“Não é fácil ouvir alguém chamar um brasileiro como Chico Buarque de ‘merda’, sem que o sangue lhe suba à cabeça”
Barra Pesada
Esta é minha última crônica de 2015. Vou tirar umas férias deescrever e só volto a publicar outro artigo no último domingo de
janeiro, dia 31. Nada como encerrar alguma coisa, mesmo que
temporariamente. A gente fica com uma sensação de missão cumprida, mesmo
que nos falte confiança em que a missão seja mesmo essa, que o que
produzimos prestou para alguma coisa.
Só para ficar nas desgraças domésticas, 2015 foi um ano maldito na
lembrança de muita gente (as desgraças internacionais também bateram
recordes de horror, mas deixa pra lá). Não estou falando apenas das más
notícias do mundo concreto, da inflação e do desemprego, da Petrobras e
da Odebrecht, da lama mineira e do fogo amazônico, mas também dos
incômodos políticos que dividiram o país. No momento, o impeachment da
presidente é o mais grave deles.
Já disse aqui e repito que sou totalmente contra o impeachment, ele é
injusto e inconsequente. Injusto porque, independente de sua
administração ser boa ou má, não vejo a presidente tendo cometido nenhum
crime previsto na Constituição que justifique seu impedimento.
Inconsequente porque não vejo no horizonte uma sucessão que seja capaz
de melhorar o país. Temer? Cunha? Renan? Cruzes!
A acusação de “estelionato eleitoral”, de que Dilma Rousseff teria
mentido durante a campanha e feito, neste primeiro ano de seu segundo
mandato, o contrário do que prometera, já virou uma constante cada vez
que elegemos novo governo. Não porque Fernando Henrique, Lula e Dilma
tenham decidido conscientemente mentir durante suas campanhas; mas
porque preferiram ouvir seus marqueteiros, a discutir e seguir os
programas de seus partidos.
A propaganda montada pelos marqueteiros políticos, para “vender” os
candidatos que os contrataram, é que está se tornando um “estelionato
eleitoral” sistemático, onde não se discute nada antes de uma consulta
aos institutos de pesquisa. Não se crê um segundo que um discurso
sincero e correto possa mudar os índices obtidos por esses institutos.
Duda Mendonça, Renato Pereira ou João Santana se tornaram sumidades
programáticas, muito mais importantes do que qualquer ideólogo
respeitável de cada partido. A política no Brasil está se tornando um
sistema de venda de imagens e não de ideias.
Não é assim que está evoluindo a política por aí, na França ou na
Espanha, mesmo na Grécia ou em Portugal, onde forças novas ocupam seu
lugar junto às aspirações do povo, sem ter que vender uma imagem
superficial. Uma aliança de centro-esquerda não derrotou a direita da
Frente Nacional francesa pela força de ilusões; o Podemos e o Cidadãos
não se impuseram nas urnas espanholas através de velhas mensagens que os
marqueteiros repetem.
Não acho que o Brasil esteja bem de vida, muito menos que este seja o
melhor governo possível. Mas é preciso reconhecer que Dilma Rousseff
não fez um só gesto, nem emitiu uma só frase que enfraquecesse o
processo democrático no país. No meio da grave crise política e
econômica que vivemos, podemos nos orgulhar da estabilidade de nossa
democracia.
Uma democracia que está sendo ameaçada por setores radicalizados da
população. Alguma coisa na crise que vivemos, ocasionada talvez pelo
resultado apertado das últimas eleições, fez com que, desta vez, o país
se dividisse radicalmente em dois, sem racionalidade e sem respeito pela
opinião alheia, um puro exercício de ódio. O país está perigosamente
dividido em clãs políticas que não admitem respirar o mesmo ar que o
“inimigo”.
Chico Buarque foi, esta semana, vítima dessa intolerância burra.
Saindo de um jantar com amigos, ele teve que ouvir, vindos do outro lado
da rua, gritos hostis e grosseiros de jovens que estavam no restaurante
em frente. A quase uníssona acusação era a de sua preferência
partidária, uma escolha pessoal e cívica de cada cidadão livre.
Gentilmente, com a cordialidade que o caracteriza, Chico atravessou a
rua e foi tentar conversar com os rapazes. Mas eles não queriam ouvir
argumentos ou discutir ideias, apenas desqualificavam o interlocutor que
não pensava como eles, uma censura tipicamente autoritária ao
pensamento do outro. O mínimo que ele ouviu foi ser chamado de “seu
merda”. Não é fácil ouvir alguém chamar um brasileiro como Chico Buarque
de “merda”, sem que o sangue lhe suba à cabeça.
Não sou pessimista, não acho que as coisas vão sempre dar
necessariamente errado. Nem acho que vamos precisar de muitos anos para
nos recuperarmos da crise que nos assola. Se alguns princípios básicos
da convivência democrática forem respeitados, se conseguirmos que o ódio
seja substituído pela consciência de que o outro tem direito de ter
outra opinião, se aprendermos a pegar leve na barra pesada, sairemos
dela mais rápido do que imaginamos, sem a falsidade histriônica de uma
“unidade nacional”. De um lado e do outro, vamos precisar da grandeza de
muitos Chico Buarque para cumprir essa meta.
Cacá Diegues é cineasta
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