domingo, 10 de março de 2019

Para uma filosofia da urina



Para uma filosofia da urina

por Ricardo Araújo Pereira
No filme sobre o pornógrafo americano Larry Flynt, seu advogado tenta persuadir o júri de que Flynt tinha o direito de divulgar pornografia ao abrigo da liberdade de expressão.
Sabemos hoje que essa argumentação não é a mais eficaz. Larry Flynt devia ter dito sobre o que publicava na revista Hustler: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades”.
No que toca à pornografia, há divulgações benignas e divulgações malignas. Se o pornógrafo publicar pornografia enquanto bate no peito e brada “Oh, como eu abomino as imagens que estou a ver e a
divulgar!”, ele é um cidadão decente e temente a Deus.
Sempre que consumo pornografia, é precisamente com esse intuito: o de abominar todas aquelas poucas-vergonhas, e com a vontade de conhecer até poucas-vergonhas novas, para que nenhuma deixe de ser abominada por mim.
 
Foi o que fez Jair Bolsonaro. Com intenção pedagógica, mostrou a todo o mundo um vídeo em que um homem urina na cabeça de outro. Deus acima de tudo e xixi para cima de todos. É o prometido regresso a um passado de decoro, asseio e valores tradicionais, àqueles bons velhos tempos em que as comunicações do presidente incluíam imagens pornográficas. Que saudade.
Um dia depois de ter reunido o povo brasileiro em torno de um vídeo pornográfico, o presidente fez uma pergunta à nação: o que é “golden shower”?
Não ficou claro se Bolsonaro buscava esclarecimento pessoal ou se queria lançar o debate (aliás, urgente) sobre o tema à sociedade brasileira. Mas era óbvio que estávamos perante a entrada fulgurante da urina na discussão política.
Finalmente, um tema que eu domino. Há anos, li um estudo sobre as implicações filosóficas da urina —ou, mais exatamente, da vontade de urinar. Dois cientistas tinham descoberto que, quanto mais as pessoas têm vontade de urinar, menos acreditam no livre arbítrio.
A ideia de que somos livres e controlamos o nosso destino parece menos plausível quando estamos aflitos para ir ao banheiro. A crença na liberdade e o alívio da urina estão relacionados.
Talvez essa fosse a intenção de Bolsonaro: apelar à retenção da urina —e, assim, transmitir a ideia de que a nossa liberdade é limitada. Já tínhamos entendido. O vídeo era desnecessário.
*Publicado na Folha de S.Paulo

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