Por que há tragédias e mortes que dão audiência e outras não?
Leonardo Sakamoto
Mantive,
durante anos, na sala do meu escritório uma capa da revista Time
retratando centenas de corpos espalhados no chão de Ruanda, vítimas do
genocídio perpetrado pela maioria hutu contra a minoria tutsi em 1994.
Nela, pessoas procuram por parentes e aves procuravam por almoço.
O
título era algo como “Este é o início dos últimos dias, o apocalipse'' –
talvez uma tentativa de chamar a atenção dos Estados Unidos e Europa
para o massacre através de um elemento simbólico que está no alicerce de
sua fundação: o julgamento final do Novo Testamento.
Mas não era o
começo do fim, apenas mais um expurgo – tanto que, após os 800 mil
mortos em Ruanda, tivemos tempo de matar mais 400 mil no Sudão.
Essa
capa era um lembrete para me empurrar para fora da zona de conforto. E
também uma verdade incômoda. Em 1998, quando estava cobrindo a guerra
pela independência de Timor Leste, onde o exército indonésio matou – de
bala ou de fome – mais de 30% da população da ilha, um vendedor me
disse, ao saber de onde eu era, que ficava feliz pelo Brasil, visto como
um grande irmão lusófono, apoiar a luta.
Não tive coragem de
dizer a ele que o meu país nem sabia de sua existência e que se aqueles
mauberes pardos vivessem ou morressem, praticamente nenhuma ruga de
preocupação seria produzida. Duvido que entre vocês, leitores, muitos
tenham ouvido falar do Massacre do Cemitério de Santa Cruz, em Dili,
capital de Timor. Imagine quantos massacres mais, mundo afora, acontecem
invisíveis.
Por que relatamos tão pouco mortes nesses locais? A
discussão faz parte de alguns debates acalorados em jornalismo. Isso é
de interesse público? Do nosso público? As pessoas se interessam em
saber sobre isso? Como as pessoas vão se interessar sobre isso se não as
informamos com a devida importância? É possível ter opinião formada
(não preconceito de internet) sobre aquilo do qual nunca se ouviu falar?
Enfim, “Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque
vende mais''?
Some-se a isso alguns elementos. Na teoria, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito à
dignidade por termos nascido humanos. Na prática, a vida de não brancos
vale menos que a vida de brancos. E a vida de ricos vale mais que a vida
de pobres. E as das mulheres menos que as dos homens. Simples assim. Se
essa vida for de religião que cause estranhamento aos olhos ocidentais,
pior ainda.
Outro elemento é a justificativa cultural, de que
mortes em Nova Iorque, Roma, Paris e Londres causam mais impacto porque
estão mais “próximas'' de nós. Elas aconteceriam no mesmo “caldo
cultural'' em que estamos inseridos, com o qual temos uma histórica
troca e convivência mútua e através do qual construímos nossa sociedade.
Sabemos
quem são e como vivem e trabalham os moradores dessas cidades. E, a
partir desse conhecimento, geramos empatia: nos projetamos no outro,
entendemos a sua dor e conseguimos até senti-la.
Sim, mas se
dividimos elementos simbólicos com a “metrópole'' também temos elos com
as outras “colônias'', que passaram por processos históricos semelhantes
aos nossos e, como nós, têm que pagar, até hoje, seus tributos. Seus
problemas econômicos e sociais são semelhantes e, não raro, suas dores
também. Mas damos as costas ao Sul e nos projetamos apenas ao Norte,
sonhando, talvez um dia, em sermos reconhecidos como parte da mesma
civilização ocidental do qual não fazemos parte.
Não é inato um
jovem brasileiro se interessar mais por Miami do que por La Paz. Ele
aprende isso. Da mesma forma que aprende que a África, boa parte da
América Latina e o Sul da Ásia são locais em que a vida não vale muita
coisa, em que selvagens se matam desde sempre, como se as marcas da
colonização e os processos políticos e econômicos globais, somados à
ignomínia dos seus líderes locais, não valessem de nada.
Se eles tivessem oportunidade de conhecer o outro, as coisas seriam diferentes.
Uma
menina-bomba, com cerca de dez anos de idade, teria se explodido, neste
sábado (10), levando 20 pessoas consigo em um mercado na cidade de
Maiduguri, norte da Nigéria, área de atuação do Boko Haram – milícia
fundamentalista que deturpa os ensinamentos do islamismo em sua luta por
poder. Ganhou pouca atenção no noticiário.
Da mesma forma, provavelmente você nunca ouviu falar de Ricky.
Tive
o prazer de conhecê-lo há alguns anos. Sua história é incrível. Ele foi
raptado e escravizado quando criança pelo Exército de Resistência do
Senhor, em Uganda – um grupo fundamentalista que deturpa os ensinamentos
do cristianismo em sua luta por poder, liderado por Joseph Kony, que se
dizia porta-voz de Deus. Os meninos passavam por lavagem cerebral para
se tornar soldados e, as meninas, para servir de escravas sexuais. Ele
conseguiu fugir, graduou-se e criou a Friends of Orphans, uma
organização não-governamental que luta para reintegrar esses jovens à
sociedade.
Disse-me que não há como alguém conhecer uma criança
que foi escravizada para matar e morrer e aquilo não mudar a vida dessa
pessoa definitivamente. Porque o relato levaria a perceber que todos
aqueles que matam em nome de Alá ou Jeová, na verdade, não acreditam
neles. E que mesmo esses “combatentes'' não são bestas-feras, mas
pessoas transformadas em máquinas de guerra. Às vezes em nome daquilo
que enche o tanque de nossos carros, às vezes em nome daquilo que brilha
em dedos e pescoços.
Entramos na rede e, em um pé de página, a
Anistia Internacional denuncia que os açougueiros do Boko Haram podem
ter matado centenas, em sua maioria mulheres, crianças e idosos, na
Nigéria. Falta braços para apurar e checar a informação ocupados com
outros assuntos . Alguns importante e que também são de interesse
público. Outros, nem tanto.
Temos afinidade com aquilo que nos é
mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que a
libertação de 150 escravos que sangram na Amazônia para produzir boi que
muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de um jovem
sequestrado em nossa cidade.
Mas todos sabem o que é uma criança. É
duro, portanto, imaginar que não desperte sentimentos. Talvez isso
ocorra por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga
consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer
qualquer coisa para resolver o problema – mesmo que a indignação com a
história de vida daquela criança africana possa te levara a ajudar na
melhoria da qualidade de vida das crianças que estão ao seu lado.
Talvez
a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar
perdido numa cama na beira de estrada depois de uma hora de sexo forçado
ou coberta de sangue após um dia de confronto armado ou explodida em
mil pedaços após um ataque suicida não é uma coisa fofa de se ver. Pelo
contrário, para muitos é tão repugnante a ponto de transferirem a culpa
pelo ocorrido para a própria vítima que “se deixou ficar naquela
situação deplorável''.
A discussão não é apenas sobre a distante
África, mas também sobre as periferias de nossas cidades que ficam logo
ali. Em São Paulo, no Rio e em tantas outras, há uma matança de jovens,
negros e pobres – segundo as estatísticas do poder público. Mas desde
que seu sangue não respingue nos outros, tudo bem.
Não estou
comparando tragédias pelo número de mortes, uma vez que uma única morte
pode compor uma tragédia. Mas a indignação por algo não exclui a
indignação por outra coisa. E jogar para baixo do tapete os incômodos
que também dizem respeito a todos nós, não fazem eles desaparecerem.
Portanto,
busquem informação na internet para além de sua zona de conforto. E
exijam de nós, jornalistas, que tenhamos coragem de oferecer
informação que as pessoas não querem ler a despeito da audiência, da
circulação e de outras formas de “medir'' o interesse público.
Por
fim, dei de presente a capa da revista para uma amiga que estava em
seus primeiros passos no jornalismo. Não que eu não precise mais do
lembrete, a ética é o exercício diário da memória. Mas aquilo é muito
forte para ficar na memória de uma pessoa só. Torço para que a geração
dela, inspirada em nossos erros e acertos, seja melhor que a nossa.
Em tempo: Há boas coberturas com olhar brasileiro sobre essas regiões do planeta. Sem demérito aos demais colegas, destaco as reportagens sobre a epidemia de ebola em Serra Leoa, tocadas pela repórter especial Patrícia Campos Mello e pelo repórter fotográfico Avener Prado, ambos da Folha de S.Paulo.
durante anos, na sala do meu escritório uma capa da revista Time
retratando centenas de corpos espalhados no chão de Ruanda, vítimas do
genocídio perpetrado pela maioria hutu contra a minoria tutsi em 1994.
Nela, pessoas procuram por parentes e aves procuravam por almoço.
O
título era algo como “Este é o início dos últimos dias, o apocalipse'' –
talvez uma tentativa de chamar a atenção dos Estados Unidos e Europa
para o massacre através de um elemento simbólico que está no alicerce de
sua fundação: o julgamento final do Novo Testamento.
Mas não era o
começo do fim, apenas mais um expurgo – tanto que, após os 800 mil
mortos em Ruanda, tivemos tempo de matar mais 400 mil no Sudão.
Essa
capa era um lembrete para me empurrar para fora da zona de conforto. E
também uma verdade incômoda. Em 1998, quando estava cobrindo a guerra
pela independência de Timor Leste, onde o exército indonésio matou – de
bala ou de fome – mais de 30% da população da ilha, um vendedor me
disse, ao saber de onde eu era, que ficava feliz pelo Brasil, visto como
um grande irmão lusófono, apoiar a luta.
Não tive coragem de
dizer a ele que o meu país nem sabia de sua existência e que se aqueles
mauberes pardos vivessem ou morressem, praticamente nenhuma ruga de
preocupação seria produzida. Duvido que entre vocês, leitores, muitos
tenham ouvido falar do Massacre do Cemitério de Santa Cruz, em Dili,
capital de Timor. Imagine quantos massacres mais, mundo afora, acontecem
invisíveis.
Por que relatamos tão pouco mortes nesses locais? A
discussão faz parte de alguns debates acalorados em jornalismo. Isso é
de interesse público? Do nosso público? As pessoas se interessam em
saber sobre isso? Como as pessoas vão se interessar sobre isso se não as
informamos com a devida importância? É possível ter opinião formada
(não preconceito de internet) sobre aquilo do qual nunca se ouviu falar?
Enfim, “Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque
vende mais''?
Some-se a isso alguns elementos. Na teoria, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito à
dignidade por termos nascido humanos. Na prática, a vida de não brancos
vale menos que a vida de brancos. E a vida de ricos vale mais que a vida
de pobres. E as das mulheres menos que as dos homens. Simples assim. Se
essa vida for de religião que cause estranhamento aos olhos ocidentais,
pior ainda.
Outro elemento é a justificativa cultural, de que
mortes em Nova Iorque, Roma, Paris e Londres causam mais impacto porque
estão mais “próximas'' de nós. Elas aconteceriam no mesmo “caldo
cultural'' em que estamos inseridos, com o qual temos uma histórica
troca e convivência mútua e através do qual construímos nossa sociedade.
Sabemos
quem são e como vivem e trabalham os moradores dessas cidades. E, a
partir desse conhecimento, geramos empatia: nos projetamos no outro,
entendemos a sua dor e conseguimos até senti-la.
Sim, mas se
dividimos elementos simbólicos com a “metrópole'' também temos elos com
as outras “colônias'', que passaram por processos históricos semelhantes
aos nossos e, como nós, têm que pagar, até hoje, seus tributos. Seus
problemas econômicos e sociais são semelhantes e, não raro, suas dores
também. Mas damos as costas ao Sul e nos projetamos apenas ao Norte,
sonhando, talvez um dia, em sermos reconhecidos como parte da mesma
civilização ocidental do qual não fazemos parte.
Não é inato um
jovem brasileiro se interessar mais por Miami do que por La Paz. Ele
aprende isso. Da mesma forma que aprende que a África, boa parte da
América Latina e o Sul da Ásia são locais em que a vida não vale muita
coisa, em que selvagens se matam desde sempre, como se as marcas da
colonização e os processos políticos e econômicos globais, somados à
ignomínia dos seus líderes locais, não valessem de nada.
Se eles tivessem oportunidade de conhecer o outro, as coisas seriam diferentes.
Uma
menina-bomba, com cerca de dez anos de idade, teria se explodido, neste
sábado (10), levando 20 pessoas consigo em um mercado na cidade de
Maiduguri, norte da Nigéria, área de atuação do Boko Haram – milícia
fundamentalista que deturpa os ensinamentos do islamismo em sua luta por
poder. Ganhou pouca atenção no noticiário.
Da mesma forma, provavelmente você nunca ouviu falar de Ricky.
Tive
o prazer de conhecê-lo há alguns anos. Sua história é incrível. Ele foi
raptado e escravizado quando criança pelo Exército de Resistência do
Senhor, em Uganda – um grupo fundamentalista que deturpa os ensinamentos
do cristianismo em sua luta por poder, liderado por Joseph Kony, que se
dizia porta-voz de Deus. Os meninos passavam por lavagem cerebral para
se tornar soldados e, as meninas, para servir de escravas sexuais. Ele
conseguiu fugir, graduou-se e criou a Friends of Orphans, uma
organização não-governamental que luta para reintegrar esses jovens à
sociedade.
Disse-me que não há como alguém conhecer uma criança
que foi escravizada para matar e morrer e aquilo não mudar a vida dessa
pessoa definitivamente. Porque o relato levaria a perceber que todos
aqueles que matam em nome de Alá ou Jeová, na verdade, não acreditam
neles. E que mesmo esses “combatentes'' não são bestas-feras, mas
pessoas transformadas em máquinas de guerra. Às vezes em nome daquilo
que enche o tanque de nossos carros, às vezes em nome daquilo que brilha
em dedos e pescoços.
Entramos na rede e, em um pé de página, a
Anistia Internacional denuncia que os açougueiros do Boko Haram podem
ter matado centenas, em sua maioria mulheres, crianças e idosos, na
Nigéria. Falta braços para apurar e checar a informação ocupados com
outros assuntos . Alguns importante e que também são de interesse
público. Outros, nem tanto.
Temos afinidade com aquilo que nos é
mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que a
libertação de 150 escravos que sangram na Amazônia para produzir boi que
muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de um jovem
sequestrado em nossa cidade.
Mas todos sabem o que é uma criança. É
duro, portanto, imaginar que não desperte sentimentos. Talvez isso
ocorra por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga
consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer
qualquer coisa para resolver o problema – mesmo que a indignação com a
história de vida daquela criança africana possa te levara a ajudar na
melhoria da qualidade de vida das crianças que estão ao seu lado.
Talvez
a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar
perdido numa cama na beira de estrada depois de uma hora de sexo forçado
ou coberta de sangue após um dia de confronto armado ou explodida em
mil pedaços após um ataque suicida não é uma coisa fofa de se ver. Pelo
contrário, para muitos é tão repugnante a ponto de transferirem a culpa
pelo ocorrido para a própria vítima que “se deixou ficar naquela
situação deplorável''.
A discussão não é apenas sobre a distante
África, mas também sobre as periferias de nossas cidades que ficam logo
ali. Em São Paulo, no Rio e em tantas outras, há uma matança de jovens,
negros e pobres – segundo as estatísticas do poder público. Mas desde
que seu sangue não respingue nos outros, tudo bem.
Não estou
comparando tragédias pelo número de mortes, uma vez que uma única morte
pode compor uma tragédia. Mas a indignação por algo não exclui a
indignação por outra coisa. E jogar para baixo do tapete os incômodos
que também dizem respeito a todos nós, não fazem eles desaparecerem.
Portanto,
busquem informação na internet para além de sua zona de conforto. E
exijam de nós, jornalistas, que tenhamos coragem de oferecer
informação que as pessoas não querem ler a despeito da audiência, da
circulação e de outras formas de “medir'' o interesse público.
Por
fim, dei de presente a capa da revista para uma amiga que estava em
seus primeiros passos no jornalismo. Não que eu não precise mais do
lembrete, a ética é o exercício diário da memória. Mas aquilo é muito
forte para ficar na memória de uma pessoa só. Torço para que a geração
dela, inspirada em nossos erros e acertos, seja melhor que a nossa.
Em tempo: Há boas coberturas com olhar brasileiro sobre essas regiões do planeta. Sem demérito aos demais colegas, destaco as reportagens sobre a epidemia de ebola em Serra Leoa, tocadas pela repórter especial Patrícia Campos Mello e pelo repórter fotográfico Avener Prado, ambos da Folha de S.Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário