Folha de S.Paulo - Vinicius Torres Freire: Cara-de-pau americana - 24/10/2010: "VINICIUS TORRES FREIRE
Cara-de-pau americana
Depois da bebedeira do endividamento e da bolha, EUA propõem abstinência e sobriedade ao mundo
O GOVERNO dos EUA propôs a criação de metas para as contas externas das economias mais relevantes do mundo, as reunidas no G20. Isto é, os países acertariam limites para os deficit ou superavit na sua conta de transações de bens e serviços: para a diferença entre o que exportam e importam, grosso modo.
A proposta está longe de ser maluca. Pode até ajudar prevenir outra crise financeira e evitar que os presentes arreganhos econômicos entre países deficitários e superavitários se degradem em conflitos ainda piores. A graça é que os Estados Unidos proponham tal coisa. Dada a folha corrida dos americanos nos últimos 20 ou 40 anos, a sugestão é de uma cara-de-pau duríssima.
Nos últimos 20 anos, a economia dos EUA viveu de invenção de dinheiro, bolhas e superendividamento. A banca americana criou modos geniais de financiar uma sociedade, governo e setor privado, que vivia acima de seus meios, se endividando barbaramente. Por meio de instrumentos financeiros complexos, tanto inventava dinheiro como meios de subestimar o risco da alavancagem alucinada do crédito, para o que contou com a cumplicidade do establishment financeiro oficial dos EUA (Fed e supervisores).
Ao mesmo tempo, os EUA diziam ao resto do mundo que liberasse a circulação do capital e que não temesse a abertura comercial, pois a grande finança libertada alocaria o tutu da maneira mais eficiente possível. Quem fizesse a 'lição de casa' receberia investimentos; o livre fluxo de dinheiro ajeitaria as taxas de câmbio e as contas externas de acordo com 'os fundamentos econômicos'. Não haveria crises.
Bem, os EUA não fizeram a lição de casa. A finança livre cometeu a alocação de capital mais estúpida já vista na história, o que deu na crise de 2007-09. A variação das taxas de câmbio se tornou frenética. Há bolhas e colapsos financeiros em série. A conta do superendividamento privado e da loucura da banca ficou para o governo dos EUA, que gasta e imprime torrentes de dinheiro a fim de limpar a sujeira e atenuar a anorexia da economia real do país. Esses excessos criam desequilíbrios monetários no resto do mundo.
Agora, os EUA propõem 'coordenação internacional'. Políticas econômicas que limitem os superavit de China e Alemanha e os deficit dos EUA, por exemplo. Isso implica aumentar o consumo doméstico chinês ou alemão, e aumentar a poupança nos países deficitários (meio inviável, dada a estagnação econômica). Ou impedir que a China, além de poupar, intervenha no câmbio.
Enfim, os EUA propõem que cada grande economia do mundo adote uma espécie de 'dirigismo ortodoxo', além de uma instância de arbitragem de conflitos e correção de rumos, sem o que não haverá 'coordenação'. É óbvio, querem ajuda para sair do buraco em que se meteram.
Note-se, porém, que governos têm poder limitado sobre o tamanho de seus deficit ou superavit externos, pois não conseguem determinar a taxa de poupança e de produtividade de suas economias, para nem falar do câmbio, fatores que influenciam o destino das contas externas. Além do mais, alemães e chineses detestam a ideia; o Japão está no muro. Ainda assim, alguma coordenação seria, em tese, possível. Mas o fato é que os EUA 'beberam todas' e, na ressaca, pedem sobriedade e abstinência ao resto do mundo.
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