A gororoba brasileira e o ajuste à grega
Decididamente,
o diagnóstico do ministro das finanças do governo Syriza é diferente
do que pensa seu congênere brasileiro, o ministro Joaquim Levy.
Por
trás das multidões desesperadas que afluíram às ruas e cercaram o
parlamento nos últimos anos, tentando retomar o controle do seu destino,
até o desenlace eleitoral deste domingo, existe a história pedagógica
de um conflito entre a maioria da sociedade e os que detém a riqueza
dentro dela.
Nisso a tragédia grega é um clássico.
Condensa o desatino de muitas nações nos dias que correm.
Seu
impasse resultará insolúvel se for encarado apenas como um confronto
com banqueiros obstinados em ordenhar juros de uma dívida impagável de
330 bilhões de euros.
Não que essa dimensão do enredo seja negligenciável.
Em uma população da ordem de 11 milhões de pessoas, a dívida grega equivale a uma cota da ordem de 30 mil euros por habitante.
Algo como R$ 350 mil reais por família composta de casal e dois filhos.
A chance de que haja um adulto desempregado dentro dela é alta; um em cada quatro trabalhadores está desocupado na Grécia.
A eletricidade de um milhão de lares foi cortada por falta de pagamento.
Nesse cenário de penúria, pagar a dívida equivale a condenar sucessivas gerações a um regime de servidão às ordens da banca.
A
curto prazo a queda generalizada das taxas de juros no mundo –com
exceções notáveis como é o caso brasileiro-- deve aliviar a pressão
sobre o novo governo pelo lado externo.
O programa do BCE de injeção de liquidez e o alongamento da dívida grega também ajudam.
Mas a guilhotina continua focada no pescoço do país.
Qualquer solavanco nas taxas de juros internacionais faria desabar a lâmina decapitando a sociedade e o Syriza.
A
alternativa real depende de uma frente progressista que envolve
avanços políticos em toda a Europa. Pode acontecer aos saltos a partir
de agora.
Meta: substituir a austeridade suicida da troika por um plano Marshall de regeneração econômica da zona do euro.
É a tese de Yanis Varoufakis, economista de formação marxista, novo ministro da finança indicado pelo premiê Tsipras.
Em entrevista recente (leia nesta pág),
o ministro alerta para outra agenda imediata e imperativa, que
aproveite a nova correlação de forças eleitoral para romper o núcleo
duro da encruzilhada grega.
Qual?
Nas palavras de
Varoufakis: taxar os ricos e desmontar uma cleptocracia composta de
banqueiros, meios de comunicação e seus aliados no Estado.
Na Grécia, enquanto o país apodrecia a plutocracia engordava.
A
exemplo do que ocorre no Brasil, e em outros pagos, trata-se de uma
elite alérgica à justiça tributária, cuja bandeira inoxidável, na crise
ou fora dela, é a defesa desinteressada do arrocho fiscal e monetário.
Sempre
em nome dos bons fundamentos da República --aqueles que vão garantir o
que lhe interessa de fato: a proteção preventiva contra a taxação da
riqueza e o superávit fiscal suficiente para abastecer o ralo
insaciável dos juros.
Detentores de sólida endogamia com o
sistema financeiro global, os endinheirados apátridas de todas as
latitudes integram uma casta rentista que Piketty desnudou como o
grande parasita do nosso tempo.
Essa gigantesca lombriga alojada
no metabolismo das nações age determinada a engordar ininterruptamente,
às custas, acima e à frente do crescimento da produção e do bem-estar
coletovo.
‘Não estamos interessados apenas em voltar a 2010’,
alerta o economista Yanis Varoufakis, como a esclarecer que a crise
atual já vinha sendo chocada nos ovos da ameba cosmopolia, muito antes
de explodir a desordem sistêmica em 2008.
Nisso sobretudo, ele
tem algo a dizer em relação ao ajuste brasileiro que parece focado na
mera restauração das condições internacionais pré-crise de 2008 –o que
de resto parece ilusório diante das novas e adversas condições do
comércio global.
Combater o privilégio tributário da elite será uma das trincheiras mais desafiadoras do governo Syriza.
‘Não
é só um problema de evasão fiscal, mas sim de que grande parte da renda
dos ricos nem sequer é tributada’, pontua Varoufakis puxando o fio de
um outro gargalo clássico, que condensa na tragédia grega a encruzilhada
de outros governos, partidos e nações.
Sob a sanguinária
ditadura dos coronéis, que dominou o país de 1967 a 1974, a elite grega
já vivia um período de fastígio e evasão fiscal ímpar.
O
endividamento externo que hoje passa de 170% do PIB reflete em boa parte
o complacente intercurso entre a farda truculenta e plutocracia
fraudulenta.
Pesquisas indicam que sob o tacão dos coronéis menos de 100 mil abnegados pagavam imposto de renda na Grécia.
Era uma espécie de Olimpo no qual os sonegadores ocupavam o altar dos deuses.
Na
democracia, uma tentativa de afrontar a evasão, com o rastreamento por
satélite das piscinas nas mansões, foi driblada por uma corrida às capas
de grama sintética...
Nas últimas décadas, a socialdemocracia, o
Pasok, não teve a coragem de retirar as capas que recobriam
privilégios e caixas milionários dos ricos, dos bancos e dos meios de
comunicação.
O endividamento externo persistiu como uma solução de menor resistência.
Em vez de arrecadar das amebas gordas, optou-se pelo endividamento externo desenfreado, em sintonia com a lógica neoliberal.
A farra da liquidez e do crédito deu solvência ao modelo.
Com a adesão grega à União Europeia os controles ficariam mais rígidos.
O Tratado de Maastricht determina que o país membro não pode ostentar déficit fiscal superior a 3% do PIB.
A
saída encontrada pelos governantes e cleptocratas foi pagar polpudas
somas a consultorias e a grandes bancos norte-americanos, como a
indefectível Goldman Sachs, para maquiar a lambança sem afetá-la.
Sofisticadas
operações de engenharia contábil foram oferecidas ao país para
persistir no endividamento público, sem afrontar Maastricht, nem
tributar a elite local.
As capas de grama sintética cederam lugar a um bem urdido manto de criatividade delinquente.
Coisa típica da grande finança.
Um
dos artifícios chancelados pelo selo Goldman Sachs foi penhorar
receitas futuras do Estado grego, em troca de antecipações de recursos
junto aos credores.
O saque incluiu, por exemplo, anos e anos
de taxas de embarque e desembarque em aeroportos nacionais penhoradas
pelo Estado.
Rasparam o tacho da nação para evitar a tributação dos bolsos gordos.
Como
a antecipação de receita foi devorada pelo caminho, o futuro do tráfego
aéreo, desprovido de fundos para novos investimentos, terá sérios
problemas no país.
A irresponsabilidade ganha cores sugestivas quando se sabe que o turismo representa mais de 14% do PIB grego.
Agia-se como agem as elites predadoras em distintas fronteiras.
Tudo
se passa como se não houvesse amanhã, essa abstração para quem o tempo
consiste no átimo de segundo que separa o dedo da operação digital em
paraísos fiscais.
Durante anos foi assim que se deu.
O
Estado se endividou sem registrar o rombo como déficit público, graças
aos espertos petizes da Goldman Sachs –os mesmos que hoje dão ‘suporte’
intelectual ao jogral brasileiro que reclama ‘arrocho e fim das
‘pedaladas’ nas contas fiscais do governo Dilma.
Quando estourou a crise mundial, em 2007/8, a reversão do fluxo de crédito pôs em xeque a ciranda grega e o déficit explodiu.
Imaginou-se inicialmente que ele seria de 10,5%.
Em 2010 verificou-se que era da ordem de 15%.
Trazê-lo
à soleira dos 3% a ferro e fogo, como se fez, exigiu uma rendição
incondicional de sucessivos partidos e governantes, até a vitória do
Syriza no último domingo.
A Grécia deixou de ser uma nação nos últimos seis anos.
Transformou-se no grande açougue-escola do neoliberalismo.
Praticou-se ali as mais variadas modalidades de cortes (leia nesta pág. ‘Na Grécia, Levy não leva’).
Poucos foram poupados dos talhos profundos para extrair libras de carne em sentido figurado e literal.
O arrocho derrubou o PIB em 25%, produziu 27% de desemprego, elevou em 40% os suicídios, cortou em 20% as aposentadorias.
Pacotes
ortodoxos sucessivos transferiram à população –na forma de um
esfarelamento de serviços, salários, privatizações e imposto indireto—
o sacrifício de sanear décadas de ladroagem fiscal e covardia política.
Fica mais fácil entender a disposição ao risco assumida pelos eleitores no último domingo.
A principal promessa do Syriza não é apenas afrontar a troika e frau Merkel.
Mas,
sim, como diz Varoufakis, resolver um passivo histórico que remonta à
conciliação das elites na transição da ditadura para a democracia.
Ou seja, redistribuir a renda e sacrifícios até então determinados pela cleptocracia.
Soa inspirador?
Decididamente,
o diagnóstico do ministro Varoufakis é diferente do que pensa seu
congênere, Joaquim Levy, quando se grata de restaurar a saúde das
contas públicas e devolver poder de investimento ao Estado.
Num
tempo em que todo capital se comporta como capital estrangeiro, as
operações offshores para ludibriar o fisco constituem o novo normal das
elites e grandes corporações.
Ou alguém acha que o labiríntico
passeio do dinheiro frio das empreiteiras no caso Petrobrás e no do
metrô tucano foi montado apenas para esse fim?
Ou imagina que apenas elas estão envolvidas no submundo empresarial das triangulações em paraísos fiscais?
Ou,
por distração, supõe que os bancos, justo eles, zeladores do dinheiro
grosso, ficariam à margem das acrobacias da ‘elisão’ fiscal -- a
sonegação untada com chantilly de legalidade?
Bradesco e Itaú-Unibanco, por exemplo.
Noticiou-se agora, economizaram R$ 200 milhões em impostos em 2008 e 2009.
Bastou
registrarem parte de seus lucros no elegante e generoso Grão-Ducado de
Luxemburgo, um dos mais atuantes paraísos fiscais europeus.
É apenas um caso em uma amostra de somente dois bancos.
Por
que o glorioso jornalismo brasileiro não dedica a esse assunto o mesmo
empenho investigativo –saudável, diga-se-- exibido em relação ao
intercurso de corrupção e favorecimento entre políticos e grandes
corporações?
Um pedaço da resposta talvez esteja no fato de que os cronistas também são personagens da trama que encobrem.
Exemplo recente?
A
Receita brasileira concluiu no ano passado que a gloriosa Rede Globo
montou uma "intrincada engenharia" para sonegar impostos sobre os
direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.
Um blog da mídia alternativa, o bravo Cafezinho, escancarou o esquema e cobrou o DARF devido , da ordem de R$ 350 milhões.
O que aconteceu até agora?
Nada.
Ou
melhor: o braço mdiático da cleptocracia local multiplicou a campanha
contra os ‘blogs sujos’. E reforçou a guerra aberta à regulação das
comunicações no Brasil.
Longa vida ao ministro Varoufakis.