É guerra. Era previsível, omissões a tornaram inevitável. Mas,
guerra embora, promete ser benfazeja. A Lava Jato inicial e suas
extensões reagem ao retardatário entendimento, no alto Judiciário, de
que combate à corrupção e abuso do poder repressivo são coisas
diferentes. A Lava Jato foi deixada livre para suas práticas
indiferentes aos limites legais e ao bom senso, com violação de direitos
civis, de exigências processuais e da ética (pessoal e jurídica). O
desgaste, porém, não a atingiu, resguardada pela “mídia”: o omisso
Supremo Tribunal Federal foi o desgastado —e afinal se assustou.
A
interpretação generalizada das prisões encabeçadas por Michel Temer, ou
do momento em que ocorrem, é a de resposta da Lava Jato contrariada por
decisões recentes do Supremo. Se às prisões juntarmos o vazamento que
atinge o ministro Luiz Fux, desencavado do depoimento inatual de um
empresário, o propósito dos recentes atos e afirmações da Lava Jato está
claro, dispensa interpretações.
Concomitante ao despertar do
Supremo vê-se, portanto, que também na “mídia”, e daí na opinião
pública, ações da Lava Jato já são identificadas com finalidades alheias
à razão jurídica. É um passo pequeno, mas é avanço na direção de
justiça. Ou, mais preciso, de menos injustiça. E não de política e sede
de poder com armas da Justiça.
A Lava Jato acirra a guerra com
os mesmos métodos que acabaram por provocá-la. O argumento mais forte
para a prisão de Temer, por exemplo, foi a continuação das práticas
corruptas. Quais são os fatos comprovantes? “Houve apenas uma
comunicação do Coaf”, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras,
palavras de uma procuradora. “Mas esse fato, de acordo com o registrado
pelo Coaf, aconteceu em outubro de 2018”. Logo, “é indicativo de que a
organização criminosa continua atuando”.
Não é. Há cinco para
seis meses, Temer ainda na Presidência, um fato foi indicativo de algo
há um semestre, não do presente. Se houve o fato então, isso não indica a
sua continuidade. A alegação central para a prisão não tem veracidade.
O tal fato de outubro seria a tentativa do coronel João Baptista Lima,
visto como testa-de-ferro de Temer, de depositar R$ 20 milhões em
espécie. É a velha “história mal contada”. Levar essa quantia geddeliana
a um banco; submetê-la na agência à confirmação do montante, no mínimo
de 200 mil notas de R$ 100, sem recear uma complicação —um experiente
como Lima não pensaria nesse plano, quanto mais em tentá-lo.
Em
seu início, a Lava Jato plantou na “mídia” a apropriação de R$ 10
bilhões pelos três ou quatro dirigentes da Petrobras já identificados. A
conta final não chega a 10%. Ao bando “chefiado por Temer” é atribuída a
quantia de R$ 1,8 bilhão. Em dinheiro “recebido, pedido ou prometido”.
Está aí uma novidade, na soma do real com o imaginado. Pena que seja
mais um truque nada sério, para uso da “mídia”.
São muitos os
indícios de material concluído às pressas, para servir a uma finalidade
não judicial. A propósito, entre os motivos de reação da Lava Jato estão
o inquérito sobre ataques ao Supremo e a determinação do ministro
Alexandre de Moraes de levá-lo a resultados. Inquérito e ministro muito
criticados, mas ambos se justificam. Não só agressões verbais são
investigadas: embora o Supremo prefira o silêncio a respeito, há ameaças
de morte a ministros e de violência a familiares, como objeto principal
do inquérito.
Ah, não se esqueça, em tudo isso, a gentileza da
Polícia Federal. Esperou que Temer saísse, para prendê-lo fora das
vistas da família e dos vizinhos. E não de manhãzinha. Com Moreira, pelo
mesmo cuidado, não o esperaram em casa. Apenas pararam seu carro em
área de pouco movimento. Nas duas ações, nenhum policial com
metralhadora, granadas, gás e roupa sinistra. Nada como nas abordagens
espalhafatosas a Lula e outros, pelo “japonês da PF” e companheiros. Nas
duas modalidades de abordagem, a autoridade maior das operações era a
mesma, o então juiz da Lava Jato e o hoje ministro da PF.
O que aconteceu com os promotores garantistas?, por Ana Cláudia Pinho
Somos
todos auto responsáveis pelas escolhas que fazemos: pessoais,
profissionais, ideológicas, acadêmicas. Escolhas implicam consequências.
Escolher o caminho do respeito à Constituição importa ônus! Nada se faz
impunemente.
Ontem participei de um lindo evento na centenária Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Pará: uma merecida homenagem aos
professores que estavam se aposentando.
Dentre os homenageados, encontrava-se um querido e inesquecível
professor, uma das pessoas mais brilhantes com quem já tive a honra de
privar. Um intelectual, no sentido do termo. Foi meu professor tanto na
graduação, quanto no Mestrado. E, muito embora suas disciplinas não
fossem relacionadas à área criminal, eu jamais esquecerei suas lições e,
sobretudo, seu exemplo de um verdadeiro mestre.
Antes de ter início a solenidade, meu caro professor veio sentar-se a meu lado na plateia e perguntou-me: “O que aconteceu com os promotores garantistas?”. Na sequência, mostrou-me sua preocupação com o modelo de plea bargain,
projetado para funcionar no Brasil, sobretudo em relação a como o
Ministério Público irá agir com o réu, no momento da “negociação”.
Conhecedor arguto do sistema jurisdicional norte-americano, meu dileto mestre observou: “lá,
o promotor é obrigado a fazer o ‘disclosure’, isto é, colocar todas as
cartas na mesa, mostrando as provas que detém, tanto as desfavoráveis,
quanto as favoráveis ao imputado. Essa é uma exigência de lealdade para
poder existir algum tipo de acordo”.
O receio do caro homenageado está longe de ser vão. Considerando que
vivemos, hoje, um modelo processual penal caracterizado por uso de
estratégias e que o MP está desobrigado de colocar todas as cartas na
mesa, o sentimento de uma certa ética pública – tão cara a uma
Instituição que tem, por força constitucional, a missão de defender o
regime democrático, a ordem jurídica e os direitos fundamentais – começa
a se esvair…[1]
Esse “novo perfil” do Ministério Público a partir da chamada
“Operação Lava Jato”, sobretudo no que tange ao (ab)uso das colaborações
premiadas, restou evidente. Jamais se ouviu falar tanto em “delações”,
prisões preventivas para assegurar confissões, “recuperação” de valores
advindos da corrupção, até o cúmulo de se chegar à inusitada proposta da
criação de um fundo, para gerir 2,5 bilhões de reais (oriundos de
acordo, com a Petrobrás), tudo a cargo exclusivo do braço do
Ministério Público Federal, em Curitiba (a bom tempo, a proposta foi
obstada por decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF, acatando
pleito da própria chefe do MPF, Raquel Dodge).
É… realmente, o Ministério Público mudou…
Há quem diga: “os tempos são outros! Há que se modernizar! Há que
se criar mecanismos para combater a criminalidade organizada, a
criminalidade dos grupos de poder, dos grandes traficantes, etc. Há que
se aplicar ao processo penal a ética liberal da barganha, da negociação.
Isso economiza tempo, otimiza condenações e garante a justiça”.
Não tenho qualquer dúvida de que o processo penal (e as Instituições
que nele atuam) precisam mudar…Apenas precisamos ter calma, muita calma,
sobre quais mudanças e para que servirão. Recentemente, a Polícia Civil
do Rio de Janeiro e o Ministério Público daquele Estado – por meio de
seus órgãos de inteligência – chegaram à parcial elucidação do homicídio
que vitimou a vereadora Marielle Franco e Anderson Gomes. Tudo por meio
de adequada tecnologia e sigilo investigativo. Aliás, como
desdobramento dessa investigação, a Polícia carioca conseguiu fazer a
maior apreensão da história do Rio de Janeiro de armas clandestinas (107
fuzis!), sem que para isso um projétil sequer fosse deflagrado. Nada de
tanques nas ruas, nada de “balas perdidas”, nada de mortes, nada de
pirotecnia. Investigação séria. Inteligência. Tecnologia. Modernização,
pois! Ou seja, é possível, sim, investigar, prender, condenar e – ao
mesmo tempo – assegurar a defesa da Constituição e dos direitos
fundamentais…
Mudar – meu querido professor – é uma necessidade urgente, num país
que (ainda) convive (sabe-se lá como) com um Código Penal e um Código de
Processo Penal fabricados em plena era Vargas (Estado Novo) e que,
definitivamente, possuem várias de suas regras dissonantes com a
Constituição democrática de 1988. Precisamos, por exemplo, alterar nosso
sistema recursal, Sim, ele emperra! Assegura, aos que possuem condições
financeiras para isso, a chance de recorrerem ad infinitum,
procrastinando o processo e, não raro, levando a prescrições
injustificáveis. Isso é um absurdo e precisa mudar! E pode mudar. De
forma simples, direta e a curto prazo!
Porém, caro mestre, a ideia que hoje vigora não é bem a de que
precisamos alterar nossa legislação fascista (Estado Novo) para se
adequar à Constituição democrática; ao invés, a ideia é a de que a
Constituição se tornou (ela mesma) um óbice, um atravanco, uma pedra no
sapato do punitivismo. Ou seja, a Constituição “atrapalha” a realização
da justiça no campo penal, já que permite direitos “demais” aos
imputados, obstando condenações céleres.
Hoje, em dia, meu querido professor e amigo, defender a Constituição
passou a ser um ato subversivo! Afirmar que os direitos fundamentais de
todos (vítimas e réus) precisam ser assegurados faz de você quase um
discípulo direto de Marx! Veja a que ponto chegamos…
E nessa toada, o Ministério Público se deixou levar… Muitos,
seduzidos pelo canto da sereia, começam também a achar que existem “direitos demais” e “punições de menos”
e, por conta dessa crença, estamos assistindo – quase incrédulos – a
uma verdadeira cruzada contra princípios constitucionais, sob o
argumento de que os fins justificam os meios. Basta lembrar do recente
ataque à presunção de inocência, ocasião em que a Corte Constitucional
do país – de quem se esperava a defesa dos valores democráticos – usou
de um malabarismo retórico sem tamanho, para dizer que mesa não é mesa,
mas, sim, cadeira! Explico-me: qual parte do “ninguém, será considerado culpado senão após o transito em julgado de sentença penal condenatória”
não ficou clara? Sabemos o que é uma sentença penal condenatória?
Sabemos o que é trânsito em julgado? Sabemos o que é considerar alguém
culpado? Temos, minimamente uma paz dogmática (Jacinto Coutinho) sobre
esses conceitos? Então, se a temos, não me parece plausível seguir
dizendo que mesa não é mesa, mas sim, cadeira![2]
Por evidente que o Brasil sempre viveu (sob) uma cultura punitivista.
Para isso, basta consultar os dados do DEPEN (Departamento
Penitenciário Nacional), ou – melhor ainda – ir aos excelentes
pesquisadores da criminologia crítica que temos por aqui (Vera Andrade,
Vera Malaguti Batista, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Salo de
Carvalho, Maurício Dieter, Nilo Batista, Juarez Cirino dos Santos e
tantxs outrxs). Assim, de tempos em tempos, vivemos um boom de
populismo penal, como, por exemplo, na década de 90 do século passado,
inaugurada com a inesquecível lei no. 8.072/90 (Lei de Crimes hediondos)
que, tal qual todas as promessas vazias, assegurava que o aumento das
penas para os então considerados “crimes graves”, a amputação de
garantias (proibição de progressão de regime, de concessão de liberdade
provisória, etc), a criação de novos tipos penais, teriam – como
consequência direta e inexorável – a diminuição da violência e da
“criminalidade”. Qual o quê?
Passados quase 30 anos da referida lei, a única coisa que aumentou
no país (vertiginosamente, diga-se) foi o numero de encarcerados (lembro
sempre Malaguti: “a era do grande encarceramento”).
Pois o discurso agora se repete, quase ipsis litteris! Mudam
um pouco os crimes graves: ao invés de extorsão mediante sequestro
(que, na década de 90, teve como vítimas os empresários Abílio Diniz e
Roberto Medina), aparece a corrupção, a grande chaga da
contemporaneidade. Mudam também alguns alvos (os indesejados,
para usar Zaffaroni, sempre se alteram no decorrer da História do
punitivismo), bem como algumas técnicas e estratégias de intervenção
penal (agora um pouco mais sutis, apostando, por exemplo, no modelo de
processo negociado e em colaborações premiadas). Mas, ao fim e ao cabo, o
teor do discurso permanece, como se, definitivamente, não aprendêssemos
com nossos erros passados…
Há coisa de seis meses atrás, um aluno me procurou preocupado com
esse “estado de natureza” antigarantista que vem ganhando repercussão
nas redes sociais. Tratava-se de um jovem estudante de Direito, cujo
semblante desesperançoso me calou fundo. Rapaz estudioso, dedicado,
leitor assíduo de Ferrajoli. Pretende seguir a carreira acadêmica e,
também, a do Ministério Público, mas acabara de me dizer que está
achando quase impossível. Perguntou-me como eu “sobrevivo“.
A ele e a tantos outros anônimos que já andam com medo de defender
suas posturas favoráveis à defesa dos direitos humanos e da
Constituição, tenho somente um conselho: estudem!! Num Estado
Constitucional de Direito, em que (ainda) prevalece alguma racionalidade
jurídica, somente o conhecimento liberta. Sem ele, resta o poder
autoritário. Os esperneios infantis. As frases de efeito. As conversas
de mesa de bar. Os clichês mofados (“O Brasil é o país da impunidade”, “os cidadãos de bem estão presos em suas casas, enquanto os bandidos estão à solta”… e por aí vai). Coisas desse jaez podem até impressionar os incautos, mas não resistem ao mais comezinho crivo teórico.
Somos todos auto responsáveis pelas escolhas que fazemos: pessoais,
profissionais, ideológicas, acadêmicas. Escolhas implicam consequências.
Escolher o caminho do respeito à Constituição importa ônus! Nada se faz
impunemente.
Ahhhh, sobre o garantismo, a questão é bem simples: ele nada tem com o
abolicionismo ou os movimentos marginais!!! Todo o contrário! É uma
teoria positivista, iluminista, utilitarista! Defende a legitimidade do
poder punitivo. A única questão é: exige o cumprimento das regras do
jogo democrático! Isso é garantismo, é o que está na CRFB e é a razão de
ser do próprio Ministério Público, a quem incumbe a defesa
intransigente da ordem jurídica e do regime democrático.
Portanto, meu querido professor, encerro deixando ao senhor a resposta à sua própria pergunta… Ana Cláudia Pinho – Doutora em Direito. Professora de
Direito Penal da UFPA. Coordenadora do grupo de pesquisa “Garantismo em
Movimento”. Promotora de Justiça Criminal do MP/PA [1] Sobre o tema, indico o artigo de Lenio Streck https://www.conjur.com.br/2019-fev-21/senso-incomum-proposta-seria-plea-bargain-serio [2]
Como dito acima, evidente que o sistema recursal brasileiro necessita
de uma urgente reforma. Há recursos desnecessários e situações meramente
protelatórias. Porém, isso jamais pode justificar a violação de um
princípio constitucional! Se a saúde vai mal, mata-se o doente? Não é a
Constituição que precisa ser afrontada, mas o sistema jurídico-penal que
necessita se adaptar a ela e aos “novos tempos”!
O que espanta nestes tempos de extremismo não é apenas a agressividade das disputas políticas, um fenômeno que se alia a xingamentos generalizados (e generalizantes), brigas e expressões de ódio, a indicar que a sociedade está doente. Mais do que isso, chama a atenção a superficialidade dos discursos propagados pelos “vencedores”. São frases arrumadas sem critério lógico, postas à disposição de vozes repetidoras de verdades absolutas, sempre em defesa dos interesses do mercado, o deus da modernidade.
De algum tempo para cá, o combate à quase-social-democracia produzida pela Constituição de 1988 se tornou muito mais intenso. A eliminação de direitos ocupou a narrativa da ordem, condicionando o futuro nacional a uma estabilidade econômica falsamente concebida e incapaz de coexistir com garantias individuais e coletivas. Saíram de cena os governantes empenhados em anunciar, com maior ou menor grau de sinceridade, medidas de combate à pobreza ou de redução de desigualdades. O que vale, hoje, é a pregação desvairada contra um comunismo de ficção e a favor de teses obscurantistas sustentadas por líderes religiosos de araque, acompanhada da desqualificação de qualquer gesto ou movimento organizado que se apresente como contraposição ao “sistema”.
Michel Temer, o presidente que fez aprovar a reforma trabalhista e o corte de investimentos públicos autorizado pela “PEC do fim do mundo”, cumpriu exemplarmente o papel que lhe cabia na configuração da nova política. No término de um mandato ilegítimo e antipopular, exibiu como troféu o esfacelamento do Direito do Trabalho, convertido em norma de chancela da precarização e do barateamento da mão de obra. Os milhões de empregos prometidos pelas mudanças legislativas não vieram, assim como a intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada para acabar com a violência e o tráfico de drogas, se limitou a espalhar terror entre a população pobre.
Curiosamente, a maior apreensão de armas de grande porte jamais realizada pelas forças policiais aconteceu alguns meses após a saída de Temer, a partir de investigações que apontaram os autores do assassinato de Marielle Franco, vereadora que denunciou milicianos que comandam um Estado paralelo na região metropolitana do Rio, e Anderson Gomes, que trabalhava como motorista. O arsenal, porém, não estava escondido em nenhuma favela, em nenhuma comunidade desprovida de serviços básicos, mas na região nobre da Barra da Tijuca, em imóvel vizinho ao local onde mora Jair Messias Bolsonaro, transformado em presidente do Brasil nas eleições facebookianas e whatsappianas de 2018.
A Temer, não obstante os agradecimentos protocolares da elite econômica que se valeu dos seus préstimos, restou a prisão decretada tardiamente no dia 21 de março que passou. O ostracismo imaginado pelo golpista vampiresco, ao que parece, enfrentará percalços motivados pela ingratidão daqueles que o patrocinaram. Ossos do ofício.
Mas a questão a ser retomada é o discurso ideológico, repetido com desenvoltura pelo capitão e seus filhotes numerados em ordem crescente. Bolsonaro não se cansa de afirmar que os brasileiros estão condenados a escolher entre emprego e direitos. Ou que o trabalho das mulheres vale menos do que o trabalho dos homens. Ou que os operários devem destruir os seus próprios sindicatos e buscar a proteção dos patrões. Ou que a tortura e o armamento são meios de combate à violência.
Pois é em torno desses “conceitos” que o governo prepara, em combinação com um Congresso ultraconservador, instituições bancárias e agentes da mídia, o golpe final que transformará a maior parte da população brasileira em cidadãos sem direitos, sem assistência, sem saúde, sem salários e sem aposentadoria: a contrarreforma da Previdência. A esperança, para aqueles que serão massacrados – mesmo para os que ainda não perceberam isso –, é que a ideologia que adorna as palavras oficiais tem prazo de eficácia limitado. Para convencer as massas de que “perder direitos é bom”, o recurso utilizado tem sido a mentira. E esta, como se sabe, não dura para sempre.
Observe o que se passou neste país a partir de 2014.
Desde então, as forças de direita, os conservadores, a mídia e o Judiciário foram construindo uma unidade política prática que lhes permitisse reconquistar a classe média, eliminar os políticos de esquerda – ou ao menos isolar os petistas dos demais – e reconquistar a plenitude do poder que jamais deixou de gozar neste país, mas do qual, há uma dúzia de anos, já não conseguiam exercer de forma desabrida.
Queimaram seus ícones mais antigos, de alguma forma ainda impregnados de alguma ideia de convívio democrático e passaram a usar o golpismo, a histeria e, sobretudo, o moralismo com que preencheram sua falta de um programa para o Brasil e seu povo.
Nem é preciso dizer o quão cínico é este fundamentalismo, basta ver a situação dos que lhe serviram, nestes anos, como instrumentos: Aécio Neves, Eduardo Cunha, Michel Temer e, agora, Jair Bolsonaro.
Claro, eles foram deixando ao longo do caminho os corpos politicamente carbonizados dos que lhes serviram, mas levaram tão longe a perda da razão que lhes sobrou uma situação autofágica, onde juízes e promotores tornaram-se planta carnívoras inaciáveis, um tosco fundamentalista está no Governo e as forças armadas vão ocupando todos os espaços de direção dos assuntos nacionais.
Já não têm como deixar de perceber que este arranjo só sobrevive se puder se alimentar de carne humana, devorada em frenesis totalitários. E cada um teme ser o próximo.
Sobrou-lhes um único liame, um elo que aida os mantêm próximos: a destruição do país e o saque sobre os parcos direitos de seu povo. Vender o patrimônio, a soberania e dissolver as garantias sociais da população ainda é o fiapo de unidade que os reúne.
Mas ele próprio vai se rompendo, porque a fúria com que se emprega em sua destruição e os privilégios das camadas do Estado que tutelam este estado de coisas são evidentes demais para conservarem uma aparência de legitimidade.
O pensamento e a ação em favor do povo brasileiro não pode deixar de considerar, de forma permanente e mais ainda no momento em que o bloco de forças do atraso se fissura tão generalizadamente que manter as liberdades públicas, as garantias jurídicas e o que resta das conquistas sociais se sobrepõe a todas nossas mágoas, rancores e até à repugnância que nos causam as partes que se soltam do que era o monólito da direita.
No Brasil criaram-se as peças processuais espetaculares.
As filmagens, as divulgações das gravações dos depoimentos passaram a integrar o processo penal, ou seja, a soma das peças processuais mais as notícias da mídia.
Petições, termos de perícias, despachos, sentenças, reportagens espetaculares e até entrevistas de juízes fazem parte deste novo processo penal.
Uma coisa é o processo penal em si mesmo, um meio legal para um fim, absolvição ou condenação. Outra coisa é o espetáculo, a notícia, a charge, as críticas, o escárnio público, o drama, as entrevistas e as opiniões – com opiniões e fundamentos provisórios.
Alguns podem argumentar: “É um homem público, tudo deve ser divulgado”. Certíssimo.
Mas se tudo compõe o processo, há uma contradição fundamental: a pessoa pode ser absolvida na esfera penal e condenada pela mídia e pela opinião pública, mídia que, aliás, é formada por cinco impérios da comunicação, um belo oligopólio jamais visto nos países civilizados.
A mídia em diversos países da União Europeia tem, no mínimo, três opiniões diferentes. Todos falam e reciprocamente se contrapõem. Ganha o telespectador que enxerga vários pontos de vista.
Determinado programa espanhol possui cinco jornalistas polêmicos. Depois de ouvir as diversas opiniões, conclui-se que cada uma guarda alguma verdade nas versões sobre os fatos.
Hoje, no Brasil, o juiz dá entrevistas, e compromete-se antes mesmo da sentença final do processo. Em poucas palavras, pré-julga a causa junto com a mídia. Não mantém o recato nem a discrição que são fundamentais para o mister de julgar.
A imprensa é avisada pelas autoridades, buscam-se os melhores ângulos e criam-se vilões e heróis nacionais.
Altas autoridades do Estado e alguns segmentos das elites estão na mira de várias operações. Bravo, bravíssimo! Tem-se a sensação de que, agora sim, a justiça funciona para todos, estamos numa democracia, a mídia delira, o processo penal se expande.
Outrora, o juiz falava apenas nos autos e os advogados não podiam opinar sobre autos que desconheciam. Os estatutos legais proíbem tais condutas. Quem liga para isto?
Todo Poder Judiciário está realmente julgando todos os corruptos – e das investigações não escapa ninguém? Ou há um cenário novelístico à caça de alguns personagens, politicamente escolhidos, para nos dar a sensação de que nenhum poderoso se livra da Justiça e da mídia, impiedosas e justiceiras?
A justiça penal brasileira precisa acertar as contas com as elites corruptas. Esta conta ainda não foi paga historicamente.
Há procedimentos constitucionais que estão sendo atropelados, mas ninguém se importa, inclusive alguns tribunais que flexibilizam princípios. Séculos de corrupção não podem esperar.
Processos lentos levam à impunidade da prescrição, a maioria escapa por este caminho, recursos e mais recursos, daí o motivo de o show continuar.
A condenação pela mídia ao menos dá a sensação de que houve alguma punição, a da execração pública, da prisão espetáculo.
Até o momento, o documento foi assinado por 65 nomes como o ex-ministro José Eduardo Cardozo, Pedro Serrano, Marco Aurélio de Carvalho e Carol Proner.
O texto é encabeçado pelo jurista Celso Antonio Bandeira de Mello.
Entre outra coisas eles afirmam que a prisão de Temer “despertou, mesmo em seus adversários políticos, como muitos dos subscritores deste documento, a certeza de que é necessária a cessação do uso da lei para fins políticos, com o fito de manipular a opinião pública”.
MANIFESTO PELO RETORNO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Sociedade brasileira tem assistido nestes últimos anos uma escalada contrária ao Estado Democrático de Direito. A prisão do ex-presidente Michel Temer despertou, mesmo em seus adversários políticos, como muitos dos subscritores deste documento, a certeza de que é necessária a cessação do uso da lei para fins políticos, com o fito de manipular a opinião pública. O fato é que chega a surpreender que pessoas formadas em Direito e que devem ter prestado um concurso de suficiência técnica e moral para ingressar em seus cargos cheguem a praticar atos que se constituem em verdadeiras aberrações jurídicas. Estas só servem para destruir a higidez das instituições.
Atuando como se fossem donos do Poder e não simples representantes dele, os autores de tais comportamentos em nada contribuem para os objetivos que artificialmente são invocados para acobertá-los. É sabido e ressabido que a legislação do País exige para a supressão preventiva da liberdade de qualquer indivíduo, seja ele um cidadão despido de qualquer autoridade, seja um ocupante ou ex-ocupante de Poder, a ocorrência de requisitos essenciais, previstos em lei e na conformidade de circunstâncias específicas. Prisões sem tal cumprimento são meras violências e atentados contra direitos fundamentais dos cidadãos É evidente que o País entrou em momento de total desrespeito à ordem jurídica, o que põe em risco não apenas os que já são vítimas deste descalabro, mas também todos nós cidadãos, que, a qualquer momento poderemos ser também alcançados por esta violência inconsiderada. Se a cúpula do Poder Judiciário e a própria Sociedade não se manifestarem diante dos citados desmandos, o risco de que se avolumem ainda mais coloca-nos ante a iminência de uma completa supressão dos direitos e garantias individuais, que, aliás, já são temidos por muitos, os quais vislumbram, no que vem ocorrendo, um preâmbulo preparatório da derrocada final da Democracia.
1. Celso Antonio Bandeira de Mello 2. Weida Zancaner 3. Pedro Serrano 4. Marco Aurélio de Carvalho 5. José Eduardo Cardozo 6. Fabiano Silva Santos 7. Gabriela Araújo 8. Miguel Pereira Neto 9. Antonio Carlos de Almeida e Castro ( kakay) 10. Lenio Streck 11. Bruno Salles 12. Pedro Carriello 13. Marcelo Nobre 14. Geraldo Prado 15. Carol Proner 16. Gisele Cittadino 17. Alberto Toron 18. Maurício Zockun 19. Daniela Teixeira 20. Carolina Zancaner Zockun 21. Gabriela Zancaner Bandeira de Mello 22. Fernando Fernandes 23. Ernesto Tzirulnik 24. Kenarik Boujikian 25. Eleonora Nacif 26. Estela Aranha 27. Pietro Alarcón 28. Maurides Melo Ribeiro 29. Maíra Fernandes 30. Roberto Podval 31. Luzia Paula Cantal 32. Roberto Tardelli 33. Marina Chaves Alves 34. Vitor Marques 35. Guilherme Lobo Marchioni 36. Cristiano Maronna 37. Luis Guilherme Vieira 38. Antonio Pedro Melchior 39. Eder Bomfim Rodrigues 40. Juarez Tavares 41. Angelita da Rosa 42. Carmen da Costa Barros 43. Gisele Ricobom 44. Fábio Tofic Simantob 45. Luiz Fernando Pacheco 46. Reinaldo Santos de Almeida 48. Valeska Teixeira Zanin 49. Cristiano Zanin 50. Sergio Graziano 51. Fernando Tristão Fernandes 52. Otávio Espires Bazaglia 53. Rafaela Azevedo de Otero 54. Rodrigo José dos Santos Amaral 55. Breno de Carvalho Monteiro 56. Wagner Gusmão Reis Junior 57. Esmar Guilherme Engelke Lucas Rêgo 58. Douglas de Souza Lemelle 59. Raphael da S. Pitta Lopes 60. Ricardo José Gonçalves Barbosa 61. Beatriz Vargas Ramos 62. Antonio Carlos Mendes 63. Magda Barros Biavaschi 64. Anna Candida Serrano 65. Margarete Pedroso
Depois de ganhar notoriedade pela prisão do ex-governador Sérgio Cabral, o juiz Marcelo Bretas abandonou, paulatinamente, a discrição que o mantinha à sombra do então colega de toga Sérgio Moro, a quem nunca poupa elogios.
Para ir à posse do presidente Jair Bolsonaro, aceitou carona do governador do Rio, Wilson Witzel. Nove dias depois, tuitou: "Alguns países estão democraticamente mudando a orientação de seus governos, de esquerda (viés mais populista) para centro-direita (viés mais técnico). Respeitemos a vontade da maioria e aguardemos o cumprimento das propostas. Críticas prematuras são claramente oportunistas".
Antes que o primeiro mês de governo Bolsonaro terminasse, achou por bem pedir mais paciência aos seus 140 mil seguidores: "O Brasil está mudando, rapidamente e para melhor. Lamentavelmente, essa mudança não é instantânea. Assim, ainda por algum tempo, haveremos de conviver com forças retrógradas comprometidas com o modelo superado".
Sumiu por um mês e, no fim de fevereiro, retuitou uma nota pública do Ministério Público do Rio em resposta ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que acusara os procuradores de terem colocado a Receita no seu encalço. No início de março, deu novamente as caras para defender o pacote de Moro: "Em determinadas circunstâncias, que só podem ser avaliadas casualmente e pelas autoridades competentes, a POLÍCIA DEVE usar a força e, eventualmente, até mesmo MATAR. Isso não é novidade. Está na lei".
São indícios insuficientes de que Bretas agiu como braço auxiliar do governo em sua queda de braço com o Supremo e com o Congresso. Parecem mais robustas as evidências de que o juiz se valeu da prisão do ex-presidente Michel Temer, dada como certa por alguns de seus mais próximos amigos desde sua saída do poder, para reforçar as barricadas da Lava-Jato na disputa com o STF.
Há duas passagens no mandado de prisão de Temer que corroboram a empreitada. A primeira é a que censura a investigação de ofício por colocar em risco, em sua visão, a parcialidade do judiciário: "Nenhuma investigação deve ser inaugurada por autoridade judiciária, em respeito ao sistema penal acusatório consagrado em nosso texto constitucional". O Supremo decidiu, de ofício, e sem sorteio de relator, investigar ameaças e xingamentos contra seus ministros nas redes sociais. Se a prerrogativa fosse estendida a todo internauta xingado na rede, as varas judiciais não fariam outra coisa.
A segunda passagem do mandado que sugere uma briga interna corporis é aquela em que Bretas citou a decisão recente do Supremo que restringiu a competência de julgamento de crimes de corrupção e caixa 2 em campanhas para a Justiça Eleitoral: "Não seria possível a um investigado, sem fazer prova a respeito, mediante uma singela alegação de que além de crimes comuns haveria cometido também crime de competência da Justiça Eleitoral, dar causa às mudanças de atribuições e de competência em uma competência ou processo judicial". Acrescentou ainda que o próprio Temer eximira o coronel João Batista Lima, o amigo também preso e acusado de operar propinas em contratos da Eletronuclear, de ter atuado na arrecadação de recursos para campanha.
Se não há dúvidas de que Bretas mostrou ter lado na disputa entre Lava-Jato e Supremo, parece precipitado concluir que a prisão beneficia o governo Jair Bolsonaro. A operação deu-lhe, no limite, um fôlego. O presidente amarga queda acentuada de popularidade e mostrou-se refém dos militares do governo com uma reforma que tira benefícios com uma mão e devolve com a outra. Ganhou, com a prisão, a vitrine de que, sob seu governo, o Brasil prossegue no combate à corrupção.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, cuja mulher é enteada do ex-ministro Moreira Franco, também preso na operação, entrou em rota de colisão com Moro e com o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, ao rejeitar o pacote anticorrupção e o decreto que barra nomeações de fichas-suja. Como está em suas mãos a tramitação da reforma da Previdência, projeto em que o governo deposita suas apostas de retomada do crescimento, Maia barganha o recuo do governo perfilado ao lado do STF contra a Lava-jato.
Ao longo das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer, a operação foi o escoadouro dos impasses. Quando tudo parecia travado na disputa entre Congresso e Executivo, vinha a Lava-jato e desempatava o jogo. No governo Dilma, o resultado foi o impeachment. No de Temer, a eleição de Bolsonaro.
A Lava-jato e suas prisões acionaram mecanismos de desmonte. Um governo, no entanto, só funciona pela montagem de maiorias e consensos. O que ainda está por se provar é que, na condição de aliada majoritária de Jair Bolsonaro e de sua enrolada família, a Lava-jato será capaz manter de pé uma base parlamentar que, por enquanto, ainda é a baliza de aprovação de projetos governamentais.
No andar da carruagem... Pinçado da coluna de leitores do UOL
"Tal qual na história de Goethe, Moro vendeu a sua alma ao diabo, pisou na Lei, rasgou a Constituição, desrespeitou a dignidade das pessoas para alcançar e realizar os seus delírios pessoais de poder. Na posse de atribuições que a Lei lhe dava, é verdade, fez da magistratura instrumento de politicagem rasteira, absolveu com provas e condenou sem provas, numa demonstração de arbítrio e prepotência. Tacla Duran, ex-advogado da Odebrecht, denunciou o comércio de delações nos domínios da republiqueta de Curitiba. Por meio de sentenças nulas, sem provas, fora do devido processo legal, perturbando o processo eleitoral com a divulgação de mentiras vazias, sem fatos, conseguiu eleger um governo que lhe desse uma sinecura qualquer e o guindasse ao cenário político nacional. Pois é, virou ministro e não sabe o que fazer com o cargo. Prepotente, só sabe dar ordens, e num governo desmoralizado, atolado em denúncias de corrupção e proximidades com o crime organizado."
Há vasto rol de motivos por meio dos quais poder-se-ia celebrar a prisão de Michel Temer. O mais cristalino deles seria a sua participação como co-conspirador no golpe parlamentar de 2016.
Vice-presidente de Dilma Rousseff e presidente nacional do MDB, Temer sucumbiu ao açulamento do facínora Eduardo Cunha. Depois de concordar com o roteiro traçado para o impeachment sem crime de responsabilidade tornou-se seu fiador. Foi o maior articulador da derrubada de um governo constitucional. O auxílio animado e pragmático de Moreira Franco, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves, Eliseu Padilha e Aécio Neves conferiu precisão suíça (com e sem fundos) às engrenagens da máquina golpista.
Cunha já está sentenciado. Da cadeia aguarda julgamento de uma penca de crimes comuns. Henrique Eduardo Alves, idem. Mas encontra-se em prisão domiciliar. Geddel está na Papuda. Padilha e Aécio acordam todos os dias antes das 6h com a angústia dos culpados – sabem que se o interfone tocar àquelas alturas será a parafernália da PF e do MP intimando-os para o ajuste de contas que não tardará.
Tendo-se convertido em co-autor da barbaridade que foi a deposição de uma presidente pela imputação de um crime fiscal tipificado e datado com validade exclusiva para a finalidade de fundamentar juridicamente o impeachment de 2016, só por isso Temer mereceria o desprezo e o asco da História. As pedaladas fiscais eram praticadas por todos os antecessores de Dilma e seguem sendo executadas pelos sucessores. Ele ajudou a construção da jabuticaba contábil que levaria à usurpação da cadeira presidencial.
Enquanto era vice decorativo, conforme sua própria definição em missiva referenciada no rodapé dos livros de História, Temer empregou amigos para influenciar pessoas e – diz-se – seguir fazendo caixa político e entesouramento pessoal. A Secretaria Nacional de Aviação Civil, a Secretaria Nacional de Portos, o Ministério da Agricultura, o Ministério da Saúde, a Caixa Econômica Federal, a Infraero e diretorias da Petrobras, do Banco do Brasil e do BNDES estavam sempre disponíveis para as reinações daquele modus operandi bem canhestro de fazer política.
Antes disso, numa viagem regressiva à biografia mediana de Temer como político paroquial paulista ascendido à condição de chefe partidário de uma sigla notabilizada pelo poder dos clãs regionais e não por um projeto de poder republicano, carguinhos em portos e em delegacias da Receita Federal e a máquina da Agricultura financiavam a estrutura temerista. Era temerário, com o perdão do trocadilho infame. Contudo, foi dessa forma que ele se sustentou nos governos de José Sarney e de Fernando Henrique Cardoso, além dos dois mandatos de Lula. Esforçanva-se para não ser enxergado e escondia-se por trás das eficazes movimentações financeiras do coronel Lima (também preso na última quinta-feira).
Sempre se soube em Brasília que o passeio de Michel Temer pelo jardim maldito das ilegalidades – desde as constitucionais até o mais mundano dos trocos para fiscais sanitários e aduaneiros – um dia levá-lo-ia em cana. O erro patético e infantil de se deixar gravar no subsolo do Palácio Jaburu pelo empresário Joesley Batista fora incompatível com o cargo que exercia então – aquele usurpado de Dilma – mas congruente com a dimensão rastaquera de sua personagem política.
Ainda assim, com toda a ficha corrida que possui no tribunal do Juízo Final, a prisão de Michel Temer pelas volantes da Lava Jato foi uma ignomínia contra o Direito, contra o Estado Democrático e contra as liberdades individuais. E é por isso que os jagunços que a executaram merecem repulsa e revide – dentro das regras do jogo político.
Provecto, quase octogenário, Temer precisa conhecer os crimes que lhe são imputados e defender-se deles no rito que a Justiça estabelece. Cassou-se esse direito do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, construiu-se um direito penal exclusivo para julgar e sentenciar Lula antes que ele pudesse se submeter ao julgamento das urnas. Muitos dos que reclamam agora das barbaridades contra o emedebista calaram (ou até celebraram) a celeridade criminosa do tribunal de exceção de Curitiba e da 2ª instância de Porto Alegre esgrimida como vingança contra o petista. Aliás – como vingança, não: como exibição de recalques. Dessa vez, com Temer, reproduzem-se as violências perpetradas contra Lula.
Temer teve mais de uma oportunidade para fugir do país e escapar do acerto de contas com a lei. Ele é cidadão libanês, assim como seu filho caçula e a mulher Marcela, que receberam a cidadania libanesa em 2018. O Líbano não tem acordo de extradição com o Brasil. Fechadas as urnas do ano passado, configurada a vitória de Jair Bolsonaro e de seu discurso de faxina étnica contra a política e os políticos, Temer recebeu diversos estímulos e incentivos para fugir antes de passar a faixa àquele que não era seu sucessor – não era ele quem deveria estar na cerimônia de transmissão da faixa. Recusou-se à fuga. Resignou-se ao devido processo legal. Imaginou-se imune às vinganças mais torpes de alas partidarizadas e infantilizadas do Ministério Público e da 1ª instância judicial. Resultado dessa fé: foi preso antes que pudesse apresentar sua defesa, sua versão dos fatos, para a imputação de crimes que macularão para sempre seu prontuário.
Temer não tem biografia. Perdeu-a em definitivo em abril de 2016, quando foi o sujeito oculto das negociações da aprovação do impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma Rousseff. Impeachment do qual era, claro, beneficiário óbvio e ululante. Ao entregar o coração da Democracia numa bandeja aos coveiros irresponsáveis da política, assim contribuindo para a ascensão de aventureiros como Jair Bolsonaro e Sérgio Moro, que trazem consigo hordas de ativistas judiciais e extrajudiciais cuja atuação se dá à margem do Estado de Direito e dos ritos constitucionais, Michel Temer fundiu ele próprio as barras do cárcere em que foi metido. Os estratos da sociedade que foram recalcadamente hostis a Lula, a Dilma e ao PT precisam fazer uma autocrítica e depois que todos se unam pela restauração democrática. Há riscos, mas o país vale a luta.
Como você é espionado por seu celular Android sem saber
Um estudo envolvendo mais de 1.700 aparelhos de 214 fabricantes revela os sofisticados modos de rastreamento do software pré-instalado neste ecossistema
Não importa se você vai baixar o Facebook, ativar sua conta do Google ou dar todas as permissões de acesso a qualquer aplicativo esquisito de lanterna ou antivírus. Antes de executar qualquer ação, seu celular novo já começou a compartilhar detalhes da sua vida. O software pré-instalado de fábrica é o recurso mais perfeito desse celular para saber sua atividade futura: onde está, o que ele baixa, quais mensagens manda, que arquivos de música guarda.
“Os aplicativos pré-instalados são a manifestação de outro fenômeno: acordos entre atores (fabricantes, comerciantes de dados, operadoras, anunciantes) para, em princípio, agregar valor, mas também para fins comerciais. O elemento mais grave nisso é a escala: falamos de centenas de milhões ou de bilhões de telefones Android”, diz Juan Tapiador, professor da Universidade Carlos III e um dos autores, junto com Narseo Vallina-Rodríguez, do IMDEA Networks e do ICSI (Universidade de Berkeley), da investigação que revela esse submundo. Os celulares Android representam mais de 80% do mercado global.
O elemento mais grave nisso é a escala: falamos de centenas de milhões ou de bilhões de telefones Android
Juan Tapiador, professor
O novo estudo comandado pelos dois acadêmicos espanhóis revela a profundidade do abismo. Nenhuma das conclusões é radicalmente nova por si só: já se sabia que os celulares andam no limite das autorizações de uso na hora de colher e compartilhar dados. A novidade da função dos aplicativos pré-instalados está em sua extensão, falta de transparência e posição privilegiada dentro do celular: foram analisados 1.742 celulares de 214 fabricantes em 130 países.
“Até agora as pesquisas sobre os riscos de privacidade em celulares se centravam em aplicativos que estão listados no Google Play ou em amostras de malware”, diz Vallina. Desta vez, foram analisados os softwares que os celulares trazem de série, e a situação parece fora de controle. Devido à complexidade do ecossistema, as garantias de privacidade da plataforma Android podem estar em xeque.
O artigo, que será publicado oficialmente em 1º de abril e ao qual o EL PAÍS teve acesso, já foi aceito por uma das principais conferências de segurança cibernética e privacidade do mundo, o IEEE Symposium on Security & Privacy, da Califórnia.
Nossa informação pessoal é enviada a uma ampla rede de destinos, que muda segundo o celular, e alguns são polêmicos: para servidores do fabricante do celular, para empresas habitualmente acusadas de espionar nossas vidas —Facebook, Google— e para um obscuro mundo que vai de corporações a start-ups que reúnem a informação pessoal de cada um, empacotam-na com um identificador vinculado ao nosso nome e a vendem a quem pagar bem.
Nossa informação pessoal é enviada a uma ampla rede de destinos, alguns deles polêmicos
Ninguém até agora havia se debruçado sobre este abismo para fazer uma investigação dessa magnitude. Os pesquisadores criaram o aplicativo Firmware Scanner, que recolhia o software pré-instalado dos usuários voluntários que o baixavam. Mais de 1.700 aparelhos foram analisados nesse estudo, mas o aplicativo está instalado em mais de 8.000. O código aberto do sistema operacional Android permite que qualquer fabricante tenha sua versão, junto com seus apps pré-instalados. Um celular pode ter mais de 100 aplicativos pré-instalados e outras centenas de bibliotecas, que são serviços de terceiros incluídos em seu código, muitos deles especializados em vigilância do usuário e publicidade.
Ao todo, um panorama internacional de centenas de milhares de aplicativos com funções comuns, duvidosas, desconhecidas, perigosas ou potencialmente delitivas. Essa quase perfeita definição do termo caos levou os pesquisadores a mais de um ano de exploração. O resultado é só um primeiro olhar para o precipício da vigilância maciça de nossos celulares Android sem conhecimento do usuário.
Mais de um fabricante
Um celular Android não é produto apenas do seu fabricante. A afirmação é surpreendente, mas na cadeia de produção participam várias empresas: o chip é de uma marca, as atualizações do sistema operacional podem estar terceirizadas, as operadoras de telefonia e as grandes redes de varejo que vendem celulares acrescentam seu próprio software. Os atores que participam da fabricação de um celular vão muito além do nome que aparece na caixa. É impossível determinar o controle definitivo de todo o software lá colocado, e quem tem acesso privilegiado aos dados do usuário.
O resultado é um ecossistema descontrolado, onde atualmente ninguém é capaz de assumir a responsabilidade do que ocorre com nossa informação mais íntima. O Google criou a plataforma a partir de código livre, mas agora ele é de todos. E o que é de todos não é de ninguém: “O mundo Android é muito selvagem, é como um faroeste, especialmente em países com escassa regulação de proteção de dados pessoais”, diz Tapiador.
“Não há nenhum tipo de supervisão sobre o que se importa e comercializa em termos de software (e em grande medida de hardware) dentro da União Europeia”, diz Vallina. O resultado? Um caos, onde cada versão de nossos celulares Android conversa com sua base desde o primeiro dia, sem interrupção, para lhe contar o que fazemos. O problema não é só o que contam sobre nós, mas que o dono do celular não controle a quem dá permissões.
O jardim fechado do Google Play
As empresas que reúnem dados de usuários para, por exemplo, criar perfis para anunciantes já têm acesso aos dados do usuário através dos aplicativos normais do Google Play. Então que interesse um comerciante de dados tem em chegar a acordos com fabricantes para participar do software pré-instalado?
Imaginemos que nossos dados estão dentro de uma casa de vários andares. Os aplicativos do Google Play são janelas que abrimos e fechamos: às vezes deixamos os dados sair, e às vezes não. Depende da vigilância de cada usuário e das autorizações concedidas. Mas o que esse usuário não sabe é que os celulares Android vêm com a porta da rua escancarada. Tanto faz o que você fizer com as janelas.
O software pré-instalado está sempre lá, acompanha o celular para cima e para baixo, e além do mais não pode ser apagado sem rootear o dispositivo – romper a proteção oferecida do sistema para fazer o que quiser com ele, algo que não está ao alcance de usuários comuns.
Esse usuário não sabe que os celulares Android vêm com a porta da rua escancarada
Os aplicativos que o usuário baixa do Google Play dão a opção de ver as permissões concedidas: autoriza seu novo jogo gratuito a acessar seu microfone? Permite que seu novo appacesse a sua localização para ter melhor produtividade? Se nos parecerem permissões demais, podemos cancelá-las. Os aplicativos que o Google fiscaliza têm seus termos de serviço e devem pedir uma autorização explícita para executar ações.
O usuário, embora não repare ou não tenha outro remédio, é o responsável final por suas decisões. Ele está autorizando alguém a acessar seus contatos. Mas os aplicativos pré-instaladas já estão lá. Vivem por baixo dos aplicativos indexados na loja, sem permissões claras ou, em muitos casos, com as mesmas permissões que o sistema operacional – quer dizer, todas. “O Google Play é um jardim fechado com seus policiais, mas 91% dos aplicativos pré-instalados que vimos não estão no Google Play”, diz Tapiador. Fora do Google Play ninguém vigia em detalhe o que acaba dentro de um celular.
Dois problemas agregados
O software pré-instalado tem outros dois problemas agregados: fica junto do sistema operacional, que tem acesso a todas as funções de um celular, e, dois, esses aplicativos podem ser atualizados e podem mudar.
O sistema operacional é o cérebro do celular. Sempre tem acesso a tudo. Independe que o aplicativo esteja acionado ou que o usuário possa apagá-la. Estará sempre lá e, além disso, é atualizado. Por que as atualizações são importantes? Aqui vai um exemplo: um fabricante autorizou uma empresa a colocar no celular um código que comprove algo inócuo. Mas esse código pode ser atualizado e, dois meses depois, ou quando a empresa souber que o usuário vive em tal país e trabalha em tal lugar, mandar uma atualização para fazer outras coisas. Quais? Qualquer coisa: gravar conversas, tirar fotos, olhar mensagens...
Os aplicativos pré-instaladas são fáceis de atualizar por seu criador: se muda o país ou as intenções de quem colocou lá um sistema de rastreamento, manda-se um novo software com novas ordens. O proprietário de seu celular não pode impedi-lo e nem sequer lhe pedem permissões específicas: atualiza-se o seu sistema operacional.
Essa informação às vezes é descomunal: características técnicas do telefone, identificadores únicos, localização, contatos, mensagens e e-mails
JUAN TAPIADOR, PROFESSOR
“Alguns desses aplicativos ligam para casa pedindo instruções e mandam informação sobre onde estão instalados. Essa informação às vezes é descomunal: relatórios extensos com características técnicas do telefone, identificadores únicos, localização, contatos na agenda, mensagens e e-mails. Tudo isso é reunido num servidor, e é tomada uma decisão sobre o que fazer com esse celular. Por exemplo, segundo o país no qual se encontre, o software pode decidir instalar um ou outro aplicativo, ou promover determinados anúncios. Verificamos isso analisando o código e o comportamento dos aplicativos”, diz Tapiador.
O servidor que recebe a informação inclui desde o fabricante, uma rede social que vende publicidade, um desconhecido comerciante de dados ou um obscuro endereço IP que ninguém sabe a quem pertence.
Um perigo é que esses obscuros aplicativos pré-instalados usam as permissões personalizadas (custom permissions) para expor informação a aplicativos da Play Store. As permissões personalizadas são uma ferramenta que o Android oferece aos desenvolvedores de software para que os aplicativos compartilhem dados entre si. Por exemplo, se um operador ou um serviço de banco tem várias, é plausível que possam falar entre si e compartilhar dados. Mas às vezes não é simples verificar quais dados algumas peças desse software compartilham.
Dentro de um celular novo há por exemplo um aplicativo pré-instalado que tem acesso a câmera, aos contatos e ao microfone. Esse aplicativo foi programado por um sujeito chamado Wang Sánchez e tem um certificado com sua chave pública e sua assinatura. Aparentemente é legítima, mas ninguém comprova que o certificado de Wang Sánchez seja real. Esse aplicativo está sempre ligado, capta a localização, ativa o microfone e conserva as gravações. Mas não manda isso a nenhum servidor, porque o aplicativo de Wang Sánchez não tem permissão para enviar nada pela Internet. O que ele faz é declarar uma permissão personalizada que regula o acesso a esses dados: quem tiver essa permissão poderá obtê-los.
Aí um dia o proprietário desse celular vai à Google Play Store e encontra um aplicativo esportivo magnífico. Que permissões oficiais lhe pedem? Só acessar a Internet, o que é perfeitamente comum entre aplicativos. E também pede a permissão personalizada do aplicativo de Wang Sánchez. Mas você não percebe, porque estas permissões não são mostradas ao usuário. Então, a primeira coisa que o app esportivo recém-chegado dirá ao pré-instalado é: “Ah, você mora aqui? Me dá acesso ao microfone e à câmera?”. Era aparentemente um app sem risco, mas as complexidades do sistema de permissões tornam possíveis situações desse tipo.
Os Governos e a indústria há anos conhecem esse emaranhado. As agências federais dos Estados Unidos pedem seus celulares com sistemas operacionais livres deste software pré-instalado e adaptados às suas necessidades. E os cidadãos? Que se virem. Seus dados não são tão secretos como os de um ministério.
“Exercer controle regulatório sobre todas as versões possíveis do Android do mercado é quase impraticável. Exigiria uma análise muito extensa e custosa”, explica Vallina. Esse caos lá fora permite que sofisticadas máquinas de vigilância maciça vivam em nossos bolsos.
OS AUTORES DOS APLICATIVOS
Os autores desses aplicativos são um dos grandes mistérios do Android. A investigação encontrou um panorama similar ao submundo da Dark Web: há, por exemplo, aplicativos assinados por alguém que diz ser “o Google”, mas não tem jeito de sê-lo. “A atribuição aos atores foi feita quase manualmente em função do vendedor no qual se encontram, quem as assina e se têm, por exemplo, alguma cadeia que identifique alguma biblioteca ou fabricante conhecido”, diz Vallina. O resultado é que há muitas que mandam informação aceitável a fabricantes ou grandes empresas, mas muitas outras se escondem detrás de nomes enganosos ou falsos.
Essa informação é facilmente vinculada a um número de telefone ou dados pessoais como nomes e sobrenomes, não a números identificativos tratados de forma anônima. O telefone sabe quem é o seu dono. O chip e dúzias de aplicativos vinculados ao e-mail ou à sua conta em redes sociais revelam facilmente a origem dos dado