sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Santayana e os espinhos sangrentos da “primavera árabe

Santayana e os espinhos sangrentos da “primavera árabe” | TIJOLAÇO



É longo como uma aula.


E é cheio de conteúdo como seria uma aula magnífica.


Poucas vezes pôde-se ler, em português, uma análise mais lúcida do
que está acontecendo no planeta, nesta  “guerra ao terror” que, afinal,
transformou o terror em algo quase onipresente no cenário mundial.


Mas o terror e os protestos contra o terror, como quase tudo neste mundo desigual não é igual entre os homens.


E como quase tudo neste planeta, é criado e manipulado.


Tomo emprestada, portanto, a grande lição de Santayana e a transmito
aos leitores, num período em que minha situação pessoal não me tem
permitido escrever com regularidade.


O terror, o Ocidente e a semeadura do caos

Há alguns dias, terroristas franceses, ligados, aparentemente, à
Al Qaeda, atacaram a redação do jornal satírico parisiense Charlie
Hebdo, em represália pela publicação de caricaturas sobre o profeta
Maomé.



Doze pessoas foram assassinadas, entre elas alguns dos mais
famosos cartunistas e intelectuais do país, e dois cidadãos de origem
árabe, um deles, estrangeiro, que trabalhava há pouco tempo na
publicação, e um membro das forças de segurança que estava nas
imediações.



Logo em seguida, houve, também, outro ataque, a um supermercado
kosher na periferia de Paris, em que 4 judeus franceses e estrangeiros
morreram.



Dias depois, milhões de pessoas, e personalidades de vários
países do mundo, se reuniram nas ruas da capital francesa, para
protestar contra o atentado, e se manifestar contra o terrorismo e pela
liberdade de expressão.



Na mesma primeira quinzena de janeiro, explodiram carros-bomba, e
homens-bomba, também ligados a grupos radicais islâmicos, no Líbano
(Beirute), na Síria (Aleppo), na Líbia (Benghazi), e no Iraque
(Al-Anbar), com dezenas de mortos, em sua maioria civis.



Mas, como sempre, não seria normal esperar que algum destes fatos
tivesse a mesma repercussão do atentado em Paris, capital de um país
europeu, ou que a alguém ocorresse produzir cartazes e neles escrever Je
suis Ahmed, ou Je suis Ali, ou Je suis Malak, Malak Zahwe, a garota
brasileira, paranaense, de 17 anos, que morreu na explosão de um
carro-bomba, junto com mais 4 pessoas (20 ficaram feridas), no dia 2 de
janeiro, em Beirute.



No entanto, os homens, mulheres e crianças, mortos, todos os
dias, no Oriente Médio e no Norte da África, são tão frágeis e
preciosos, em sua fugaz condição humana, quanto os que morreram na
França, e vítimas dos mesmos criminosos, criados pela onda de
radicalização e rápida expansão do fundamentalismo islâmico, nos últimos
anos.



Raivosas, autoritárias, intempestivas, numerosas vozes se
alçaram, em vários países, incluído o Brasil, para gritar – em
raciocínio tão ignorante quanto irascível – que o terrorismo não tem que
ser “compreendido” e, sim, “combatido”.



Os filósofos e estrategistas chineses ensinam, há séculos, que
sem conhecê-los, não é possível vencer os eventuais adversários, nem
mudar o mundo.



Além disso, não podemos, por aqui, por mais que muitos queiram
emular os países “ocidentais”, em seu ardoroso “norte-americanismo” e
“eurocentrismo”, esquecer que existem diferenças históricas, e de
política externa, entre o Brasil, os EUA, e países da OTAN como a
França.



Podemos dizer que Somos Charlie, porque defendemos a liberdade e a
democracia, e não aceitamos que alguém morra por fazer uma caricatura,
do mesmo jeito que não podemos aceitar que uma criança pereça
bombardeada pela OTAN no Afeganistão ou na Líbia, ou porque estava de
passagem, no momento em que explodiu um carro-bomba, por um posto de
controle em Aleppo, na Síria.



Mas é preciso lembrar que, ao contrário da França, nunca
colonizamos países árabes e africanos, não temos o costume de fazer
charges sobre deuses alheios em nossos jornais, não jogamos bombas sobre
países como a Líbia, não temos bases militares fora do nosso
território, não colaboramos com os EUA em sua política de expansão e
manutenção de uma certa “ordem” ocidental e imperial, e, talvez, por
isso mesmo – graças a sábia e responsável política de Estado, que inclui
o princípio constitucional de não intervenção em assuntos de outros
países – não sejamos atacados por terroristas em nosso território.



As raízes dos atentados de Paris, e do mergulho do Oriente Médio
na maior, e, com certeza, mais profunda tragédia de sua história, não
está no Al Corão ou nas charges contra o Profeta Maomé, embora estas
últimas possam ter servido de pretexto para ataques como o que ocorreu
em Paris.



Elas começaram a se tornar mais fortes, nos últimos anos, quando o
“ocidente”, mais especificamente alguns países da Europa e os EUA,
tomaram a iniciativa de apoiar e insuflar, usando também as redes
sociais, o “conto do vigário” da Primavera Árabe em diversos países, com
a intenção de derrubar regimes nacionalistas que, com todos os seus
defeitos, tinham conquistado certo grau de paz, desenvolvimento e
estabilidade para seus países nas últimas décadas.



Inicialmente promovida, em 2011, como “libertária”,
“revolucionária”, a Primavera Árabe iria, no curto espaço de três anos,
desestabilizar totalmente a região, provocar massacres, guerras civis,
golpes de Estado, e alcançar, por meio da intervenção militar direta e
indireta da OTAN e dos EUA em vários países, a meta de tirar do poder, a
qualquer custo, regimes que lutavam para manter um mínimo de
independência e soberania em suas relações com os países mais ricos.



Quando os EUA, com suas “primaveras” – que não dão flores, mas
são fecundas em crimes e cadáveres – não conseguem colocar no poder um
governo alinhado com seus interesses, como na Ucrânia e no Egito, jogam
irmão contra irmão e equipam com armas, explosivos, munições,
terroristas, bandidos e assassinos para derrubar quem estiver no comando
do país.



O objetivo é destruir a unidade nacional, a identidade local, o
Estado e as instituições, para que essas nações não possam, pelo menos
durante longo período, voltar a organizar-se, a ponto de tentar
desafiar, mesmo que em pequena escala, os interesses norte-americanos.



Foi assim que ocorreu com a intervenção dos EUA e de aliados
europeus como a Itália e a França – contra a recomendação de Brasil,
Rússia, Índia e China, no Conselho de Segurança da ONU – no Iraque, na
Líbia e na Síria.



Durante décadas, esses países – com quem o Brasil tinha, desde os
anos 1970, boas relações – viveram sob relativa estabilidade, com a
economia funcionando, crianças indo para a escola, e diferentes etnias,
religiões e culturas, dividindo, com eventuais disputas, o mesmo
território.



Estradas, rodovias, sistemas de irrigação, foram construídos –
também com a ajuda de técnicos, operários e engenheiros brasileiros –
com os recursos do petróleo, e países como o Iraque chegavam a importar
automóveis, como no caso de milhares de Volkswagens Passat fabricados no
Brasil, para vender aos seus cidadãos de forma subsidiada.



Na Líbia de Muammar Kadafi, segundo o próprio World Factbook da
CIA, 95% da população era alfabetizada, a expectativa de vida chegava,
para os homens, segundo dados da ONU, a 73 anos, e a renda per capita e o
IDH estavam entre os maiores do Terceiro Mundo, mas esses dados nunca
foram divulgados normalmente pela imprensa “ocidental”.



Pode-se perguntar a milhares de brasileiros que estiveram no
Iraque, que hoje têm entre 50 e 70 anos de idade, se, naquela época,
sunitas e xiitas se matavam aos tiros pelas ruas, bombas explodiam em
Basra e Bagdá todos os dias, como explodem hoje, a qualquer momento,
também em Trípoli ou Damasco, ou milhares de órfãos tentavam atravessar
montanhas e rios sozinhos, pisando nos restos de outras crianças, mortas
em conflitos incentivados por “potências” estrangeiras, ou tentavam
sobreviver caçando, a pedradas, ratos por entre escombros das casas e
hospitais em que nasceram.



São, curdos, xiitas, sunitas, drusos, armênios, cristãos maronitas, inimigos?


Antes, trabalhavam nos mesmos escritórios, viviam nas mesmas
ruas, seus filhos frequentavam as mesmas salas de aula, mesmo que eles
não tivessem escolhido, no início, viver como vizinhos.



Assim como no caso de hutus e tutsis em Ruanda, e em inúmeras
ex-colônias asiáticas e africanas, as fronteiras dos países do Oriente
Médio foram desenhadas, na ponta do lápis, ao sabor da vontade do
Ocidente, quando da partilha do continente africano por europeus,
obedecendo não apenas ao resultado de Conferências como a de Berlim, em
1884, mas também à máxima de que sempre se deve “dividir para comandar”,
mantendo, de preferência, etnias de religiões e idiomas diferentes
dentro de um mesmo território ocupado pelo colonizador.



Eram Saddam Hussein e Muammar Kadafi, ditadores? É Bashar Al Assad, um déspota sanguinário?


Quando eles estavam no poder, não havia atentados terroristas em seus países.


E qual é a diferença deles e de seus regimes, para os líderes e
regimes fundamentalistas islâmicos comandados por xeques e emires, na
mesma região, em que as mulheres – ao contrário dos governos seculares
de Saddam, Kadafi e Assad – são obrigadas a usar a burka, não podem sair
de casa sem a companhia do irmão ou do marido, se arriscam a ser
apedrejadas até a morte ou chicoteadas em caso de adultério, e não há
eleições, a não ser o fato de que esses regimes são dóceis aliados do
“ocidente” e dos EUA?



Se os líderes ocidentais viam Kadafi como inimigo, bandido,
estuprador e assassino, por que ele recebeu a visita do
primeiro-ministro britânico Tony Blair, em 2004; do Presidente francês
Nicolas Sarkozy – a quem, ao que tudo indica, emprestou 50 milhões de
euros para sua campanha de reeleição – em 2007; da Secretária de Estado
dos EUA, Condoleeza Rice, em 2008; e do primeiro-ministro italiano
Silvio Berlusconi em 2009?



Por que, apenas dois anos depois, em março de 2011 – depois de
Kadafi anunciar sua intenção de nacionalizar as companhias estrangeiras
de petróleo que operavam, ou estavam se preparando para entrar na Líbia
(Shell, ConocoPhillips, ExxonMobil, Marathon Oil Corporation, Hess
Company) esses mesmos países e os EUA, atacaram, com a desculpa de criar
uma Zona de Exclusão Aérea sobre o país, com 110 mísseis de cruzeiro,
apenas nas primeiras horas, Trípoli, a capital líbia, e instalações do
governo, e armaram milhares de bandidos – praticamente qualquer um que
declarasse ser adversário de Kadafi – para que o derrubassem, o
capturassem e finalmente o espancassem, a murros e pontapés, até a
morte?



Ora, são esses mesmos bandidos, que, depois de transformar, com
armas e veículos fornecidos por estrangeiros, a Líbia em terra de
ninguém, invadiram o Iraque e, agora, a Síria, e se uniram para formar o
Estado Islâmico, que pretende erigir uma grande nação terrorista
juntando o território desses três países, não por acaso os que foram
mais devastados e destruídos pela política de intervenção do “ocidente”
na região, nos últimos anos.



Foram os EUA e a Europa que geraram e engordaram a cobra que
ameaça agora devorar a metade do Oriente Médio, e seus filhotes, que
também armam rápidos botes no velho continente. Serpentes que, por
incompetência e imprevisibilidade, depois da intervenção na Líbia, a
OTAN e os EUA não conseguiram manter sob controle.



Os Estados Unidos podem, pelo arbítrio da força a eles concedida
por suas armas e as de aliados – quando não são impedidos pelos BRICS ou
pela comunidade internacional – se empenhar em destruir e inviabilizar
pequenas nações – que ainda há menos de cem anos lutavam
desesperadamente por sua independência – para tentar estabelecer seu
controle sobre elas, seu povo e seus recursos, objetivo que, mesmo
assim, nunca conseguiram alcançar militarmente.



Mas não podem cometer esses crimes e esses equívocos,
diplomáticos e de inteligência, e dizer, cinicamente, que o fizeram em
nome da defesa da Liberdade e da Democracia.



Assim como não deveriam armar bandidos sanguinários e assassinos
para combater governos que querem derrubar, e depois dizer que são
contra o terrorismo que eles mesmos ajudaram a fomentar, quando esses
mesmos terroristas, além de explodir bombas e matar pessoas em Bagdá,
Damasco ou Trípoli, todos os dias, passam a fazer o mesmo nas ruas das
cidades da Europa ou dos próprios Estados Unidos.



O “terrorismo” islâmico não nasceu agora.


Mas antes da balela mortífera da Primavera Árabe, e da Guerra do
Iraque, que levou à destruição do país, com a mentirosa desculpa da
posse, por Saddam Hussein, de armas de destruição em massa que nunca
foram encontradas – tão falsa quanto o pretexto do envolvimento de Bagdá
no ataque às Torres Gêmeas, executado por cidadãos sauditas, e não
líbios, sírios ou iraquianos – não havia bandos armados à solta,
sequestrando, matando e explodindo bombas nesses 3 países.



Hoje, como resultado da desastrada e criminosa intervenção
ocidental, o terror do Estado Islâmico, o ISIS, controla boa parte dos
territórios e da sofrida população síria, iraquiana e líbia, e, a partir
deles, está unindo suas conquistas em torno da construção de uma nação
maior, mais poderosa, e extremamente mais radical do ponto de vista da
violência e do fundamentalismo, do que qualquer um desses países jamais o
foi no passado.



O ataque terrorista à redação e instalações do semanário francês
Charlie Hebdo, e do Mercado Kosher, em Vincennes, Paris, foram crimes
brutais e estúpidos.



Mas não menos brutais, e estúpidos, do que os atentados
cometidos, todos os dias, contra civis inocentes, entre muitos outros
lugares, como a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão.



Quem quiser encontrar as sementes do caos que também atingiram,
em forma de balas, os corpos dos mortos do Charlie Hebdo poderá
procurá-las no racismo de um continente que acostumou-se a pensar que é o
centro do mundo, e que discrimina, persegue e despreza, historicamente,
o estrangeiro, seja ele árabe, africano ou latino-americano; e no
fundamentalismo branco, cristão e rançoso da direita e da extrema
direita norte-americanas, cujos membros acreditam piamente que o Deus
vingador da Bíblia deu à “América” do Norte o “Destino Manifesto” de
dirigir o mundo.



Em nome dessa ilusão, contaminada pela vaidade e a loucura,
países que se opuserem a isso, e milhões de seres humanos, devem ser
destruídos, mesmo que não haja nada para colocar em seu lugar, a não ser
mais caos e mais violência, em uma espiral de destruição e de morte,
que ameaça a sobrevivência da própria espécie e explode em ódio,
estupidez e sangue, como agora, em Paris, neste começo de ano.

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