domingo, 28 de setembro de 2014

A semântica das urnas — CartaCapital

A semântica das urnas — CartaCapital

A semântica das urnas

Você é um marciano recém-chegado? Descubra aqui como
separar o joio do trigo – ou entender o que é verdade e o que é só
interesse no calor da temporada eleitoral





por Nirlando Beirão







publicado
28/09/2014 07:48













Chico Bela
Desde
a primeira eleição de lula, em 2002, o discurso político ganhou um
léxico próprio. Vários conceitos dos tempos da Guerra Fria foram
reciclados, outros claramente copiam a retórica da neodireita
norte-americana reunida no Tea Party. O objetivo central dessa linguagem
é tirar o PT do poder a qualquer custo. A cada campanha, o rosário de
termos se renova, embora certas palavras nunca percam sua importância
(corrupção, aparelhamento do Estado etc.). A seguir, como distinguir no
palavrório que aquece as campanhas a verdade factual do discurso criado
para escamotear os interesses, a fraude e a má-fé.
Alternância do poder
• Você passa a defendê-la com convicção
religiosa, quando o partido do qual é inimigo permanece no poder, ao
longo de reeleições sucessivas, ainda que avalizadas democraticamente
pelo voto. O primeiro passo é atacar a reeleição, instituída, aliás,
criada de uma maneira bem marota pelo ex-presidente Fernando Henrique ,
na esteira do projeto de 20 anos de poder do PSDB e à base da compra de
votos no Parlamento. Um golpe constitucional sem nenhuma sutileza
democrática a beneficiar o mandatário em exercício, o qual, por mera
coincidência, você apoia. Alternância só é necessária quando se está
fora do poder. Caso contrário, atrapalha o aperfeiçoamento da
democracia. Em São Paulo, ela é especialmente execrada. Os paulistas
preferem perpetuar um mesmo grupo político, enquanto bradam contra o
risco de uma ditadura em nível federal.
Aparelhamento do Estado
• Quem aparelha o Estado são os
adversários. Duvida? Basta ler jornais e revistas, sempre muito zelosos
em fiscalizar os adversários, ainda que só a eles, e acusar o partido no
poder, desde que não seja o de sua preferência, de “aparelhar o
Estado”. Isso significa, basicamente, o seguinte: o partido no poder
nomeia para os cargos de confiança pessoas... de sua confiança. Você
reclama, iracundo: o Estado faz a festa da “companheirada”. A imprensa
partidariamente engajada trata de denunciar a “farra das nomeações”. Dá
para imaginar a perplexidade do leitor: o que queriam os jornalões? Que o
partido no poder nomeasse adversários?
A vigilância ética é de mão única: se um
presidente da República simpático a você nomeia para um importante cargo
na área de energia um genro, não é por nada, seus maldosos, apenas uma
coincidência. Quando o partido que você apoia aparelha o Estado com a
sua companheirada, tenha certeza: os apadrinhados são gente de bem, de
notório saber e reputação ilibada. Se aquele diretor da estatal nomeado
por você ou pelos seus for pego mais tarde com a mão na botija, é um
caso de cooptação estimulado pelo clima corrupto instaurado por seus
adversários.
Bolivariano
• Se você se interessa pela sorte dos
pobres, excluídos e vítimas de discriminação, a ponto de criar programas
sociais compensatórios de emergência, é bolivariano. Se a política
externa que você defende não se rebaixa aos ditames da Casa Branca,
busca parcerias com nações fora da órbita imperial do dólar e do euro e
chega ao cúmulo de lançar as bases de um FMI dos emergentes, trata-se de
“ilusão bolivariana”. Bolivariano é o neocomunista. O comunismo morreu,
mas o anticomunismo continua a gerar bons negócios. Embora o termo seja
démodé, um bolivariano pode ser chamado de populista, na falta
de termo melhor. Antônimo: Racionais. São os almofadinhas da Escola de
Chicago e da PUC-Rio que não ligam para a sorte da maioria, mas se
apegam fervorosamente a crenças que a realidade teima em desmentir.
Estado mínimo, por exemplo.
Choque de gestão
• Significa cortar salários, promover
demissões em massa e diminuir o investimento público, com base na teoria
de que Estado mínimo é Estado eficiente. Faz muito sucesso entre
aqueles que não sofrem os seus efeitos imediatos. No choque de gestão
não cabem as migalhas assistencialistas do Bolsa Família, um jeito de
perpetuar a miséria, não de reduzi-la, conforme a tese. Recomenda-se,
porém, não ser explícito. Melhor dizer que os programas sociais “serão
aperfeiçoados”.
Deus
Entidade
abstrata, costuma irromper muito concretamente na cena política em anos
eleitorais. Todo mundo simula acreditar em Deus, em especial quem não
crê. A história da humanidade mostra, porém, que piores costumam ser
aqueles que acreditam. Relegar a fixação da meta de inflação e a taxa de
juros às interpretações de um I Ching errático que tenha na Bíblia uma
plataforma não parece combinar com as práticas de um Estado leigo e não
confessional. Bíblia na qual se confia cegamente, mesmo quando se
afronta o conhecimento adquirido pelos seres humanos ao longo dos
tempos. Ela é sempre propícia a uma leitura seletiva, que permite pular
os versículos sobre os fariseus.
Crises e bonanças internacionais
• As crises servem de justificativa para
governos amigos. Se uma administração aliada vai mal, a culpa é do
cenário externo. Inverte-se a lógica no caso dos adversários. Se a
gestão inimiga vai bem, as condições internacionais a favoreceram. Caso
se saia mal, é resultado exclusivo da incompetência de quem está no
poder, que mente descaradamente ao evocar os efeitos deletérios globais,
mesmo quando se trata da maior debacle planetária desde o início do
século XX.
Coligações e governabilidade
• Seu partido, no poder ou quando em
disputa eleitoral, consegue seduzir legendas de aluguel para uma teia de
alianças convenientes para garantir a governabilidade ou engrossar o
tempo no horário eleitoral gratuito? Parabéns, você é uma figura de
aguda sensibilidade política, negociador de fino trato. Seu adversário
fez o mesmo? Denuncie a falta de escrúpulos, a atroz barganha de
princípios por conveniências, da honradez pela ambição. Conte sempre com
os amigos na mídia para corroborar a sua tese. Aquele seu ex-ministro
do PMDB que era honrado, mas mudou de lado, será descrito como um homem
desprezível.
Corrupção
• Prática entranhada nos governos... dos
outros. Infelizmente, a corrupção às vezes ganha fatos comprovados e
nomes ilustres de aliados seus. Mas não se preocupe. Vale o mesmo do
item Coligações. A mídia amiga estará a postos para jogar esse tipo de
acusação, obviamente gratuita e injusta, para debaixo do tapete. Há
corruptos e corruptos. Aqueles do partido adversário expõem uma
maquinação coletiva, um assalto aos cofres públicos, uma quadrilha
organizada e perene, destino manifesto da tal legenda e da administração
partidária. Os seus representam casos isolados, sem nenhuma relação com
as práticas e princípios de sua agremiação. Também vale dizer que a
corrupção desenfreada dos adversários é um mal tão grande que afeta até
gente da sua base. É a tal falta de exemplo “de cima”.
Corruptores
• Sem eles não existe corrupção. Como
alguns podem eventualmente (ou frequentemente) financiar candidaturas
amigas, melhor esquecer o assunto.
Delação premiada
• Ela só tem valor se for vazada
cirurgicamente para atingir os nossos concorrentes. Se, no meio do
lamaçal, surgir o nome de um aliado, diga que as revelações são açodadas
e precisam ser apuradas a fundo, doa a quem doer. Quanto ao fato de o
vazamento ser também um crime, de responsabilidade, inclusive, do
ministro da Justiça, caso envolva a Polícia Federal, bem… esqueça.
Dossiês
• Se a mídia está do seu lado, fique
tranquilo. O esforço de reportagem visará descobrir quem produziu
dossiês caluniosos contra você e os seus. Editoriais e colunistas vão
denunciar as “baixarias” de campanha (ver o próximo item). Não
importa se o dossiê não é um dossiê, mas denúncias comprovadas e
comprováveis. Mas, se a imprensa te enxergar como inimigo, se cuide.
Tudo poderá ser usado contra você, de declarações sem lastro de notórios
bandidos a contas falsas no exterior ou fichas “frias” na polícia.
Marqueteiros
Se um adversário sobe nas pesquisas de
intenção de voto, é hora de atribuir o preocupante sucesso à ação
mistificadora dos marqueteiros. Vale dizer, eles são capazes de botar em
pé um pacote vazio de ideias e até eventualmente eleger “um poste”.
Nesse caso, não convém lembrar que o seu candidato igualmente possui um
exército de experts em bruxarias político-eleitorais, pois isso
comprometeria o argumento de que o candidato, aquele que você e a
imprensa do privilégio apoiam, apenas expõe suas ideias reais, é de uma
espontaneidade radical e nunca se deixaria manipular por técnicas
artificiais de persuasão ou pela maquiagem mercadológica. Os
adversários, estes sim, fazem o que for preciso para chegar ao poder, ou
para mantê-lo (verbete Alternância de Poder). Você e os seus nunca
participam de uma eleição para ganhar, mas em nome de um bem maior.
Mensagens subliminares são a maior especialidade dos inimigos. Uma
doutora em semi-óptica, perdão, semiótica, alerta a respeito das novas
ciclovias, traçadas pelo prefeito inimigo de São Paulo, para “o efeito
das cores sobre o nosso sistema nervoso central” e sugere que a cor
escolhida “não passa de uma descarada propaganda vermelha do PT”. Em
todo o mundo, as faixas para bicicletas costumam ser vermelhas, mas não
importa.
Liberdade de expressão
É o direito inapelável, intocável,
irreversível dos meios de comunicação de exprimir o pensamento único de
seus proprietários, em consonância com seus interesses pecuniários e sua
pauta eleitoral. É facultado o direito de mentir e distorcer. Em
temporadas eleitorais, a toada de uma nota só torna-se uma obsessão, de
forma a impedir que vaze para o noticiário algum acorde dissonante por
parte da ralé das redações ou dos candidatos do outro lado. Quando os
adversários pretendem exercer, eles também, a liberdade de expressão,
valem-se de um eufemismo: quem responde a seus desmandos defende a
censura.

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