O cinismo é uma forma de racionalidade
Freud nos traz um relato no qual um homem, depois de cuidar por meses de
seu pai doente que acabara de morrer, começa a sonhar que ele estava
novamente em vida e que lhe falava normalmente. Esse sonho era
vivenciado de forma extremamente dolorosa, já que o pai agia de maneira
natural, mas a condição de não saber que estava morto. Ao produzir um
sonho dessa natureza, o sujeito demonstrava estar preso em um tempo
assombrado por mortos que não estavam enterrados, mortos que ocupavam o
lugar dos vivos, repetindo cenas e rituais que não tinham mais sentido
algum, pois cenas e rituais de um morto que luta por não querer saber.
Podemos dizer que não apenas sujeitos mas sociedades podem entrar neste
tempo paralisado e em apodrecimento. Elas serão submetidas a um
espetáculo miserável de mortos que agem como se estivessem vivos, que
ocupam o espaço dos vivos, que continuam a fazer discursos que já não
têm realidade alguma, que julgam a partir de uma autoridade que eles já
não têm.
ausência de legitimidade, um pouco como esses personagens de desenho
animado que continuam a correr mesmo que não estejam mais em solo firme,
mas no abismo. Essas são sociedades cuja paixão central é o desejo de
não querer saber.
O Brasil das últimas semanas demonstrou claramente o que isso significa.
Comandado por uma casta política de pessoas mortas, em grau profundo de
corrupção e desagregação, ele parece querer continuar sem saber que já
não existe mais sequer como democracia mínima de fachada. O Brasil
assumiu de vez sua face de oligarquia cujos governantes e juízes
permanecem no poder a despeito de qualquer consideração pela vontade
popular.
Pouco importa se seu governo foi indicado pela imprensa internacional
como um dos cinco mais impopulares do mundo, se as manifestações contra
ele se espalham pelo país. Isso não irá influenciar as decisões
governamentais, não irá modificar seus discursos.
Pouco importa se seu "presidente" foi gravado em caso explícito de
formação de quadrilha, prevaricação e cumplicidade com banditismo. Os
juízes agirão como se as gravações não existissem e utilizarão, ainda,
os mais rasteiros sofismas para se justificarem.
Mas, quando os mortos sobem à cena, uma explicitação importante ocorre
no nível dos discursos. Vemos então uma forma de conservação de
discursos desprovidos de legitimidade, de práticas discursivas repetidas
tendo em vista certa "estabilização na anomia" que poderíamos chamar de
"cinismo".
Cinismo não é apenas um julgamento moral, mas uma certa forma de
racionalidade. Cínicas são as ações nas quais repetimos a aparência de
legitimidade, mesmo sabendo que todos compreendem que se trata apenas de
aparência. Um pouco como vimos na semana passada, com uma verdadeira
aula de cinismo ilustrado dada pelo pilar do desgoverno atual, a saber, o
grão-tucanato. O mesmo tucanato que entrou como uma ação de cassação de
chapa Dilma-Temer, que insuflou o presidente do TSE, homem de relações
orgânicas com o partido, a não levar adiante a cassação, para no final
afirmar que iria recorrer da decisão tomada "por si próprio", mesmo que
seu partido continue a prometer juras de amor e a sustentar o governo.
Essa racionalidade cínica exige que a repetição da aparência deva ser
feita como se estivéssemos diante da exigência de continuar a jogar um
jogo sem sentido, a ter uma crença desprovida de crença, a fingir que
democracia ainda há.
Há uma função "terapêutica" nisso tudo. Pois assim poderemos ridicularizar o poder ao mesmo tempo que a ele nos submetemos.
De fato, em seus momentos de desagregação o Brasil não leva sua casta
dirigente à guilhotina, não invade o Ministério da Fazenda ou seus
palácios. Ele encontra alguma forma de alívio em submeter-se a um poder
que não exige mais crença alguma. Como se fosse possível continuar a
viver esquecendo, por um momento, que o poder existe.
No entanto países que um dia levaram seus dirigentes à guilhotina e à
forca (como a França e a Inglaterra) conseguiram civilizar minimamente
sua classe dirigente. Eles a civilizaram através de certo medo pelo povo
que se inscreve no imaginário do poder. Com guilhotina ou não (pois
isso pode ser visto apenas como metáfora), uma coisa é certa; no Brasil,
falta ao poder temer o povo.
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