terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade?


E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade? - 19/02/2017 - Ilustríssima - Folha de S.Paulo





E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade?
















RESUMO O autor analisa o atual fenômeno de relativização da
verdade à luz de conceitos como o perspectivismo nietzschiano. Ele
sustenta que, num cenário de produção e consumo ininterruptos de
informação, a ambiguidade do conteúdo difundido parece ser pré-requisito
para despertar o interesse do público e fidelizá-lo.




*
Integram o cortejo dos espectros que rondam Donald Trump, presidente dos
Estados Unidos, certas noções vagas como "pós-verdade" e "cultura
pós-factual", as quais, a despeito de sua fluidez, aparecem no debate
público como se fossem conceitos filosóficos.





Ambas designam a poluição da mídia por notícias falsas, ou "fake news",
e geram uma transformação nas relações entre verdade e mentira. Já não
se pergunta simplesmente se uma notícia é falsa ou verdadeira, mas em
que consiste a noção de verdade de uma informação. Ou seja, a própria
ideia de verdade surge como um problema.





Declarações ambíguas, enviesadas, enganosas ou derivadas de enganos são
na prática equiparadas a mentiras inventadas deliberadamente pelos mais
diversos motivos: ganhar dinheiro de anunciantes, alcançar resultados
eleitorais específicos, formar e influenciar correntes de opinião,
induzir metas de políticas públicas e reforçar vínculos de identificação
coletiva, formatando maneiras de pensar e sentir em determinados
segmentos sociais.





Avulta entre essas figuras a "disinformatzya": o objetivo aqui não é
defender uma bandeira particular ou atacar um adversário determinado,
mas causar desinformação. Inundam-se os suportes de difusão de mensagens
com afirmações falaciosas e distorções sensacionalistas no intuito de minar as bases de confiança tanto dos veículos tradicionais de comunicação quanto das diferentes redes informáticas que se aninham na internet.





Trata-se, portanto, de solapar o crédito de informações que se pretendem
objetivas, como se não houvesse um critério para diferenciar a notícia
falsa da verdadeira. O leitor, largado num meio sabidamente repleto de
mentiras, pode nivelar por baixo e duvidar de todos os conteúdos
publicados, ou pode agarrar-se àqueles que lhe pareçam mais apropriados.









Que importa se, objetivamente, era possível medir o tamanho do público
presente à cerimônia de posse de Trump? O governo americano sentiu-se à
vontade para mencionar um número maior, iniciativa que depois uma
assessora do presidente definiu como a apresentação de "fatos
alternativos".





Não existe nesse tipo de atitude nada que se confunda com a postura
filosófica do perspectivismo, segundo o qual o ponto de vista de cada um
interfere no modo de conhecer e apreender a verdade (que existe). Na
era da "pós-verdade", tudo se passa como se a verdade simplesmente não
existisse e todos os pontos de vista tivessem valor idêntico -como se a
suposta "verdade" divulgada pelo governo americano não fosse pior do que
a "verdade" factual apurada pelos jornais tradicionais.





Ora, se todas as "verdades" são igualmente válidas, se cada cidadão pode
escolher o ponto de vista de seu agrado, qual o sentido de um debate
público que busque o esclarecimento? Em outras palavras, está em jogo o
emprego sistemático de técnicas de propaganda para obliterar e
entorpecer a capacidade de pensar criticamente.





O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), falsamente identificado como
precursor desse relativismo ambientado na penumbra em que todos os
gatos são pardos, foi, em vez disso, o pensador que antecipou um
conflito eventual que pode nos ajudar a compreender as agruras do
momento problemático que atravessamos.





É conhecida sua formulação: e se o erro, a falsidade, o engano
revelarem-se, tanto quanto a verdade, essenciais como meios úteis para a
conservação da vida? Essa pergunta incomoda o pensamento filosófico
desde que Nietzsche teve a ousadia de colocá-la em toda sua extensão e
profundidade.





Ora, os fenômenos que nos confrontam hoje podem ser interpretados na
chave hermenêutica que Nietzsche generosamente nos colocou nas mãos.
Vivenciamos um conflito entre verdade e condições de existência. De que
existência, porém, se trata aqui? Daquela que, como pensava Nietzsche,
sempre se produz em termos de relações de poder, de jogos de força em
que encontram apoio e expressão interesses vitais, desejos, temores,
expectativas de reconhecimento, aspirações de domínio e estratégias de
resistência.





Identifiquemos, então, algumas das variáveis no debate atual sobre a
definição e as consequências das "fake news" para os rumos da cultura e
da política nas democracias contemporâneas.





VERIFICAÇÃO





Com a explosão dos novos meios de comunicação no ambiente digital,
distribuídos pela malha includente da sociedade global em arranjos de
alta capilaridade (rizomáticos, a rigor) e se reproduzindo em milhares
de centros virtuais dificilmente localizáveis e responsabilizáveis (nos
sentidos ético e jurídico), torna-se instável a possibilidade de
verificação isenta de fatos, bem como muito mais dinâmica e inventiva a
produção e a circulação de mensagens, seja qual for o seu teor.





Em sociedades lastreadas na troca de informações e na comunicação
sustentada por tecnologias de ponta, que se autorreplicam e formatam
todos os setores da vida -economia, política, educação, cultura etc.-,
os interesses estratégicos e as condições de existência estão
estreitamente vinculados às possibilidades, tecnologicamente
facilitadas, de "tornar-comum" o conteúdo veiculado, ou seja, de
difundi-lo a um universo amplo de pessoas e de reduzi-lo a sua dimensão
mais simplória, num movimento que cria oportunidades para o vulgar e o
sensacionalista.





Com isso, torna-se possível inserir nessas redes tudo o que for capaz de
abastecê-las com eficiência, passando, então, a fazer parte da
"nutrição cotidiana" de cada um. Não importa tanto se o conteúdo é
"verdadeiro"; importa acompanhar "como a coisa rola". A ambiguidade das
mensagens é condição necessária para manter acesa a avidez por
"novidades", a reiteração da expectativa curiosa em espiral infinita.





Informações transformaram-se em mercadorias intercambiáveis num arranjo
cujos agentes são reduzidos ao denominador comum de consumidores e cuja
lógica operante é a da produção e da circulação mercantil.





Razão pela qual importa menos a pretensão de validade do que a
expectativa de realização de desejo que a informação venha a satisfazer.
Por isso adquire plausibilidade o pseudoargumento: afinal, o que é a
verdade, já que temos bons motivos para descrer de toda verificação
factual?





A imputação de falsidade por parte de um opositor funciona como seu
contrário. Reforça convicções previamente firmadas, preconceitos
arraigados e impermeáveis a razões, mas dóceis às moções afetivas de
autoidentificação.





Daí por que notícias inventadas na esteira do sensacionalismo midiático
não são desqualificadas, mas, ao contrário, reafirmadas e até
estimuladas pelos melhores esforços para desmascará-las; pois o que
importa para os atores e as organizações sociais interessados na
proliferação desse tipo de comunicação é manter acesa a chama da
curiosidade que elas atiçam e alimentar o falatório até suas derradeiras
possibilidades de rendimento.





Uma explicação para isso encontra-se na lógica interna de tais
processos, infensos ao escrutínio crítico, já que o único critério que
conta são os acessos, ou indicadores quantitativos de consumo.
Desenvolve-se uma simbiose perfeita entre a comprovada demanda crescente
dos clientes e o rendimento auferido graças à divulgação de material
publicitário.





Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos critérios de
verificação, embute-se o risco de esse novo parâmetro gerar um círculo
vicioso: a quantidade de acessos quase sempre está em relação com o
potencial de atração contido na distorção da mensagem. Isso significa
que o horizonte de avaliação é o do impacto causado.





Para manter vivo o interesse pela informação vale tudo, inclusive
induzir e filtrar seletivamente as escolhas preferenciais do leitor por
meio de algoritmos que "adivinham" sites mais consentâneos com suas
tendências. As possibilidades e limites da apropriação
político-ideológica dos conteúdos, bem como aquelas de seu controle
responsável, são virtualmente indetermináveis, e isso a despeito de
todas as catastróficas consequências que esse desregramento pode causar,
dentre as quais o estímulo ao cinismo irresponsável, o desfecho
eleitoral pernicioso e a destruição sistemática de reputações.





A capacidade de pensar por si e de assumir responsabilidades por
opiniões e ações passa pela antiga e saudável desconfiança e pelo
esforço de nos distanciarmos do que se nos pretende impingir como última
novidade, como sinal dos tempos da "pós-verdade".





É possível que se oculte aí apenas um velho fetiche, uma manobra
diversionista para desviar a atenção e dispensar da reflexão, reforçando
o isolamento narcísico que parece estar vinculado à inclusão aparente e
à conexão em redes de comunicação com alcance planetário.




OSWALDO GIACOIA JUNIOR, 62, é professor titular de história da filosofia contemporânea e ética na

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