domingo, 25 de janeiro de 2015

A recessão vai curar o Brasil?

A recessão vai - Carta Maior



A recessão vai 'curar' o Brasil?

A
elevação da Selic em mais meio ponto custará outros R$ 6 bilhões em
juros . É um exemplo do remédio para consertar a perna da girafa que
quebra seu pescoço

por: Saul Leblon




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O segundo governo Dilma começou  há 21 dias.


vinte, ele se dedica integralmente  ao propósito de convencer os
mercados (financeiros) e o setor produtivo de que o Brasil tem futuro.

Dito assim parece  trivial.

O Brasil enfrenta desequilíbrios intrínsecos à luta pelo desenvolvimento sob a hegemonia do capital financeiro globalizado.

Mas o faz do alto da quinta maior extensão territorial do planeta.

Praticamente
todo o seu território é habitável, nele vivem mais de 200 milhões de
pessoas; a economia formal inclui  90 milhões de assalariados;  a renda
per capita vinha crescendo  acima de 2% ao ano, em média; desse conjunto
brotou um mercado de consumo de massa  que abrange 53% da população.


engrenagem  tem um encontro marcado com um pico de investimentos em
infraestrutura entre 2015 e 2017 –algo da ordem de R$ 300 bilhões. Uma
espiral de produção de petróleo extraído das maiores reservas
descobertas no século XXI  vai dobrar a oferta nacional em cinco anos.

O pré-sal reúne escala e tecnologia que lhe conferem viabilidade mesmo quando  o xisto norte-americano jogar a toalha.

Em
um planeta açoitado por uma crise de demanda, com o hálito gelado da
deflação soprando o cangote das principais economias ricas, um aparato
com essas características, autossuficiente em alimentos e minerais,
faria inveja a boa parte das nações.

Mas a elite brasileira decidiu que o Brasil é uma girafa de pé quebrado.

-De que adianta uma girafa de pé quebrado?, pergunta, enquanto se prepara para ‘ajustar’ o  pescoço com um facão.

O
aparato midiático, que fala em nome dos funileiros de girafas, exige e
aplaude medidas que agravam os desequilíbrios apontados como
impeditivos  investimento brasileiro.

Os paradoxos em marcha suscitam dúvidas.

Por exemplo: onde é mais importante aplicar os recursos fiscais escassos do país?

No
pagamento de juros cada vez mais abusivos  aos rentistas, como decidiu o
Banco Central nesta 4ª feira ao elevar a Selic de estratosféricos 
11,75% para 12,25%?

Ou na pavimentação acomodatícia de um chão firme para o emprego e o investimento industrial?

A terceira alta seguida da Selic em mais meio ponto custará outros R$ 6 bilhões em juros ao país.

É um exemplo do remédio para ‘consertar’ a perna da girafa que quebra o seu pescoço.

Agora, ela não tem dificuldade apenas para andar; mas também parou de comer.

Adicione-se
ao picadinho em marcha, o corte de salvaguardas trabalhistas e sociais,
como o seguro desemprego e a elevação do custo do crédito ao consumo,
que inibe a demanda e, por tabela, fulmina o investimento.

O  mais notável, porém, é o que vem em seguida.

Apesar 
do adiantado estado de implantação do tratamento  –que já somariam 1%
do 1,2% de arrocho fiscal almejado--  as sondagens são implacáveis:  o
pessimismo empresarial está em alta; as intenções de investimento em
baixa.

Afinal, se o Brasil  avança para ser uma girafa que não anda, nem come, investir para quê e onde?

Desequilíbrios macroeconômicos antecedentes explicam uma parte dos braços cruzados do capital diante das urgências do país.

Um exemplo consensual à esquerda e à direita: o câmbio valorizado.

Nos
últimos dez anos, a demanda brasileira por manufaturados criou um
milhão de empregos –na China, graças à valorização do Real.

O déficit comercial  da indústria  somou meio trilhão de dólares nos últimos 15 anos.

Nas
últimas três décadas, de 1982 a 2012,  a participação da indústria no
PIB  recuou  quase 13%. (uns quatro pontos no ciclo de governos do PT,
quase nove no do PSDB).

Em vez de investir, fabricantes trocaram as máquinas por guias de importação.

Ou venderam sua fatia  do  mercado  local aos fornecedores externos.

Uma
parte do capital apurado foi  para o mercado financeiro; a outra nem
ingressou aqui, desembarcando  direto em paraísos fiscais.

A elite brasileira é detentora da quarta maior fortuna global depositada nesses abrigos do dinheiro frio.

Subjacente ao desmonte industrial há uma mutação ideológica.

Os que renunciam à industrialização abraçam o ideário oposto: filiam-se ao poderoso  partido rentista.

São os novos corneteiros do juro alto.

O
conjunto explica uma parte dos impasses de um governo  que se propõe a
fazer uma aliança de desenvolvimento com aliados que bateram em
retirada.

Não se trata de teoria conspiratória, é um pedaço da história do Brasil dos dias que correm.

O rentismo não é uma patologia do capitalismo no século XXI.

É um desdobramento inerente à dinâmica de um sistema deixado à própria lógica.

Sem
os contrapesos de forças em sentido contrário, o capitalismo quanto
mais dá certo, mais dá errado. Nos seus próprio termos: corta o pescoço
da girafa para consertar o pé.

O rentismo é o sonho de libertação dos detentores do capital. E o abismo para a sociedade.

É
justamente a realização global desse sonho, decorrente do desmonte do
aparato regulatório do pós-guerra, que levou à captura dos mercados, das
elites, da mentalidade de uma parte da classe média e do horizonte
empresarial –bem como de todo o sistema político-- pela lógica rentista.

A mesma que agora engessa o desenvolvimento brasileiro.

A
dificuldade extrema de injetar racionalidade aos capitais que se
comportam, todos, como capital estrangeiro diante da sociedade, é o
calcanhar de Aquiles do keynesianismo nos dias que correm.

Leia-se, da esquerda desafiada a gerir o sistema sem dispor, ainda, de meios para transformá-lo.

Quando
a abundância de capitais se transforma em um poder antagônico à
abundância dos investimentos requeridos pela sociedade, não há ‘ajuste
técnico’ que conduza ao desenvolvimento.

Quanto mais se recorta a girafa, mais distante fica a sua regeneração. 

Quem
vê no capitalismo apenas um sistema econômico, não a dominação política
intrínseca a sua encarnação social, petrifica-se diante desse paradoxo.

Quando
o governo destina receita para fomentar o pleno emprego (o seguro
desemprego é uma forma de sustentar o mercado de trabalho), é acusado de
gastança fiscal.

Quando corta despesas e a economia é destinada ao pagamento de juros, é virtuoso e austero.

Certamente há distorções a corrigir.

Desonerações salariais sem garantia legal de manutenção do emprego semearam o cinismo patronal.

 Caso
das montadoras: depois de embolsarem  R$ 12 bi em renúncia fiscal,
demitiram 12,4 mil trabalhadores em 2014. Só não acrescentaram mais 800
cabeças ao patíbulo, agora, porque uma greve de dez dias obrigou a Volks
a rever a decisão.

O buraco é mais fundo.

A hipótese de
que se possa injetar racionalidade ao capitalismo brasileiro com a
paradoxal adoção, mesmo parcimoniosa, de sua irracionalidade na gestão
econômica, soa otimista.

Nesse vácuo, o comando da sociedade fica
submetido aos impulsos rentistas se não for afrontado por uma outra
lógica de forças políticas organizadas.

Em resumo: o Brasil não
tem mais (faz tempo que não tem)  um empresariado ao qual se possa
delegar  a retomada de um ciclo de desenvolvimento.

 A coagulação
rentista da sociedade, com uma elite perfeitamente integrada ao
circuito da alta finança global, cobra da  democracia novos instrumentos
de participação popular para dar ao investimento sua finalidade social.

O
economista Thomas Piketty, autor do elogiado ‘O capital no século XXI’,
demonstra como a regressividade rentista promoveu uma mutação em nosso
tempo.

Faz parte dela o ‘murchamento’ produtivo, coroado por uma desigualdade crescente e hereditária, quase um atributo biológico.

Ganhos
financeiros sempre superiores  ao crescimento médio do PIB deslocam à
cepa dos  rentista fatias progressivamente  mais gordas da riqueza 
social.

Cristaliza-se uma oligarquia aleitada na teta dos juros.

Atender
a demanda dessa casta –como faz a ‘solução Levy’-- torna ainda mais
remoto o fim que se alega  perseguir: a retomada do investimento
produtivo.

Pior que isso.

A maximização do retorno
financeiro, ao lado do arrocho sobre a produção e o consumo, contamina
todas as dimensões do cálculo econômico submetendo o investimento já
existente aos padrões de retorno da ganância rentista.

Pressionados
a entregar fatias crescentes do lucro aos acionistas, dos quais
dependem em última instância no cargo, os ‘managers’ corporativos
atendem à ‘república dos dividendos’ em detrimento do lucro retido para
investimento.

Um exemplo do quanto isso custa à sociedade?

A gloriosa gestão tucana da Sabesp.

Eleita
como uma das empresas preferidas dos acionistas estrangeiros, ela
privilegiou a distribuição de dividendos em prejuízo do investimento na
incorporação de novos mananciais.

 Saldo: o  racionamento de fato
no fornecimento de água a uma São Paulo que figura como uma das maiores
concentrações urbanas do planeta.

O baixo incremento da produtividade na economia brasileira também guarda relação com a supremacia da lógica financeira.

Diante
da atrofia do investimento privado em pesquisa e tecnologia,  como o
lucro produtivo pode competir com o retorno do dinheiro a juro?

Maximizando  a exploração da mão de obra.

No caso brasileiro, esse Intento é incompatível  com a existência de um mercado de trabalho que bordeja o pleno emprego.

Uma coisa é negociar com trabalhadores espremidos em filas de desempregados vendendo-se a qualquer preço.

 Outra, fazê-lo  em um mercado em que a demanda por mão-de-obra cresceu mais que a população economicamente ativa.

O
desafio da luta sindical nos próximos meses será justamente impedir o
desmonte dessa fronteira que separa o ganho real de salários da
hegemonia absoluta do capital.

Se além de resistir quiser avançar, o passo seguinte é mais audacioso.

No
ambiente globalizado, a liberdade de  capitais dá ao rentismo um poder
imiscível com a indução do investimento para a construção de uma
democracia social.

Ou seja, controlar a liberdade de capitais está para os trabalhadores assim como destruir o pleno emprego para o capital.

No
limite, a receita conservadora só se viabiliza integralmente com o
esfarelamento do Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão
pública da gestão da economia.

A marcha dessa radicalização na
Europa coleciona manifestações mórbidas que não deveriam ser encaradas
como um folclore distante.

A tragédia recente em Paris e as eleições gregas do próximo domingo constituem marcadores históricos dessa polarização global.

Vivemos 
um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu
desenvolvimento não são realidades contraditórias.

Antes,
exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção
política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir
nessa direção.

Essa moldura histórica magnifica a importância da
Política Nacional de Participação Social e da regulação da mídia que
ressoam na mesa do segundo governo Dilma.

Para que tenham peso
nas grandes escolhas da encruzilhada brasileira  é  crucial que o
governo não se satisfaça em  tê-las ali apenas como um aceno de
participação e um ornamento  de democracia.

Enfeitando a mesa, enquanto a machadinha do açougueiro pica a girafa na sala ao lado.

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