Daí a ideia de que “meu partido é
meu país”.





CULT: Falando de encolhimento da pauta de esquerda, como a
senhora interpreta a ação de setores do movimento estudantil que
consideram os docentes como inimigos ou representantes do capital? É
delicado tocar nesse ponto, porque não se trata de ser contra o
movimento estudantil. Mas entender a universidade como espaço de tensão
entre estudantes, servidores (técnicos) e docentes não é também uma
forma de violência ou de exclusão de diferenças?



Marilena: Há algo que marca com força a história da
política de esquerda no Brasil: é o fato de que, periodicamente, vindos
da baixa classe média ou da classe média, há grupos que se apropriam do
marxismo e do leninismo e se apresentam como revolucionários. Na
verdade, o encolhimento do espaço público e de tudo o que ele representa
alimenta pequenas formas privatizadas do pensamento de esquerda, dando
origem a pequenos movimentos e pequenos partidos. Não vou nomear nenhum
deles, mas estou apontando para a origem deles, a maneira pela qual eles
privatizam um ideário. Isso significa, em primeiro lugar, fazer com que
esse ideário não apareça como um ideário em expansão, mas como um
ideário de exclusão. Esses partidos e movimentos se fecham sobre si
mesmos, porque a condição de sobrevivência deles está na recusa de
qualquer inclusão e de qualquer ampliação. Eles se mantêm pela sua
pequeneza e pelo fato de que eles excluem tudo o que não se restrinja a
uma pauta mínima produzida por eles mesmos. É uma mescla da vulgata
marxista, da vulgata leninista e do stalinismo puro, simples e cru. É
mais do que uma coisa reacionária, é uma vertente totalitária. E é por
essa maneira totalitária, privatizada e excludente de se organizar que
esses grupos encaram todo o restante como inimigo que precisa ser
destruído. O outro não é inimigo por causa disso ou daquilo. Ele é
inimigo porque simplesmente é outro. É a mesma lógica de Carl Schmitt,
incorporada por grupos pretensamente de esquerda.





“Você
conversa com alguém da direita e vê que ele é capaz de dizer quatro
frases contraditórias e sem perceber as contradições. Você conversa com
alguém da extrema esquerda e vê o totalitarismo que também opera com a
ausência do pensamento. Então nós estamos ensanduichados entre duas
maneiras de recusar o pensamento.”



CULT: A senhora sabe que um curso seu, de leitura rigorosa da Ética de Espinosa, seria hoje considerado, em alguns contextos, como um trabalho burguês, não sabe?


Marilena: Eu sei!





CULT: Então, por que a cultura erudita ou o pensamento é associada por alguns movimentos a uma prática burguesa?


Marilena: O pensamento é associado à prática
burguesa porque esses movimentos operam pela ausência de pensamento.
Estamos em uma situação aterradora: do lado da direita e da esquerda há
ausência de pensamento. Você conversa com alguém da direita e vê que ele
é capaz de dizer quatro frases contraditórias e sem perceber as
contradições. Você conversa com alguém da extrema esquerda e vê o
totalitarismo que também opera com a ausência do pensamento. Então nós
estamos ensanduichados entre duas maneiras de recusar o pensamento. Lá
onde o pensamento estiver se exercendo, ele receberá mil e um nomes, e
como para esse pessoal de esquerda xingar é chamar de burguês, eles
tratam a cultura erudita como coisa de burguês. Mas se você perguntar o
que é a burguesia e o que é o capital, se pedir uma explicação, verá que
eles não sabem muita coisa; apenas repetem um chavão. Nesses grupos há
uma coisa muito parecida com o que acontece nas igrejas evangélicas: uma
teologia e uma lavagem cerebral. É um esvaziamento de qualquer
capacidade de pensamento. Não é por acaso que dos dois lados o exercício
da violência é igual, e vai da violência verbal à física, à exigência
de sangue. Quando o João Grandino Rodas foi reitor da USP e houve a
segunda ocupação da reitoria, nós, professores, fomos negociar com os
alunos e com a própria reitoria, e os alunos finalmente aceitaram
desocupar. Veio então um membro desses pequenos partidos de esquerda e
disse: “Ninguém sai; nós queremos ver sangue”. Por que ele queria ver
sangue? Porque ele achava que ganharia poder pela destruição física do
outro – uma destruição que não é nem política, nem social.





CULT: Há um encolhimento da capacidade humana de refletir e
fazer escolhas ponderadas? Tanto do lado da polícia como do de certos
grupos de esquerda…



Marilena: Eu entendo isso com Espinosa. O que há nos
seres humanos? Há paixões. A maneira como entendemos o mundo, a nós
mesmos e aos outros é dada pela maneira como o mundo e os outros nos
afetam. Eles causam em nós a sensação de perigo ou de aumento da nossa
capacidade de viver. Se tudo o que se passa em mim é produzido pela
maneira como o que está fora age sobre mim, eu sou passiva e todos os
meus sentimentos são apenas paixões: o amor, a esperança, o ciúme, a
misericórdia, a honra, a glória etc. O que eu sinto é pura e
simplesmente uma reação passiva ao que vem de fora.


Ao contrário, se eu tenho força interior para saber que eu posso ser a
causa dos meus sentimentos e, que se sinto raiva de você, não é por sua
causa, mas por aquilo que eu sinto com relação ao que eu penso a seu
respeito, então me vejo como a causa da raiva que sinto por você, em
função do modo como eu penso em você ou percebo você. A partir do
momento em que eu sou capaz de me reconhecer como causa dos meus
sentimentos, eu sou ativa e descubro que não tenho de responsabilizar os
outros por aquilo que se passa em mim. Se eu for passiva, nunca serei
livre; tudo o que eu fizer será determinado pelo que os outros exigem de
mim; e, mesmo que eles não façam nenhuma exigência, eu sinto como uma
exigência. Então só obedeço ao que eu imagino que seja o desejo do
outro. Ao contrário, se é o meu desejo que determina o que eu vou fazer e
como vou fazer, eu sou livre.


Dessa perspectiva, o que é a violência? É aquilo que se passa
inteiramente no campo das paixões, porque é lá que os desejos entram em
conflito. Se eu me entregar a elas, faço o meu desejo valer destruindo o
desejo do outro; e o outro faz a mesma coisa: ele acha que, para
existir, deve dobrar o meu desejo, deve se apropriar de mim e me dominar
física e psicologicamente, pela manipulação dos desejos e sentimentos,
pela ideologia, por um série de manipulações sociais, amorosas etc.
Pense no caso da violência policial: é a força física pura e simples. Um
policial não é capaz de tomar uma decisão em que ele enfrentaria uma
ordem recebida, dizendo, por exemplo: “Puxa vida, um filho meu poderia
estar entre os manifestantes…”. Mas isso não acontece só porque ele
recebeu uma ordem. É porque essa ordem constitui o modo como ele é,
pensa e opera. Ele encarna essa ordem, é o portador dela e opera em um
contexto de pura paixão. Essa é uma análise puramente psicológica. É
preciso pensar também em termos sociais: o policial encarna a repressão;
ele a realiza em nome da ordem, da paz e da segurança.
Psicologicamente, ele não é capaz de deliberar sobre como poderia agir
diante de manifestantes que gritam por direitos e denunciam privilégios,
porque ele é, naquele instante, pura paixão. Social e
institucionalmente, ele só existe como policial porque recebe, cumpre ou
dá uma ordem. A polícia existe, então, como instituição social
garantidora de determinados privilégios de classe. Trata-se do embate
entre o direito e o privilégio. Esse embate se realiza, na sociedade
brasileira, por meio da violência.





CULT: A senhora diria que o movimento de ocupação das escolas foi um bom uso político das paixões?


Marilena: Um excelente uso…





CULT:  E que diferença a senhora vê entre esse movimento e o das  ruas de 2013?


Marilena: Em 2013, o movimento foi algo inesperado.
Pouco antes das manifestações, eu estava dando um seminário na faculdade
e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “É o movimento do Passe
Livre, que está convocando uma reunião”. Havia só uns 30, 40 gatos
pingados. Até que eles puseram nas redes sociais e aconteceu aquela
movimentação toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um
evento com a motivação mais diversa possível. Não estou dizendo que era
um movimento totalmente despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo
determinado pelo grupo do Passe Livre, ao qual se juntaram outras
formas de descontentamento. Foi estarrecedor ver que, na segunda
manifestação, quando a juventude começou a comemorar, levando bandeiras
do PT, do PSTU, do PSol, do movimento dos sem teto, apareceram jovens
embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando e ensaguentando
os manifestantes de esquerda. Assim, em lugar do conflito democrático,
passou-se ao combate violento e à agressão ao adversário. Mas algo
curioso aconteceu: construiu-se um sentido político para toda aquela
movimentação. A própria mídia, que falava dos “vândalos” das primeiras
manifestações, depois passou a falar de “manifestantes”. Houve uma
construção política de uma manifestação que não existiu realmente como
algo político. Ninguém prestou atenção nisso! Eu procurei falar do
assunto e fui violentamente agredida, mesmo pela esquerda. Disseram que
eu não tinha entendido o momento histórico. Mas fizeram mais: pegaram a
afirmação que eu fiz sobre o caráter fascista dos jovens vestidos com a
bandeira e disseram que eu havia considerado todas as manifestações como
fascistas. Na época das eleições, o Fernando Gabeira chegou a escrever
um artigo de uma página inteira no jornal O Globo contra mim,
afirmando que, na minha opinião, a presença do povo na rua era fascismo.
O que eu tinha dito era: houve um momento fascista nessas manifestações
e ninguém está prestando atenção nisso. Aí, quando começaram os
panelaços de 2015, ficou evidente o que eu queria dizer. O que veio a
seguir? Veio a demanda de retorno da ditadura, a presença da TFP [Grupo
de extrema direita intitulado Tradição, Família e Propriedade] e a
afirmação da pauta conservadora dos 3Bs.





CULT: Na verdade, em 2013, a senhora previu, em entrevista à
CULT, que no Brasil iriam acontecer panelaços parecidos com os da
Argentina.



Marilena: Fui a única. Eu não sei por que as pessoas
– algumas delas inclusive feridas por 1964 e 1968 muito mais do que eu,
como o próprio Gabeira – não se deram conta do que estava vindo. Não
sei se eu conseguia ver porque presto muita atenção no Brasil como uma
sociedade violenta e autoritária… Não sei se é por isso, mas eu fiquei
muito surpresa ao perceber que muita gente de esquerda não percebia o
que estava se montando e que junho de 2013 não era maio de 1968. Maio de
1968 foi a ocupação das escolas agora. Isso foi maio de 68.





CULT: Por quê?


Marilena: Porque, no caso da ocupação das escolas,
há, em primeiro lugar, um movimento de inclusão e ampliação. A marca dos
movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação. Em
segundo lugar, pelo fato de que ele foi se dando à maneira do que, no
meu tempo, se conhecia como “greve pipoca”. Em uma fábrica, por exemplo,
às seis horas da manhã, um setor para por 40 minutos. Durante o tempo
em que ele parou, outros três ou quatro setores não conseguiram
funcionar. Então, aquele primeiro setor volta a funcionar, mas, daí, em
outra ponta, outro setor para por 40 minutos. Tudo o que está em volta
não funciona. Assim, sobretudo quando a greve era proibida, ia pipocando
paralisação, de modo que as instituições (uma fábrica, uma escola
etc.), mesmo sem parar, ficavam inteirinhas paralisadas. Nos lugares
estratégicos pipocava a paralisação. Foi assim que a ocupação das
escolas seguiu o princípio da greve pipoca. Quando os administradores da
educação achavam que iam resolver a ocupação de uma escola, começava na
outra; quando eles iam resolver nessa outra, começava em outra. Ou
seja, ela foi pipocando até o instante em que parou tudo.


Além disso, a maior diferença entre a ocupação das escolas e o
movimento de 2013 é que a paralisação aconteceu no interior de uma
instituição pública e social para a garantia do caráter público dessa
instituição. Não foi um evento em favor disso ou daquilo; foi uma ação
coletiva de afirmação de princípios políticos e sociais. Os dois grandes
princípios foram, primeiro, o princípio republicano da educação – a
educação é pública; segundo, o princípio democrático da educação – a
educação é um direito. A ação dos estudantes e professores foi tão
significativa porque eles disseram: “O espaço da escola é nosso. Somos
nós, alunos e professores, que somos a escola”. Então, foi a “integração
de posse” das escolas pelos alunos e professores. É gigantesco o fato
de alguém no Brasil pensar que algo público é nosso! É diferente das
ocupações de reitorias, em que os estudantes dizem: “Nós somos contra
isso que o reitor fez…” Agora, os estudantes disseram: “Esse lugar, essa
instituição é pública; ela é nossa e não vamos sair daqui”. Eles se
posicionaram contra algo típico do neoliberalismo – posto em prática,
sob certos aspectos, no decorrer da Ditadura e, depois, explicitamente
nos governos Fernando Henrique Cardoso: a ideia de que um direito social
e político é aquilo que pode ser transformado em serviço e comprado no
mercado. As pessoas falam das privatizações como se elas fossem apenas a
da Vale e das grandes empresas… É isso também, mas o núcleo da
privatização está em outro lugar, está na transformação de um direito
social em serviço que se compra e vende no mercado. Isso foi feito com a
educação, com a saúde, com o transporte, com todos os direitos sociais.
E, em São Paulo, com grandes baterias, isso foi feito. Os estudantes
mostraram que a escola pública não é mercadoria; fizeram uma ação
republicana e democrática de um alcance incrível. Eu só vi algo
parecido, em termos de configuração social no Brasil, nas greves de 1978
e 1979 no ABC. Por quê? Não pela repercussão, mas pelo sentido que elas
tiveram.


Pensem no fato de que, durante as ocupações, só foram chamados para
dar entrevistas cientistas políticos, sociólogos, historiadores, mas
nenhum professor ou estudante das escolas ocupadas! Nenhum professor ou
estudante foi considerado capaz de explicar o que se passava. Só se
ouviu gente que estava fora das salas de aula e que vinha explicar
falando disparates. Quando a mídia entrevistava algum estudante, só
perguntava coisas do tipo: “O que você sente? Do que você gosta e não
gosta? O que você quer?”. Ou seja, ficava no nível puro e simples do
sentimento, não do pensamento. Apesar disso, a palavra deles chegou à
sociedade por outras vias; e isso mostra o tamanho da ação que eles
realizaram. Houve uma solidariedade que há muitos e muitos anos não se
via no estado de São Paulo inteiro. Por fim, as ocupações deixaram claro
o motivo de fechar as escolas. Em um país como o nosso, não se fecha
escola; se abre. Mas o governador de São Paulo queria os terrenos para
uma exploração imobiliária gigantesca. E para fazer o quê? Para fazer
fundo de campanha. É claro que agora o Geraldo Alckmin vai tentar
fragmentar tudo e implantar devagarzinho o seu projeto. Hoje essa
escola, amanhã aquela. Não sei se ele vai conseguir, mas vai tentar.
Como o Ensino Fundamental é praticamente todo municipal, o Ensino Médio é
estadual e, de um modo geral, o Ensino Universitário é responsabilidade
federal, essas instâncias operam de modo fragmentado; e isso permite
tentativas de reestruturação como as de São Paulo e de Goiás. De todo
modo, os estudantes revelaram que a ideia de fechar uma escola não
significava fechar uma escola, significava vender um terreno. Portanto,
eles denunciaram o caráter corrupto da suposta política de
reestruturação escolar.





“A
ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles
disseram: ‘O espaço da escola é nosso. Somos nós, alunos e professores,
que somos a escola’. ”



CULT: Como a senhora vê o atual momento da economia brasileira?


Marilena: No primeiro ministério montado pela
presidente Dilma, enfatizou-se, por um lado, a crise internacional em
que o elemento financeiro é decisivo, e, por outro, o fato de haver, no
Brasil, uma disputa entre a indústria, o comércio e o setor agrário. A
Dilma pôs representantes desses setores no governo e deu a eles a
responsabilidade de resolver o conflito. Um banqueiro junto com o
agronegócio. Eles não resolveram. Não sei se a presidente foi
maquiaveliana, mas ela parecia prever que eles fracassariam e que o
fracasso mostraria para onde o barco deve ir. Então, o que ela está
fazendo agora? Ao chamar o principal assessor do Guido Mantega, ela
sinaliza claramente que vai retomar a política de desenvolvimento e
crescimento econômico, a começar pelo aumento do salário mínimo.


É claro que há uma crise internacional gigantesca e que vai pegar os
membros do BRIC. Já pegou a China, está pegando a Índia; a situação vai
complicar. Mas, de todo modo, a opção agora é a do desenvolvimento. Sem
desenvolvimento e crescimento não se faz, efetivamente, a política dos
programas sociais. Se não há mudança no mercado de trabalho com aumento
do emprego e da escolaridade, a manutenção dos programas sociais vira
assistência.





CULT: Como a senhora entende a crítica da classe média alta e
de alguns economistas que afirmam ser o Brasil um país protecionista e
que faz pouco investimento?  



Marilena: O grito contra o protecionismo é o grito
da direita. São os republicanos nos EUA, o Le Pen na França, o pessoal
da Alemanha. O que eles entendem por fim do protecionismo? Um “liberou
geral”, um capitalismo “adulto”. A ideia de que o Estado intervenha é o
que eles chamam de protecionismo. Mas se o Estado não limitar a ação do
capital, cai-se na barbárie. Com relação ao investimento, a gente sabe
que o Estado brasileiro investe. Há dados inacreditáveis. Na verdade,
não são inacreditáveis se conhecermos bem a burguesia brasileira. Vejam:
o BNDES liberou todos os recursos possíveis para os empresários
brasileiros, mas eles não investiram; eles puseram tudo nos bancos, nas
ilhas Cayman, em Miami, onde quiseram. Em vez de investir no país, o
dinheiro do BNDES foi parar no setor financeiro fora do Brasil. E daí se
diz que o país não investe! Eu adoro a burguesia brasileira. Quando ela
disse “quero café”, foi ótimo. No mundo inteiro, quem vai plantar café
constrói estrada de ferro para levar o café até os pontos de
distribuição. Aqui no Brasil, porém, é o Estado que tem de construir
estradas de ferro. A burguesia só plantava o café. Se ela precisa de
porto, no mundo inteiro ela constrói portos. Aqui não. É o Estado que
tem de construir o porto para a burguesia mandar o café. A burguesia
quer industrializar, mas é o Estado que tem de fornecer eletricidade. A
burguesia brasileira mama nas tetas do Estado desde que ela nasceu. E
tem a ousadia de se colocar contra os programas sociais, quando ela
depena o Estado sistematicamente.





CULT: Recentemente, a senhora afirmou que o Bolsa Família fez
pelas mulheres o que seis décadas de feminismo no mundo não conseguiu…



Marilena: Esses dados estão consagrados em um livro feito pela Walquíria Leão Rego sobre o Bolsa Família (Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania,
em coautoria com Alessandro Pinzani, Editora da UNESP). O que ela
mostrou? Primeira coisa: como o dinheiro vai para as mulheres, elas
foram transformadas em chefes de família. Na tradição brasileira, o
dinheiro costuma ir para o homem, e só uma parte vai para a família; a
outra parte vai para os gastos pessoais dele. Com o Bolsa Família,
quebra-se o monopólio masculino sobre a administração da casa. Em
segundo lugar, as mulheres passaram a cuidar mais de si mesmas. Juntando
o dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo, elas
fizeram diminuir o número de doenças femininas. Finalmente, elas têm
participado mais de atividades públicas, filiaram-se a movimentos
sociais e criaram cooperativas. Há uma quantidade enorme de cooperativas
criadas pelas mulheres com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa
Família.





CULT: Qual seria o papel do Estado na promoção da igualdade e dos direitos das mulheres?


Marilena: A função do Estado não é a de promover.
Ele tem de reconhecer os direitos das mulheres e decretá-los. Sua função
é consignar na lei, institucionalmente, aquilo que os movimentos das
mulheres exigem e produzem, mas essa ação é social. A política se faz
pela sociedade. O Estado brasileiro precisa parar de agir como se não
houvesse uma sociedade. A ele cabe salvaguardar tudo o que há de
republicano e democrático nas ações políticas da própria sociedade. Mais
do que promover, o Estado tem de garantir.

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