sábado, 31 de janeiro de 2015

ConJur - Não há presos provisórios, cautelares ou preventivos; há inocentes

ConJur - Não há presos provisórios, cautelares ou preventivos; há inocentes



"Eufemismo que cega"

Não há presos provisórios, cautelares ou preventivos; há presos inocentes

Quando
uma pessoa, geralmente mulher, muitas vezes mãe, é obrigada a tirar
toda sua roupa, fazer agachamentos, saltos, submeter-se ao toque íntimo
ou ter objetos introduzidos em suas cavidades corporais, para fazer uma
visita a um parente que está custodiado em uma prisão, nós não dizemos
que houve revista íntima. Dizemos que houve mais uma inaceitável revista vexatória.

Quando
um empregado desempenha suas funções em situações incompatíveis com a
dignidade da pessoa humana, em violação de direitos fundamentais que
coloquem em risco sua vida e saúde, não dizemos apenas que são condições
degradantes de trabalho. Dizemos que há trabalho escravo.

Disputar
conceitos é importante. O poder simbólico da narrativa, da forma como
se nomeia determinada realidade, pode ser crucial para nosso sucesso ou
insucesso em transformá-la. Com Bourdieu, vimos que a linguagem não é
somente um instrumento de comunicação, mas também um instrumento de ação
e poder.

A revista íntima era um procedimento burocrático de
segurança difundido acriticamente pelos milhares de estabelecimentos
prisionais no país. Já a revista vexatória está no centro da crítica de
militantes de direitos humanos e vem sendo progressivamente abolida. O
trabalho exercido em condições degradantes pode ser invocado pela
direita liberal mais radical como exercício da liberdade individual do
trabalhador em prover seu sustento conforme as condições que livremente
pactuou. Já o trabalho escravo é indefensável e todos – ao menos
publicamente – querem sua abolição.

Daí que precisamos revisitar a
narrativa e passar a nomear adequadamente a situação das mais de 240
mil pessoas que se encontram, hoje, presas sem que tenham contra elas
sentenças penais transitadas em julgado.

Hoje os chamamos,
comumente, de presos provisórios. Dizemos que houve uma prisão cautelar
ou preventiva. Nos habituamos tanto a essas palavras que perdemos a
capacidade de estranhamento frente a elas. Quase esquecemos que se
tratam de eufemismos, cirurgicamente construídos para a naturalização da
barbárie – o que chamamos hoje medida cautelar, os nazistas diziam internação especial, tratamento especial ou limpeza, conforme nos adverte Zaffaroni.

Precisamos aprender a dizer que não existem presos provisórios, cautelares ou preventivos.

Porque
de provisória essa prisão não tem nada. Ela geralmente dura anos e,
muitas vezes, por mais tempo do que a própria pena aplicada ao final do
processo. Mais de 80% das pessoas presas em flagrante permanecem presas
até o julgamento da ação, conforme pesquisa do Instituto Sou da Paz.

De
cautelar essa prisão não tem nada. Estudo recente do IPEA indica que
37% dos réus presos durante o processo não foram condenados à prisão.
Outra pesquisa, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e da Pastoral
Carcerária, aponta que apenas 1 em cada 10 acusados pela prática de
crimes não violentos tiveram pena tão gravosa quanto a medida cautelar a
que foram submetidos. A prisão cautelar busca assegurar o cumprimento
de uma pena que, ao final, não é aplicada – com um custo social e
financeiro que, por cautela, deveríamos questionar.

De preventiva
essa prisão também não tem nada. Seu uso indiscriminado, sobretudo
contra parcela específica da população que povoa os cárceres (os jovens
negros), revela que a prisão não busca garantir a ordem pública,
econômica, a instrução do processo ou a aplicação da lei penal. Ela
busca, pura e simplesmente, saciar nosso punitivismo e nossa falsa
percepção de que a prisão deles nos torna mais seguros, acalmando nosso medo.

Como
mencionado, disputar conceitos importa. Para reconhecermos nossa
barbárie, precisamos nomeá-la, desnudá-la, trazê-la ao sol. Assim, se a
nossa Constituição é expressa ao dizer que ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, não
faz o menor sentido nos contentarmos em nomear as prisões que escapam a
esse preceito como provisórias, cautelares ou preventivas.

São
antes de tudo, pela sua natureza que esquecemos de invocar, prisões de
inocentes. São presos inocentes que, apesar da presunção inscrita no
castigado inciso LVII do artigo 5º da Constituição, permanecem atrás das
grades aguardando o julgamento do processo, sem perceberem que já foram
considerados culpados e cumprem pena por antecipação, independente da
sentença futura que venha a absolvê-los, arbitrá-los penas alternativas
ou, enfim, condená-los à prisão que já os abriga.

Pode fazer
diferença a forma como os denominamos. Um preso provisório que é
absolvido após aguardar por anos ao julgamento do processo atrás das
grades, com alguma lógica jurídica (ainda que classista) e muito
malabarismo ético, tem negado o direito à indenização pela família
destruída, pelo trabalho perdido, pela vida adiada. Ninguém lhe pede
desculpas, "a prisão era justificável à época do juízo cautelar". Não
sabemos – mas nos parece que seria mais difícil negar esse direito a um
preso inocente.

Podemos dizer que há um 'sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão de inocentes pelo sistema de justiça do país'. Dizer que 'a prisão de inocentes
só deve ser admitida em casos excepcionais previstos na legislação'.
Que 'conforme os dados de dezembro de 2013, há mais de 240 mil presos inocentes no país', sendo um dos países cuja taxa de presos inocentes mais aumenta no mundo.

A
Constituição nos autoriza a chamá-los assim – não o fazemos por opção
política. Porque o eufemismo nos cega. E dar o nome adequado à nossa
barbárie pode, quem sabe, contribuir para nosso processo civilizatório,
nos fazendo enfim enxergá-la.

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