domingo, 11 de janeiro de 2015

Feliz ajuste fiscal — CartaCapital

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Análise/Belluzzo

Feliz ajuste fiscal

A identidade fugidia do patrimonialismo no Brasil hoje pode ser desvendada na fiscalidade

por Luiz Gonzaga Belluzzo



publicado
11/01/2015 08:20

O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, manifestou sua rejeição ao
patrimonialismo. O ministro utilizou o conceito para designar a
concessão de incentivos, subsídios e favorecimentos a determinados
setores da economia.


Na raiz da rejeição, está a concepção da economia competitiva:
povoado por indivíduos racionais e otimizadores, o mercado, sem favores
ou barreiras, tem a virtude de gerar os incentivos adequados ao
crescimento econômico e para a elevação do bem-estar da comunidade.
Nessa visão, mesmo com a economia resvalando para a recessão, o
equilíbrio intertemporal das contas públicas é condição para o
crescimento econômico saudável. É o que tenta há cinco anos a Europa da
senhora Merkel.


Vamos ao patrimonialismo. O leitor certamente conhece o livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder,
uma aventura intelectual na busca do desvendamento das raízes
patrimonialistas da sociedade e do Estado no Brasil. O livro de Faoro
não é de fácil leitura. A obra não investiga apenas os caminhos e
descaminhos do patrimonialismo brasileiro. Avança, sim, na perquirição a
respeito das origens luso-colonial-mercantilistas do patrimonialismo
nativo. No fim do percurso encontra a encruzilhada weberiana: o
patrimonialismo tupiniquim junta-se ao fenômeno universal do
“patrimonialismo capitalista”.


O capitalismo realmente existente na Inglaterra liberal do século XIX
surgiu das entranhas dos privilégios mercantis. No século XVIII, às
vésperas da Revolução Industrial, diz Eric Hobsbawm, a Inglaterra era
comandada pela aristocracia enriquecida na esfera financeira e
mercantil. Prevaleciam os grandes comerciantes, banqueiros e negociantes
de dinheiro, concentrados em Londres. Os industriais manchesterianos
auferiam rendimentos muito inferiores àqueles obtidos pelos mercadores e
financistas. Ainda mais ricos e influentes do que os empresários da
indústria eram os que se valiam de privilégios e sinecuras: soldados,
magistrados, todos incluídos na rubrica de “offices in profit of the crown”.


Os privilégios sobreviveram à Revolução Industrial. Metamorfoseados
no poder da finança internacionalizada da City londrina, decretaram o
destino econômico da Inglaterra, logo suplantada pela escalada das
industrializações retardatárias. Os retardatários usaram e abusaram de subsídios e privilégios:  protecionismo nos Estados Unidos, dirigisme na França e íntimas ligações entre o chanceler Bismarck, a burocracia Junker e o banqueiro-lobista Bleichröder, na Alemanha.


No Brasil, o patrimonialismo capitalista vestiu muitas máscaras ao
longo da história, mas hoje sua identidade fugidia pode ser desvendada
na fiscalidade. Vamos enveredar pela estrutura tributária e de gasto
para entender o caráter regressivo e concentrador dos juros de agiota
sobre dívida pública.


Entre 1995 e 2011, o Estado brasileiro transferiu para os detentores
da dívida pública, sob a forma de pagamento de juros reais, um total
acumulado de 109,8% do PIB. Se avançarmos até 2014, essa transferência
de renda e riqueza chega a 125% do PIB. Isso significa atirar ao colo
dos detentores de riqueza financeira, ao longo de 19 anos, um PIB anual,
mais um quarto. É pelo menos curioso que os idealizadores do
“impostômetro” não tenham pensado na criação do “jurômetro”.


É possível alinhavar algumas cifras para apontar os perdedores e
ganhadores do jogo. Para tanto, vou recorrer ao excelente estudo da
professora Lena Lavinas,  A Long Way from Tax Justice: The brazilian case.


Nesse caso, como em outros, há brasileiros e brasileiros. Em 2011, a
carga tributária bruta chegou a 35,31% do PIB. No Brasil os impostos
indiretos, como o IPI e o ICMS, representam 49,22% do total da carga
tributária. Como se sabe, esses impostos incidem sobre os gastos da
população na aquisição de bens e serviços, independentemente do nível de
renda. Pobres e ricos pagam a mesma alíquota para comprar o fogão e a
geladeira, mas o Leão “democraticamente” devora uma fração maior das
rendas menores. Os chamados encargos sociais representavam 25,76% da
carga total e o ônus estava, então, distribuído entre empregados e
empregadores.


Já o Imposto de Renda contribui com parcos 19,02% para a formação da
carga total, enquanto os impostos sobre o patrimônio são desprezíveis,
sempre empenhados a beneficiar a riqueza imobiliária e financeira dos
mais ricos. As estimativas sobre a distribuição da carga tributária
bruta por nível de renda mostram que ,enquanto os que ganham até dois
salários mínimos recolhem ao Tesouro 53,9% da renda, os que ganham acima
de 30 mínimos contribuem com 29,0%. “A quem tem, mais se lhe dará, e
terá em abundância; mas, ao que quase não tem, até o que tem lhe será
tirado.” Feliz ajuste fiscal.

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