sábado, 10 de janeiro de 2015

O combate ao crime organizado nas demandas judiciais de saúde

O combate ao crime organizado nas demandas judiciais de saúde

O combate ao crime organizado nas demandas judiciais de saúde




            A denúncia recente de fraude em cirurgias para
implantação de próteses ortopédicas, jocosamente apelidada de “Máfia
Mais Próteses”, é mais um dentre inúmeros escândalos na saúde pública ao
longo de décadas.


            Reproduzimos abaixo trecho de relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) datado de 2013, que faz um alerta:





 “o Estado do Rio Grande do Sul lidera o ranking nacional de
judicialização da saúde pública, com 74 mil processos e 1.900 novas
ações ajuizadas todos os meses. “Dentre as demandas, é cada vez maior o
número de ações impetradas visando ao fornecimento de remédios
gratuitos. Por trás desse número expressivo, existiriam redes mafiosas
que promovem o uso irracional de medicamentos. "Nunca se tomou tanto medicamento desnecessário e em doses tão exageradas",
afirmou o assessor técnico da área de Saúde da [Federação das
Associações de Municípios do Rio Grande do Sul] FAMURS, Leonildo
Mariani, com base em dados da Organização Mundial da Saúde;


                   de acordo com um estudo da Procuradoria Geral do
Estado (PGE), 44% dos 128 mil atendimentos prestados pelo SUS no RS
foram realizados por força de decisão judicial. Entre os efeitos
negativos da judicialização da saúde está o aumento dos gastos públicos.
Foi citado como exemplo o município de Júlio de Castilhos, onde 300
ações representaram um custo de R$ 40 mil para a prefeitura. Com o mesmo
valor, o município poderia oferecer remédios para 14 mil pacientes por
meio da Farmácia Popular;



                   outro exemplo emblemático se refere a um único
remédio contra artrose que representou um gasto de R$ 2,4 milhões para o
governo gaúcho, que foi citado pelo Procurador da PGE Lourenço
Orlandini, segundo o qual "o juiz acaba liberando um medicamento sem eficácia comprovada e fora da lista oficial". Outra informação agrava ainda mais esse cenário: em outros casos, constatou-se que, após a compra, os remédios não são distribuídos por falta de procura dos pacientes [grifo nosso]. Em julho deste ano, o governo já contabilizava 28 mil caixas em estoque;


                   o alto índice de processos seria resultado da ação
de organizações criminosas, compostas por médicos, advogados,
empresários e até pacientes. "Há laboratórios que pressionam os pacientes a entrar na justiça para buscar um medicamento", alertou o Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Pedro Poli;


                   segundo o Desembargador do Tribunal de Justiça
Rogério Leal, essas organizações constituem uma máfia da saúde pública, verbis:


                   "Criam-se demandas artificiais de medicamentos
por meio de ações judiciais para que determinadas pessoas repassem
esses medicamentos para uma rede de distribuição de produtos fármacos no
mercado negro."



                   a judicialização envolve outras áreas relevantes, como acesso a internações, cirurgias e consultas.(...)


                   essa matéria vem causando preocupação em nível
nacional, tanto que o Conselho Nacional de Justiça, por meio da
Resolução CNJ nº 107/2010, criou o Fórum Nacional do Judiciário para
monitorar as demandas de assistência à saúde. No âmbito desse Fórum,
foram instituídos Comitês Executivos Estaduais, constituídos por membros
das Justiças Federal e Estadual, dos Ministérios Públicos Federal e
Estadual e das Defensorias Públicas Federal e Estadual, por gestores da
área da Saúde e por representantes dos prestadores de serviços públicos e
privados e da sociedade civil;


            no Rio Grande do Sul foi firmado acordo de cooperação
técnica pela Defensoria Pública do Estado, pelo Ministério Público
Estadual, pela Secretaria de Saúde do Estado, pelo Tribunal de Justiça
do Estado, pela Procuradoria Regional da União – 4ª Região, pela
Procuradoria Geral do Estado, pela Federação das Associações de
Municípios do Estado e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado. O
referido acordo visou estabelecer medidas que deem efetividade aos
ditames constitucionais, por meio da adoção de metodologia de
planejamento e gestão sistêmicas com foco na saúde.”





Consultas processuais nos sites dos Tribunais de Justiça comprovam a
existência de milhares de ações em primeira e segunda instância para
obrigar Estados e Municípios a fornecerem - geralmente em caráter de
urgência - medicamentos, suplementos nutricionais, próteses, cadeiras de
rodas e equipamentos médicos, ou a realizarem exames diagnósticos e
cirurgias de média e alta complexidade, além de internações em leitos de
UTI privados até surgir vaga num hospital do SUS.


O que pouca gente fica sabendo é o desfecho de muitas dessas ações.
Como “quem pode manda e quem tem juízo obedece”, a secretaria de saúde -
não raro após espernear na esfera administrativa e ter todos os
recursos negados pela Justiça - cumpre a sentença judicial, até sob pena
de multa pecuniária ou prisão do titular da pasta. Adquire com dinheiro
do povo o remédio ou outro item solicitado na ação. Porém, muitos
doentes e familiares nem vão buscar o produto, que acaba encalhado num
almoxarifado, e sequer respondem às convocações do serviço social.
Procurados, alguns vizinhos até informam que a família do paciente se
mudou para outro estado ou sumiu.


No site do TCU estão publicados diversos documentos de auditoria
apontando falhas no gerenciamento da assistência farmacêutica no SUS,
tais como falta de informatização e mau planejamento do tipo e
quantidade dos remédios a serem adquiridos pelo estado ou município.
Abundam casos em que os auditores identificam brechas para desvio de
recursos públicos ou seu desperdício com medicamentos cuja validade
expira antes que sejam usados.


Infelizmente ainda há médicos e cirurgiões dentistas que trabalham no
SUS e trocam receitas de clínicas privadas por receituário do serviço
público. Angariam a simpatia da clientela dando-lhe o direito de pedir à
secretaria de saúde o fornecimento gratuito de remédio que sequer
consta das listas oficiais, baseadas nos Protocolos Clínicos e
Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde. Diante da negativa da
secretaria, o paciente ingressa com ação judicial. Claro que há
profissionais não fazem isso de má fé, mas porque não têm o hábito de
estudar e receitam os remédios que os propagandistas de indústrias
farmacêuticas levam ao seu conhecimento, sem nem lerem a bula do que
estão receitando.


Num Brasil que não aguenta esperar mais para ter um SUS de qualidade e
discute como melhorar o financiamento do Sistema, é essencial aumentar a
eficiência da gestão de saúde nos estados e municípios e intensificar
os mecanismos de controle, através dos Tribunais de Contas e do
Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus).


A colaboração da população, denunciando fraudes ao Ministério
Público, à polícia e às ouvidorias das três esferas de governo, é peça
chave nesse processo.


Aos profissionais de saúde cabe se conscientizarem e reciclarem os
conhecimentos científicos antes de prescrever medicamentos. A pressão da
indústria farmacêutica induz os profissionais a receitarem mais do que o
necessário, e a propaganda de remédios na mídia incentiva os pacientes a
pedirem para tomar remédios de que ouviram falar. Mas o saber
científico, a honestidade intelectual e o bom senso do médico é que
sempre devem prevalecer.


Racionalizar a oferta de medicamentos e a realização de exames e
tratamentos no SUS não apenas economiza recursos públicos, mas também
reduz o risco de efeitos colaterais e complicações que podem causar a
morte ou sequelas permanentes no paciente. E a vida humana não tem
preço.


O que todos queremos é que a apuração da responsabilidade e
consequente punição exemplar da máfia das próteses ortopédicas sejam o
capítulo final da corrupção e de outras ações criminosas na saúde
pública. Que comece agora a indispensável era do Mais Ética.


Aracy P. S. Balbani é médica. CRM-SP 81.725


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