sábado, 18 de fevereiro de 2017

Raiva é uma revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja)

Raiva é uma revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja) - 15/02/2017 - Francisco Daudt - Colunistas - Folha de S.Paulo



Raiva é uma revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja)










Como psicanalista, sou um advogado de defesa do cliente que me contrata.
Ele chega pagando pena, prisioneiro por décadas de uma culpa que não
está clara –sua neurose–, e pior, achando-se mais culpado ainda por
tê-la. Quero ver os autos desse processo que o condenou, mas eles não
estão on-line, infelizmente. A coisa é tão injusta que se faz necessário
um trabalho detetivesco de arqueólogo para decifrá-lo. Sim, porque ele
está codificado em sintomas e sonhos, ele está inconsciente.





A beleza da coisa reside em que, à medida que vamos jogando luz na
história, ela se revela injusta com o neurótico: foi resultado de
incompetências –nunca encontrei história de má intenção– de sua criação
carregadas pela vida afora, o famoso complexo de Édipo. Exposta a
injustiça, entra então a força da justiça: a indignação e o
inconformismo, a vontade de corrigir o erro.





Indignação com injustiça é um software inato que trazemos, com um
resultado primeiro: raiva. Qualquer raiva é revolta contra o que nos
parece injusto (mesmo que não seja). Por isso digo que a raiva é a mãe
da justiça. É ela que motiva a busca de se corrigir o erro, ainda que
muitas vezes tome caminhos que só fazem agravá-lo.





Um jovem cliente me perguntou: "Qual é sua motivação na vida? A minha é a
vingança". Respondi que a minha era amar e ser amado. Disse ele: "É,
essa também é boa... mas vingança é melhor!"





Ele era prisioneiro de um canal incompetente da justiça, deixara de
viver sua vida para se tornar um vingador. Ele se ressentia da
incompetência de seus pais, e era rebelde na vida como forma de
vingança. Ou seja, seus pais continuavam mandando nele. O máximo desse
tiro no pé é o suicídio de vingança, para deixar os pais culpados. É o
único suicídio que me revolta, os outros costumam ser eutanásias.





Mas, veja só, o fato de se perceber prisioneiro do ressentimento, e a
injustiça contida nisso, fez com que ele começasse a mudar o rumo de sua
vida, a tomá-la para si em vez de dedicá-la a "homenagear" os pais.





Outro canal incompetente da raiva é a inveja: "Ele é mais bonito, rico e
inteligente que eu, isso não é justo". O curioso é que a inveja não
almeja a igualdade, e sim a inversão da desigualdade: "Quero me dar bem,
e que ele se ferre". Isso ajuda a entender muitas ideologias
políticas...





O ciúme, por sua vez, ora é injusto, ora é justo: quando nasce um
irmãozinho e toda a atenção que o mais velho recebia lhe é retirada, o
ciúme que ele tem é mais do que justo, precisa ser considerado e
respeitado.





A justiça está ligada ao nosso programa de altruísmo recíproco: mesmo na
amizade, se estamos dando muito mais que recebendo, um incômodo/raiva
começa a surgir.

Repare em você como a avaliação de justiça/injustiça funciona quase que o tempo todo, aplicada a inúmeras situações.





A psicanálise conta com essa premissa: o complexo de Édipo é injusto,
vamos corrigi-lo. A esperança de cura, em psicanálise, reside na força
da justiça. A esperança de cura das doenças institucionais do Brasil
reside na força da justiça.





Me encanta ver isso acontecendo

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