Patrono da turma de 2014 da faculdade de Direito da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, proferiu emocionante discurso com reflexões essenciais relacionadas à vida e ao Direito.
Confira a íntegra do texto.__________
Confira a íntegra do texto.__________
A vida e o Direito: breve manual de instruçõesI. Introdução
Eu
poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos bons que
vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma
extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes
da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar
do futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão
apaixonados pela própria voz.
Por
isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus
olhos e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da
felicidade imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa
despedida provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado
pelos valores que compartilhamos.
É
lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém,
não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar
essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por
certo, ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do
caminho, as suas próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto
espaço de tempo que me impus, um guia breve com ideias essenciais
ligadas à vida e ao Direito.
II. A regra nº 1
No
nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do
arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a
Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os
participantes procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa
altura, à maior distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da
noite. Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito
Municipal interditou a atividade.
Após recursos, idas e vindas, o
Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na ocasião,
dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão de
sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e
não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a
sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a
história não havia terminado ainda.
E
em seguida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias
possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU,
procurando reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o
trocadilho é inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.
Pela
primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um
emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A
decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia
esquecido e invisível.
Após eu
narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em
relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro
encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do
Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir
os dois lados.
III. A regra nº 2
Nós
vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo
anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de
múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li
recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão
sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como
previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes
diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre
religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a
discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu nunca
tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me
perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar,
percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto:
Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida".
Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo,
você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde:
"Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha
passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me
mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida".
Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre
como interpretá-los.
Quem está
certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, “nós
não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos”. Para
viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o
correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o
outro.
Aqui a nossa regra nº 2: a verdade não tem dono.
IV. A regra nº 3
Uma
vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes.
Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O
sábio fez um ar sombrio e exclamou: "Uma desgraça, Majestade. Os dentes
perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os
seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem
chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio.
Este, ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande
felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus
parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem
moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para
o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi
exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi
premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no
que eu falei, mas em como falei".
Pois
assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar. É
possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com
espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem
qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em
papel suave, que revele consideração pelo outro.
Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.
V. A regra nº 4Nós
vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há
espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não
parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao
próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo
civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado
pela energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história
que nos trouxe de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos
direitos humanos. É o bem que vence no final. Se não acabou bem, é
porque não chegou ao fim. O fato de acontecerem tantas coisas tristes e
erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e correção.
Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São
requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver
acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não
precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua
própria recompensa.
Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando.
VI. A regra nº 5
Em
uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa
disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo
vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor,
vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos
ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o em
vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo
aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral
dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser
altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir
licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se
exibir e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o
espírito e traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é
presa fácil do tempo: tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece
depressa (Aristóteles). Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no
gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem oferece e quem recebe.
Em
quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a
me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é
pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las.
Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário
voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito,
não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e
coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem
medo, sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que
ninguém é bom demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no
fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem mesmo é do céu, e é
preciso agradecer".
Esta a nossa regra nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.
VII. Conclusão
Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções:
1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados;2. A verdade não tem dono;3. O modo como se fala faz toda a diferença;4. Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando;
5. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.Aqui
nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um
semestre em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de
vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como
vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de vocês para
repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do meu
afeto:(i) Fique vivo;(ii) Fique inteiro;(iii) Seja bom-caráter;(iv) Seja educado; e(v) Aproveite a vida, com alegria e leveza.Vão
em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da
advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta para ser
pequena".
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