domingo, 25 de novembro de 2012

Quando a situação vira oposição e remodela os conceitos

Quando a situação vira oposição e remodela os conceitos

Folha de S.Paulo - Saúde + Ciência - Astroteologia: breve introdução - 25/11/2012

Folha de S.Paulo - Saúde + Ciência - Astroteologia: breve introdução - 25/11/2012
Marcelo Gleiser
Astroteologia: breve introdução
Vivemos numa época peculiar, na qual o que antes era província da religião faz parte da ciência
Nós, humanos, somos seres limitados. Criativos e inovadores, conseguimos ampliar em muito a nossa compreensão do mundo por meio da aplicação diligente da razão e, complementarmente, das artes.
Isso porque, se a ciência e as artes têm algo em comum, é justamente a tentativa de estender nossa visão de mundo, de ampliar as fronteiras do conhecimento, revelando aspectos inusitados do real. Um teorema e um poema são reflexões do possível, seja o concreto ou o onírico. A imaginação lança mão de todos os recursos à sua disposição para dar sentido à existência.
Talvez seja por isso que o teólogo americano Reinhold Niebuhr escreveu que "o homem é o seu maior problema". Nossas filosofias, ciências e religiões são tentativas de compreender a existência apesar de nossa miopia, isto é, de nossas limitações sobre o que vemos e entendemos.
Nessa busca, não é coincidência que a crença religiosa funcione como uma bússola para tantas pessoas. Como explicar a origem do Universo? Ou da vida? Ou por que temos uma mente capaz de refletir sobre essas questões complexas?
Tais questões são, hoje, parte da pesquisa científica de ponta. Vivemos numa época peculiar, em que o que antes era província exclusiva da religião faz parte do discurso rotineiro da ciência. Porém, por não termos ainda respostas, essas questões continuam nos assombrando.
Talvez um dos dilemas da humanidade seja a angústia de poder contemplar o divino sem sê-lo. Temos a capacidade de imaginar a perfeição, a ausência de dor, a imortalidade; mas, tirando a ficção e a fé, não temos como transcender nossa realidade carnal, os limites temporais e espaciais. Ou será que temos?
Considerando que a ciência moderna tem apenas quatro séculos (marcando seu início com Kepler e Galileu), e percebendo o quanto já fizemos em tão curto prazo, imagine o que nos espera em mil anos?
Ou 10 mil anos, se, claro, não nos destruirmos antes disso. A ciência nos permite já uma manipulação dos genes de criaturas, a ponto de podermos modificar o que comemos e mesmo alcançar curas diversas.
Extrapolando a expansão tecnológica para o futuro, alguns afirmam que, em algumas décadas, chegaremos a um ponto em que nossa hibridização com máquinas será tão profunda que não poderemos mais nos dissociar delas. Caso essas previsões se concretizem -e, a meu ver, já estão ocorrendo-, seremos, como escrevi aqui recentemente, uma nova espécie, além do humano.
Agora imagine que, tal como nós, outras criaturas inteligentes em algum canto da galáxia descobriram a ciência. Só que o fizeram, digamos, 1 milhão de anos antes de nós, o que em termos cósmicos não é nada.
Essas criaturas teriam se transformado completamente ao se hibridizar com máquinas. Seriam, talvez, apenas informação, existindo em campos energéticos no espaço.
Teriam o poder de criar vida, escolhendo suas propriedades. Poderiam, por exemplo, ter nos criado, ou a alguns de nossos antepassados, como parte de um experimento. Poderiam, por exemplo, estar nos observando, como nós observamos animais no zoológico ou no laboratório. Essas entidades imateriais, mas existentes, seriam nossos criadores. Seriam eles deuses, mesmo se não sobrenaturais?

Imaginei que essa insanidade da Black Friday nunca aportaria por aqui

Imaginei que essa insanidade da Black Friday nunca aportaria por aqui

Imaginei que essa insanidade da Black Friday nunca aportaria por aqui



Eu juro que achei que essa insanidade da Black Friday nunca aportaria em terras tupiniquins. Talvez pela impossibilidade da tradução direta do termo gerar algo que faça sentido por aqui. Ou pelo fato de que, ao contrário do que acontece no Grande Irmão do Norte, não comemoramos um Dia de Ação de Graças – feriado conectado com a sexta-feira de grandes descontos – e só mandamos perus para a guilhotina no Natal. No que pese eu preferir lombo e tender.
Informática, turismo, academias, seguros, ração para au-au, cosméticos, eletro-eletrônicos, com mais de 75% de desconto, reunindo cerca de 300 varejistas e suas lojas virtuais. Loucura, loucura, loucura. Desconto é bom e deveria ocorrer em boa parte do ano. Limar estoque? Melhor ainda.
Mas o fato é que tenho ouvido de pessoas queridas de que PRECISAM comprar algo nesta sexta.
- Mas você está precisando de algo?
- Não. Mas você viu os preços?!
É o capitalismo, estúpido! Não é demanda que gera oferta. Mas a publicidade ostensiva sobre a oferta que cria a demanda.
Comprar é importante, gira a economia, gera empregos, realiza desejos, supre necessidades, compensa frustrações. Não estou defendendo que vocês plantem capeba e pariparoba para fazer remédio, cultivem a própria juta para confeccionar a roupa e entoem mantras em torno da fogueira a fim de acordar o pequeno leprechau da floresta que reside dentro de cada um ao invés de atirar nos miolos de algum zumbi doido no seu PlayStation 3. Mas, antes de saírem à caça nesta sexta (alguns, aliás, protagonizando cenas como as que ocorrem nos Estados Unidos: de desespero, correndo atrás dos produtos, e de emoção, abraçando TVs), reflitam.
Se está com aquele vazio difícil de preencher ou ficando “transparente” para seus amigos e colegas, a solução é adquirir um produto e, através dele, o pacote simbólico de cura e inserção que traz consigo? Como já escrevi aqui antes, quem acha que a Coca-Cola, Apple ou Fiat vendem refrigerantes, tecnologia e carros, respectivamente, está enganado. Vendem estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Daí o problema. Porque essa construção não é nossa, mas – não raras vezes – vem de cima para baixo.
A busca pela felicidade passa cada vez mais pelo ato de comprar. E a satisfação está disponível nas lojas a uma passada de cartão de distância. Muitos de nós ficam tanto tempo trabalhando que tornam-se compradores compulsivos de símbolos daquilo que não conseguirão obter por vivência direta. Em promoções como esta, em que a porteira está aberta e o convite está feito, nem se fala. Através desses objetos, enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco. Porque, como os produtos que a representam, possui sua obsolescência programada para dar, daqui a pouco, mais dinheiro a alguém.
O que é de fato “necessário”? A definição disso pode ser bastante subjetiva, ainda mais que tornamos o excesso parte do dia a dia. É como não saber mais o que é real e o que é fantasia ou, pior, não ter ideia de como escolher entre o caminho irreal da felicidade e a via dura da abstinência.
“Wall.e” é uma animação produzida pela Disney e a Pixar que conta a história de um robozinho cuja missão é organizar o lixo em que se transformou o planeta devido ao consumismo desenfreado dos habitantes e à ganância de grandes corporações. No futuro, a Terra terá se transformado em um lixão impossível de sustentar vida e os seres humanos terão se mudado para uma nave espacial à espera de que os robôs limpassem as coisas.
Na cadeira do cinema (sim, fui ver na época na tela grande – hehehe), fiquei matutando que Wall.e seria um bom instrumento para discutir com os mais novos a diferença entre consumir para viver e viver para consumir. Mas, na saída, conversando com alguns amigos, veio uma preocupação: será que os produtores teriam a pachorra de vender quinquilharias sobre os personagens do filme? Da mesma forma que fazem em outros casos, indo na contramão da história contada na tela?
Vale ressaltar que os brinquedos inspirados em filmes têm vida curta – duram o suficiente até o próximo sucesso de bilheteria trazer novos bonecos. Ou seja, dentro de pouco tempo viram lixo de plástico e ferro.
Tempos depois, passando por uma loja, vi meu pesadelo tornar-se realidade quando me deparei com uma prateleira inteira de produtos do filme. A vendedora me mostrou um Wall.e que funciona à corda e canta e dança, um outro Wall.e para bebês (na verdade, para os pais dos bebês…) Explicou que a versão de controle remoto havia acabado, tamanha a procura. Afe.
Disso, abstraí que: a) Há pessoas que viram o filme e não entenderam a mensagem; b) Há pessoas que viram o filme e não se importaram com a mensagem; c) Sabendo, de antemão, que há milhões de pessoas nos grupos “a” e “b”, as empresas produtoras do filme se aproveitam e lucram em cima. Afinal de contas, campanhas contra o consumismo desenfreado e pela proteção ao meio ambiente podem ser, quando superficiais, bons pacotes fechados para o consumo imediato e o alívio rápido da consciência. Já que a contradição é inerente ao capitalismo e à sociedade de consumo, por que ter pudores ao explorar isso?
Dessa forma, o futuro desenhado pelo filme deixa de ser fantasia e vai se tornando uma perigosa profecia autocumprida. Sextas-feiras como esta só ajudam a catalisar o processo.
Diante disso, desejo a todos “boas compras”. E que nossos netos nos perdoem.

sábado, 24 de novembro de 2012

Diário do Centro do Mundo – Por que é certo indiciar Policarpo

Diário do Centro do Mundo – Por que é certo indiciar Policarpo
Paulo Nogueira 23 de novembro de 2012 34
Quando jornalistas viram amigos de suas fontes, o interesse público é sempre o maior perdedor

Antes de tudo: não acredito que o jornalista Policarpo Júnior tenha tido, em suas relações com Carlinhos Cachoeira, a intenção de obter nada além de furos.
Isto posto, do ponto de vista estritamente jornalístico, Policarpo foi longe demais em sua busca de notícias, como os fatos deixaram claro.
Policarpo infringiu uma lei capital do bom jornalismo, enunciada há mais de um século por um dos mais brilhantes jornalistas da história, Joseph Pulitzer: “Jornalista não tem amigo”.
Pulitzer sabia que a amizade acaba influenciando o discernimento do jornalista, e subtraindo dele a capacidade de enxergar objetivamente sua fonte. É um preço muito alto para o bom jornalismo.
Os telefonemas trocados entre Cachoeira e Policarpo não mostram cumplicidade, no sentido pejorativo de companheirismo em delinquências. Mas revelam uma intimidade inaceitável no bom jornalismo, uma camaradagem que vai além dos limites do que é razoável.
Tiremos o excesso das palavras que têm varrido as discussões políticas, jurídicas e ideológicas no Brasil. Somos, subitamente, a pátria dos “quadrilheiros”. Policarpo está longe de se enquadrar, tecnicamente, nesta categoria, e disso estou certo. Não vararia madrugada em redação se recebesse de Cachoeira mais que dossiês.
Mas, por ter se tornado tão próximo de Cachoeira, ele acabou se deixando usar por um grupo no qual o interesse público era provavelmente a última coisa que importava. Logo, havia um envenenamento, já na origem, nas informações que ele recebia e publicava. Que Policarpo não se tenha dado conta do pântano em que pescava denúncias não depõe a favor de sua capacidade de observar, mas miopia não é crime.
Minha convicção é que ele não terá dificuldades, perante a justiça tão louvada pela mídia por sua atuação no Mensalão, em provar que fez apenas jornalismo com Cachoeira – ainda que mau jornalismo.
Mas é necessário que Policarpo enfrente o mesmo percurso de outros envolvidos neste caso. Ele deve à sociedade, e ao jornalismo, explicações.
Teria sido infame não arrolá-lo. Isso teria reforçado a ideia de que jornalista é uma categoria à parte, acima do bem e do mal, acima da lei.
Não existe nenhuma ameaça à “imprensa livre”, “imprensa independente” ou “imprensa crítica” quando jornalistas são instados a se explicar à justiça. Esta é uma espécie de chantagem emocional e cínica que a grande mídia vem fazendo na defesa de sua própria impunidade e intocabilidade. Todos sabemos quantos horrores e desatinos  editoriais são cometidos sob o escudo oportuno da “imprensa crítica”. Nos países desenvolvidos, o quadro é outro.
Nesta mesma semana, a jornalista inglesa Rebekah Brooks, a até pouco atrás “Rainha dos Tabloides” e favorita de seu ex-patrão Rupert Murdoch, foi indiciada pela justiça britânica sob a acusação de ter pagado propinas para policiais em troca de furos para um dos jornais que dirigiu, o Sun.

Nem Murdoch, com sua quase comovente devoção por Rebekah, cuja cabeleira rubra enfeitiça muita gente, se atreveu a dizer que a “imprensa independente” estava sendo agredida. Todos os jornais noticiaram o caso serenamente, com o merecido destaque.
Empresas jornalísticas não são instituições filantrópicas. Vivem dos lucros, e nisso evidentemente não existe mal nenhum – desde que os limites legais e éticos sejam respeitados. Em todas as circunstâncias, mesmo nas mais simples. Esta semana, para ficar num pequeno grande caso, o comediante Paulo Gustavo afirmou no twitter que a Veja fez uma reportagem com ele na qual o fotografou com uma camiseta amarela em que estava estampado Che Guevara. Segundo ele,  Che foi retirado da foto.
Do ponto de vista de ética jornalística, isso é admissível? Ou é uma pequena trapaça que pode dar origem a grandes? Tudo isso exige debate.
O episódio Policarpo é uma excelente oportunidade para que o Brasil discuta com transparência, como está acontecendo na Inglaterra, quais são mesmo estes limites, para o bem da sociedade e do interesse público.

Crime continuado e “abracadraba jurídico”

Crime continuado e “abracadraba jurídico”

Crime continuado e “abracadraba jurídico”

Sob o título “Mensalão e Crime Continuado: A Hora e a Vez da Impunidade?”, o artigo a seguir é de autoria de André de Vasconcelos Dias, Procurador da República em Minas Gerais. (*)
No julgamento da Ação Penal nº 470, vulgarmente chamado de “julgamento do mensalão”, o Supremo Tribunal Federal, após brilhante atuação no juízo de reconhecimento de culpa ou inocência dos réus, em alvissareiro divisor de águas na história do Poder Judiciário brasileiro, vem lamentavelmente claudicando na fase da dosimetria das penas, eivada de tantos equívocos e involuções jurisprudenciais. O mais grave e perigoso retrocesso, no entanto, ainda está em fase de gestação, e diz respeito ao chamado crime continuado. É que, nas últimas sessões de julgamento, o Ministro Marco Aurélio Mello, sob os aplausos dos Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, passou a sustentar que os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira seriam todos da mesma espécie, e que entre uns e outros seria possível a extensão dos benefícios da ficção jurídica do crime continuado, que permite a aplicação da pena de somente um desses crimes, com o mero acréscimo que varia de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços). Como se esclarecerá na seqüência, tal proposta, a um tempo: (a) contraria a jurisprudência consolidada pelo STF há mais de 30 anos; (b) não encontra suficiente respaldo no texto da lei; (c) ainda que não seja (e não é) esta a intenção dos ilustres ministros, representará fator de impunidade dos crimes do colarinho branco.
Ao contrário do que fazem crer alguns jurisconsultos, a compreensão do problema não depende da iniciação do leitor na obscurantista seita jurídica, pois a questão é de meridiana clareza, basta que se saiba ler, ou pouco mais que isso. Acerca do instituto legal do crime continuado, diz o art. 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”. Desde 1980, a jurisprudência do STF firmou-se no sentido de que crimes da mesma espécie são aqueles previstos no mesmo tipo legal, isto é, mesmo crime (por exemplo, homicídio, seqüestro, roubo, estupro, etc). De alguns anos para cá, abalizadas vozes do STF, como a do Min. Gilmar Mendes e a do próprio Min. Marco Aurélio, têm sustentado, com boa dose de razão, que o instituto da continuidade delitiva possa ser aplicado, em tese, aos conjuntos de crimes que tenham o mesmo bem jurídico tutelado, isto é, o mesmo interesse protegido pela lei penal (p. ex., vida, honra, patrimônio, liberdade sexual, saúde pública, etc). Seja como for, os requisitos legais de semelhantes condições de tempo, lugar e modo de execução continuam a ser de observância obrigatória pelo órgão julgador. Assim, por exemplo, seria em tese possível conceber a continuidade delitiva quando, havendo identidade de contexto temporal e de local, o agente, pela mesma via escrita ou falada, praticasse os crimes de calúnia, injúria e difamação; ou consumasse de forma semelhante um homicídio e um infanticídio; ou ainda, pela mesma sistemática, perpetrasse distintos crimes de falsificação de documentos.
No entanto, parece claro que a solução preconizada pelo Min. Marco Aurélio no “julgamento do mensalão” esbarra na diversidade de bens jurídicos tutelados. É que, nos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato, a lei penal defende o interesse da Administração Pública. Já no crime de lavagem de dinheiro, tutelam-se uma multiplicidade de interesses que se reúnem em torno da preservação da Administração da Justiça. E os crimes de gestão fraudulenta de instituições financeiras e de evasão de divisas visam a salvaguardar o Sistema Financeiro Nacional. Não havendo, pois, entre uns e outros delitos, coincidência de bens jurídicos protegidos pela lei penal, não há como cogitar a aplicação do excepcional benefício legal do crime continuado.
Além disso, e acima de tudo, a solução ora criticada encontra óbice intransponível na absoluta diversidade de modo de execução de uns e outros delitos. Até hoje, a Suprema Corte vem (ou vinha) sendo bastante criteriosa na aferição do requisito legal do semelhante modo de execução do crime para efeito do benefício legal. Assim, por exemplo, recentemente, o STF negou reconhecimento de crime continuado ao autor de três crimes de furto, porque um deles fora cometido com rompimento de obstáculo para subtrair um arreio de montaria; no segundo, o agente aproveitou-se do descuido da vítima para subtrair-lhe um televisor; no terceiro, o agente valeu-se da calada da noite para surrupiar uma ovelha. E olha que, em todos esses casos, a ação típica criminosa é a mesma prevista no art. 155 do Código Penal, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Mas, e agora? Seria possível considerar como semelhante o modo de execução dos distintos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato? Ou ainda entre os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira e evasão de divisas? À toda evidência, a resposta é negativa.
É que, por exemplo, para meter a mão no dinheiro público, isto é, para praticar o delito de peculato, o agente público, sozinho ou em conjunto com agentes privados, deve realizar a conduta descrita no art. 312 do Código Penal, qual seja, “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. Por outro lado, ao oferecer ou pagar propina a um funcionário público, o agente pratica o crime de corrupção ativa, tipificado no art. 333 do Código Penal, que prevê conduta inteiramente diversa, qual seja, “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Já o funcionário público que pede ou recebe propina pratica o crime de corrupção passiva, que, nos termos do art. 317 do Código Penal, caracteriza-se pela ação de “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Como se pode ver, o modo de execução desses delitos é radicalmente distinto, o que, nos termos da lei, impede a aplicação do benefício legal do crime continuado. Vejam-se os exemplos concretos do “julgamento do mensalão”: a corrupção de alto funcionário do Banco do Brasil deu-se pela promessa, aceitação, pagamento e recebimento de propina no oculto e na surdina. Já o desvio de muitas dezenas de milhões de reais deu-se mediante o pagamento ostensivo de simulados serviços de publicidade e de explícita apropriação de recursos públicos do fundo visanet. São ações criminosas que se executaram de formas completamente díspares. Não há, portanto, “brechas da lei”.
A adoção dessa nova tese não se restringe, como poderia supor o incauto, ao “julgamento do mensalão”. Não, em absoluto. O buraco é mais embaixo, a questão é muito mais grave do que se poderia imaginar. Trata-se da abertura de precedente, a repercutir negativamente em milhares de processos, inclusive aqueles com condenação transitada em julgado, no juízo da execução penal. De Lalau a Cachoeira, praticamente todos os criminosos do colarinho branco, envolvidos nos terríveis escândalos de corrupção que diuturnamente assombram o Brasil, serão graciosamente premiados, como nunca antes na história desse país. Eis o efeito prático desse abracadabra jurídico: doravante, pelas dezenas de crimes distintos que cometessem (peculatos, corrupções ativas e passivas, lavagens de capitais, gestões fraudulentas de bancos, evasões de divisas, etc), os réus receberiam a pena por um único desses crimes, com o singelo acréscimo de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) – ou, na peculiar visão do Min. Lewandowski, aumento máximo de 1/3 (um terço). O resultado disso, embora certamente não querido pelos ministros, atende pelo nome de IMPUNIDADE. Imagino que, a esta altura, milhares de delinqüentes do poder político e econômico da terra brasilis já devem estar na expectativa de se esbaldarem em farta provisão de champagne e de estourarem um arsenal de fogos de artifício. O brinde da impunidade e o festival pirotécnico da explosão da delinqüência do poder só dependem do veredicto final do STF.
Ao cabo, exsurgem alguns questionamentos. Pode o STF, após mais de três décadas negando as pretensões dos miseráveis autores de furtos e roubos que batiam à sua porta, mudar sua jurisprudência justo agora que estão sob julgamento algumas das pessoas mais ricas e poderosas da República? Pode o STF dar saltos triplos carpados hermenêuticos, isto é, fazer mágica jurídica, para contornar a exigência legal de identidade de bens jurídicos protegidos e de similitude do modo de execução dos crimes para se que se possa conceder a benesse do crime continuado? Pode o STF desconsiderar os efeitos catastróficos dessa tese em matéria de prevenção e repressão da criminalidade dos poderosos, a predizer um sombrio quadro de impunidade geral? A resposta, para usar o jargão de Suas Excelências, é desenganadamente positiva: à falta de um órgão superior com poder de corrigir os erros do STF, ainda que os mais primários, seus ministros são factualmente onipotentes, eles podem, podem tudo. E o Sistema de Justiça Criminal Brasileiro também pode se tornar ainda mais elitista, chafurdando-se cada vez mais em seu universo de faz-de-conta da efetiva punição dos gravíssimos crimes praticados pelos donos do poder político e econômico, e, não por acaso, esse sistema é qualificado, ao criterioso olhar externo, como risível.
————————————————————————————–
(*)  André de Vasconcelos Dias é Procurador da República. Ex-Promotor de Justiça/MG (2003-2005). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Tudo ao contrário | Carta Capital

Tudo ao contrário | Carta Capital

Mino Carta

Editorial

23.11.2012 09:10

Tudo ao contrário


O diretor da sucursal de Veja em Brasília, Policarpo Jr., e o contraventor Carlinhos Cachoeira, que acaba de ser condenado por formação de quadrilha e tráfico de influência, mantiveram uma longa relação baseada na troca de favores. Verdade factual.

Há provas irrefutáveis de que Cachoeira executou grampos a pedido de Policarpo Jr. e organizou a operação para monitorar os movimentos de José Dirceu, cujos resultados geraram uma capa da semanal da Abril. Provado está também que o ex-senador Demóstenes Torres ganhou as célebres páginas amarelas de Veja, prontas a apresentá-lo como um varão de Plutarco, em atenção a uma solicitação de Cachoeira. Investigações da Polícia Federal revelaram que, durante a feliz parceria, o profissional e o contraventor mantiveram mais de 200 conversações pelo telefone.
Situações similares em outros países provocaram a expulsão de jornalistas não somente de suas redações, mas também, e sobretudo, das próprias entidades da categoria. Por ter formulado acusações falsas, um diretor de redação italiano pagou recentemente pela culpa do seu jornal e foi condenado a alguns anos de reclusão. No Reino Unido, Rupert Murdoch teve de sair do país por ter praticado façanhas muito parecidas com aquelas cometidas pela Veja de Policarpo Jr.
No Brasil, causa surpresa, se não espanto, o fato de que o deputado Odair Cunha, relator da CPI do Cachoeira, peça o indiciamento do diretor da sucursal abriliana entre o de outros cidadãos sob suspeita, encabeçados pelo governador Marconi Perillo. Solicita também investigação a respeito do procurador-geral da República Roberto Gurgel. Ao todo, 46 nomes, e muitos jornalistas, embora sem a ressonância de Policarpo Jr. Donde já me apresso a preparar meu coração e meus ouvidos para a tradicional ladainha, a denunciar o assalto à liberdade de imprensa. Como é do conhecimento até do mundo mineral esta, nas nossas latitudes, corresponde à liberdade dos barões midiáticos e dos seus sabujos de agirem como bem entendem. Manipulam, omitem, mentem.
Quando a verdade factual dos comportamentos de Policarpo Jr., e portanto da Veja e da Abril, veio à tona faz meses, até um Marinho se moveu do Rio no rumo de Brasília para um encontro com o vice-presidente da República, Michel Temer, a fim de alertá-lo sobre os riscos que a mídia da casa-grande sofreria caso o parceiro de Cachoeira fosse chamado a depor na CPI. Logo, uma figura graúda da Abril seguiu-lhe os passos para reproduzir o alerta. Se havia um plano de convocar Policarpo Jr., este abortou. Temer sabe mexer seus pauzinhos.
De todo modo, a mídia está de prontidão. Alinhados, como sempre do mesmo lado, os jornalões agora acusam o relator da CPI de ter cedido às pressões do seu partido, o PT, que dúvida! Ora, ora, acabamos de viver, nós, de uma forma ou de outra privilegiados, as consequências do processo do chamado “mensalão”. Vimos o Supremo Tribunal Federal, representante do terceiro poder da nossa democracia, perpetrar desatinos jurídicos sem conta, ao usar, inclusive, uma interpretação inaplicável nas circunstâncias. Tratou-se de um julgamento eminentemente político. Nele o STF curvou-se às pressões da mídia em vez de atentar para os sentimentos da maioria da população, desinteressada do êxito da demanda. Nesta edição leiam, a propósito, a instrutiva coluna de Marcos Coimbra.
Não pretendo afirmar, com isso, que o PT no poder não se portou como os demais partidos. Chegou ao cúmulo de imitar os tucanos dos tempos da Presidência de Fernando Henrique Cardoso. Sim, portou-se e imitou, mas a maioria dos brasileiros está mais atenta aos resultados dos governos Lula e Dilma. Para a mídia, entretanto, só pesam os interesses da casa-grande, e a determinação apoia-se com firmeza inaudita na desfaçatez e na prepotência, de sorte a me arriscar a um vaticínio: o pedido de indiciamento de Policarpo Jr., este no mínimo, vai naufragar no oblívio. Donde, as raposas podem sossegar.
Há coisas que não entendo. Consta que a história é escrita pelos vencedores, no entanto, na hora de vazar as informações básicas a respeito do seu relatório, o valente Odair Cunha, que, aliás, começou a fraquejar no dia seguinte à divulgação do relatório, entregou o ouro ao Jornal Nacional da Globo. O qual, está claro, nada falou a respeito de Policarpo Jr. No fundo, até os senhores do poder petista, salvo exceções, gostam de aparecer no vídeo global ou nas páginas amarelas de Veja.
Observem: houvesse eleições presidenciais hoje, Dilma Rousseff esmagaria qualquer competidor da oposição. E Lula ganhou anteontem a parada paulistana ao levar Haddad à prefeitura contra o cada vez mais preparado José Serra. Não consigo escapar ao costumeiro diálogo com os meus botões. Será que, neste singular, insólito, quem sabe único país chamado Brasil, os vencedores atuam como perdedores e vice-versa?

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A CPMI de Cachoeira e o papel da mídia

A CPMI de Cachoeira e o papel da mídia

A CPMI de Cachoeira e o papel da mídia

Autor: 
Coluna Econômica
O papel moderno da imprensa, no mundo, tem dois divisores de água.
O primeiro, legítimo, o episódio Watergate, no qual um jornal (The Washington Post), com um jornalismo rigoroso e corajoso, logrou derrubar o presidente da República da
maior Nação democrática do planeta.
O segundo, tenebroso, o processo ao qual foi submetido o magnata da mídia, Rupert Murdoch, depois de revelados os métodos criminosos do seu tabloide, "The Sun", para obter reportagens sensacionalistas.
O crime do The Sun foi ter se envolvido com baixos e médios escalões da polícia para atentar contra o direito à privacidade de cidadãos ingleses.
***
O relatório da CPMI de Cachoeira, traz dados muito mais graves do que os crimes do "The Sun". Mostra ligações diretas entre jornalistas e o crime organizado.
A acusação maior é contra a revista Veja e seu diretor em Brasília, Policarpo Jr. O relatório mostra, com abundância de detalhes, como Policarpo era acionado para derrubar autoridades e servidores públicos que incomodassem Carlinhos Cachoeira, atacar concorrentes do marginal e como encomendava dossiês a ele, muitos obtidos por métodos criminosos.
***
Já em 2008, a série "O caso de Veja" - que publiquei na Internet - mostrava os resultados dessa parceria.
Um esquema aliado de Cachoeira havia sido afastado dos Correios pelo esquema Roberto Jefferson. Jairo (o araponga de Cachoeira) armou um grampo em cima de um diretor, Maurício Marinho, recebendo propina de R$ 3 mil. A gravação foi entregue a Policarpo, que a considerou insuficiente. Providenciou-se outra gravação, aprovada por Policarpo.
Divulgado o grampo, caiu toda a estrutura montada por Jefferson e entrou a de Cachoeira. Veja compactuou com o novo grupo, mesmo sendo Policarpo conhecedor íntimo do esquema criminoso por trás dele.
Dois anos depois, a Polícia Federal implodiu o novo esquema. E a revista manteve-se em silêncio, preservando Cachoeira.
***
Nos estudos sobre as chamadas OrgCrim (organizações criminosas), em nível global, identificam-se braços nos três poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - e também na mídia. O relatório descreve bem as funções da organização de Cachoeira no país.
Cachoeira ajudou a eleger o ex-senador Demóstenes Torres. Veja transformou-o em uma figura política poderosa, com sucessivas matérias apontando-o como o paladino da luta contra a corrupção. Com o poder que se viu revestido por Veja, Demóstenes transitava em repartições, junto a Ministros do Supremo, aumentando o poder de lobby da quadrilha de Cachoeira.
***
Veja é um ponto fora da curva no jornalismo brasileiro. Mas não ficou sozinha nessa parceria com o crime.
Um levantamento sobre as premiações do jornalismo investigativo nas últimas décadas vai revelar como fontes, em muitos casos, lobistas e criminosos da pior espécie.
Não apenas isso. Poderiam ser utilizados como fonte e suas informações servirem de ponto de partida para investigações mais aprofundadas. Mas eram utilizadas a seco, sem passar sequer pelo teste da verossimilhança, sem nenhum filtro, fuzilando reputações e, principalmente, atentando contra o próprio exercício do jornalismo.

O Domínio de Fato aplicado ao Caso Cachoeira


O Domínio de Fato aplicado ao Caso Cachoeira

A jurisprudência do "Domínio de Fato" aplicada pelo STF no "Caso do Mensalão", serviu de base para que o relator Odair Cunha pudesse inserir o jornalista Policarpo Júnior da Revista Veja no seu relatório final. É o que se denota deste trecho extraído abaixo.
Pode-se falar o que quiser mais é o que foi dito aqui no blog, quando se abre uma jurisprudência ela serve tanto a gregos como a troianos. Segue o trecho em voga.
(...) Policarpo Júnior é Diretor da Sucursal Brasília e Redator-Chefe da Revista Veja. Com efeito, conforme estamos a demonstrar nesse capítulo e no presente relatório, a complexa Organização Criminosa chefiada por Carlos Cachoeira estava em sereno e profícuo processo de expansão e, para assegurar a perenidade de sua atuação e a impunidade de suas ações, já havia cooptado diversos agentes públicos e políticos, cuja função seria a de garantir a sustentabilidade política e administrativa da quadrilha na estrutura do Estado Brasileiro e, ao mesmo tempo, permitir o financiamento das atividades criminosas através da apropriação dos recursos dos Erários Federal, Estadual e Municipal.O pleno êxito das atividades criminosas, contudo, dependia de outros fatores, que o grupo buscou rapidamente superar, quais sejam: promoção e divulgação nos meios de comunicação das atividades ilícitas da quadrilha (jogos eletrônicos na Internet); eliminação ou inviabilização da concorrência (empresas adversárias); e, desconstrução de imagens e biografias (de adversários políticos). Como decorrência desse modus operandi houve a necessidade tanto do controle de órgãos de comunicação (Cachoeira é dono/sócio em jornais e rádios em Goiânia, Anápolis e outros locais), como da aproximação e cooptação de profissionais dos meios de comunicação locais e nacionais. Nessa urdida engenharia criminosa que tinha como apoio um braço midiático, Policarpo Júnior foi um dos profissionais da imprensa mais requisitados pelo líder da quadrilha.Fazemos uma ressalva importante. Carlos Cachoeira não era um informante privilegiado. Não abastecia jornalistas e profissionais da imprensa porque estava enlevado de um espírito cidadão. Não pensava no bem do povo, da sociedade e do Estado. Não era amigo de jornalista ou de qualquer outro profissional da imprensa. Ele simplesmente os usava para atingir ou assegurar o êxito de seus objetivos criminosos. E todos que a esse desiderato se prestavam sabiam que eram instrumentos a serviço de alguma vilania, de algum sortilégio, que ao fim e ao cabo objetivava lesar pessoas, empresas e instituições.Na quadra da realidade que se afirma, exsurge como aviltante da inteligência e da própria dignidade das cidadãs e cidadãos deste País justificar os cerca de oito anos que sustentam a relação Cachoeira x Policarpo apenas como uma singela relação entre fonte e jornalista. E não está em jogo aqui, tampouco será objeto de consideração, as questões axiológicas e as visões de mundo que orientam as linhas editoriais de uma das maiores revistas de circulação no País. Não nos cabe discutir visões ideológicas ou buscar justificativas para tentar compreender os caminhos que vem trilhando uma parte considerável dos meios de comunicação que têm adotado pautas politicamente dirigidas, em bases opinativas, sem o devido contraditório a respeito de outras visões dos assuntos tratados, característico e inerente ao fazer jornalístico.O que se busca assentar neste Relatório são os prejuízos e os males que uma deturpada compreensão da liberdade de imprensa pode trazer para as pessoas e para o País.”

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A judicialização da política | Carta Capital

A judicialização da política | Carta Capital

A judicialização da política

Por Luiz Moreira*
Foto: José Cruz/Agência Brasil
A Constituição do País decorre do Parlamento brasileiro, especificamente de uma assembléia constituinte que, convocada pela soberania popular, obteve mandato para substituir o regime autoritário por um coerente com as exigências de redemocratização. Promulgada a Constituição, entre as idas e vindas típicas da democracia, houve sua apropriação pelos juristas, resultando em transformação de tal documento de caráter político em estritamente jurídico.
O processo é por todos conhecido: a democracia, a política e o parlamento foram progressivamente mitigados e, em seu lugar, houve a construção de uma teoria que, a pretexto de tutelar os direitos fundamentais, os substituiu pela supremacia judicial, operada pela complementaridade entre controle de constitucionalidade e mutação constitucional.
Esse processo passa basicamente por três momentos.
Primeiro, pela transformação do processo constituinte em um apartado da política, de modo a se produzir um fetiche do poder constituinte segundo o qual a assembléia exerceria poder absoluto e não poder representativo.
Segundo,construída a imunização do poder constituinte em relação à política, as intervenções políticas na ordem constitucional foram tidas como maculadoras de sua pureza, de modo a se construir uma dicotomia entre democracia e constituição.
Terceiro, com o propósito de conservar a pureza e a magia da ordem constitucional, purificando-a da política, justifica-se o caminho que possibilita a interdição da política pelos tribunais e pelo ministério público, com o respectivo impedimento do processo político, com a transformação das eleições em ato jurídico, com a criminalização da política e sua judicialização e, por fim, com a substituição do parlamento como foro legitimado para produzir as normas jurídicas.
Claro está que esse processo de interdição da política precisa ser substituído por um projeto que revigore e restitua à democracia a tarefa de estabelecimento do futuro.
I – O Poder da Assembléia Constituinte e o Poder do Parlamento
O poder que torna possível a Constituição torna possível também os Códigos e as Leis. Assim, o que distingue o poder constituinte do processo legislativo é a autorização expressa (o voto) dos cidadãos, dotando a assembléia constituinte do poder necessário para constituir todas as relações. Sua autoridade criativa repousa antes na faculdade que detêm os sujeitos de direito para criarem uma nova realidade jurídica do que em um ato fundante. Assim, os cidadão são livres e plenos de poderes para fazerem tantos atos fundadores, constituintes, quanto acharem conveniente, isto porque o ato fundador congênere do poder constituinte é tão-somente uma convenção.
Por conseguinte, são os sujeitos de direito, em ato soberano, que conferem existência e autorizam o exercício do poder constituinte. Desse modo, o poder constituinte não é sede de poder algum, detém apenas o exercício de uma faculdade que emana diretamente dos cidadãos. Não há de se falar tampouco em poder originário, porque o poder não se origina no ato fundante, nem na assembléia convocada para constituir o sistema jurídico. Origina-se dos cidadãos, por intermédio de projeto orquestrado pelos sujeitos de direito de constituir um sentido às normas e estruturá-las conforme o sentido atribuído.
A distinção entre poder constituinte e processo legislativo não remonta à origem, mas ao modo de seu exercício. Isto é, não há distinção categorial que oponha um ao outro, mas os dois processos comungam da mesma gênese. Fundando-se no poder dos cidadãos, tanto o processo constituinte quanto o processo legislativo permitem a atualização de um poder que estrutura a liberdade e a perpetua por meio de um ordenamento conceitualmente concatenado. Interpor-se, obstruindo a passagem da estrutura da liberdade (a Constituição), à sua ordenação concatenada (o Código), seria uma das grandes armadilhas da modernidade, ao tornar indisponível à soberania popular exprimir-se por meio de um processo que se atualiza mediante um trâmite diversificado.
Leia também:
Pedro Serrano: Juízo de exceção na democracia
Para justificar ‘milícias’, Russomanno decreto extinto da ditadura
Assim sendo, o processo constituinte e o processo legislativo decorrem ambos da soberania popular e, como formas de exercício da representação do poder político, circunscrito apenas aos cidadãos, não se distinguem entre si, tendo por isso mesmo apenas uma diferença quantitativa, mas de modo algum uma diferença qualitativa, pois o mandato de ambos é obtido da mesma fonte, ou seja, dos cidadãos.
A transformação da assembléia constituinte em instância apartada da política resultou em uma engenharia constitucional segundo a qual a representação do poder é deslocada das instâncias que decorrem do voto para as instâncias judiciárias, pois caberia às cúpulas dos tribunais e ao ministério público garantir a efetividade da Constituição, por um lado, e por outro, em substituição à política, atribuir sentido às normas, pois mediante a interpretação constitucional fecha-se o círculo de judicizialização da vida. Este círculo submete a democracia deliberativa ao processo judicial por meio de uma complementaridade entre o controle de constitucionalidade e a mutação constitucional.
Acossado por um sistema jurídico que entende o Parlamento como maculador da pureza herdada da assembléia constituinte, a sociedade vê-se alijada de formas de expressão de vontade e de representação, operada por um ativismo, do judiciário e do ministério público, que passa a ser o titular da formulação, da interpretação e da efetividade das normas, reunindo, sob seu arbítrio, as prerrogativas legislativas, judicativas e executivas.
Este Estado de exceção ganha efetividade através de três passos.
Primeiro, com a judicialização da política, operada pela submissão dos poderes políticos aos tribunais e ao ministério público.
Segundo, com o protagonismo da justiça eleitoral, que transforma as eleições de ato político em jurídico, nas quais os candidatos são substituídos pelos juízes e promotores eleitorais.
Terceiro, com a submissão da Política à técnica, mediante a dicotomia entre Estado e Governo, formulada pela blindagem das carreiras de Estado ante o resultado das urnas.
É preciso dotar o Brasil de uma nova separação dos poderes. Por isso, é oportuno discutir entre nós o modelo constitucional britânico, próprio às democracias, e adotar a Revisão Parlamentar do Controle de Constitucionalidade.
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*Luiz Moreira é Doutor em Direito pela UFMG, autor do livro “A Constituição como simulacro” e Diretor Acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem.

Os jornais e 64 segundo a Revista de História | Brasilianas.Org

Os jornais e 64 segundo a Revista de História | Brasilianas.Org

Luiz Antonio Dias, Revista de História da Biblioteca Nacional

“Os comunistas invadiram o Brasil”. Era esta a impressão de qualquer leitor de jornais no início dos anos 1960. Desde a posse de João Goulart na Presidência, em 1961, setores militares já planejavam sua queda. Matérias, manchetes e editoriais veiculados pela imprensa nesse período dão ideia do clima tenso, e é importante entender que essas informações divulgadas pelos jornais paulistanos Folha de S. Paulo eO Estado de S. Paulo não eram neutras ou meramente “informativas”.

Defendendo a “ordem”, a Folha teceu fortes críticas ao comício pelas Reformas de Base, ocorrido no dia 13 de março de 1964 na Guanabara, afirmando que foi organizado por extremistas que tentavam subverter a ordem. No dia seguinte ao comício, publicou um editorial sobre o assunto: “preferiu o Sr. João Goulart prestigiar uma iniciativa vista com justificada apreensão por toda a opinião pública (...). Resta saber se as Forças Armadas (...) preferirão ficar com o Sr. João Goulart, traindo a Constituição, a pátria e as instituições”. O Estadão também exigiu um posicionamento das Forças Armadas no episódio. O editorial “O presidente fora da lei”, do mesmo dia, acusa João Goulart e alega que isso é apenas uma parte: “É, evidentemente, a última etapa do movimento subversivo que (...) é chefiado sem disfarces pelo homem de São Borja. E é também o momento de as Forças Armadas definirem, finalmente, a sua atitude ambígua ante a sistemática destruição do regime pelo Sr. João Goulart, apoiado nos comunistas”.
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorrida em São Paulo em 19 de março, foi uma resposta ao comício da Guanabara, e sobre essa manifestação a Folha apresentou a seguinte manchete: “São Paulo parou ontem para defender o regime”. Já O Estado de S. Paulo dizia em 20 de março: “Meio milhão de paulistanos e paulistas manifestaram ontem em São Paulo, no nome de Deus e em prol da liberdade, seu repúdio ao comunismo e à ditadura e seu apego à lei e à democracia”. Nesse editorial, o jornal buscou resgatar a memória de 1930 e 1932 [Ver RHBN nº 82], “da luta contra os caudilhos e a ditadura”, mostrando que o povo de São Paulo saberia lutar bravamente para garantir a Constituição de 1946.
A Revolta dos Marinheiros, em 26 de março, nada mais foi do que a gota d’água de um movimento golpista que já vinha caminhando a passos largos. Nesse episódio, mais uma vez, a Folha se colocou ao lado da “ordem”, criticando o movimento e lançando ataques à ação do presidente no incidente. “A solução dada pelo presidente (...) tem todas as características de uma capitulação.”
Na noite de 30 de março, o presidente compareceu ao Automóvel Clube, na Guanabara, para a comemoração do 40° aniversário da fundação da Associação dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar. Nesta solenidade, Goulart proferiu o seu discurso mais radical. No dia seguinte, a repercussão na imprensa foi negativa: os jornais se levantaram novamente contra o presidente. O discurso de João Goulart acabou sendo a senha para o início do golpe militar, que seria deflagrado na madrugada seguinte. A Folha também circulou nesse dia com um suplemento especial intitulado “64 – O Brasil continua”, repleto de anúncios de grandes empresas, mostrando que o Brasil cresceria em 1964, que esse seria um novo tempo. Cadernos como este – lançando previsões – normalmente circulam no início do ano. A data de publicação comprova que a sua elaboração ocorreu antes do início do golpe militar.
No dia seguinte ao golpe, o jornal afirmou que Goulart governou com os comunistas, tentou eliminar o Congresso atacando a Constituição, e, desta forma, a intervenção militar teria sido justa. Para a Folha, “não houve rebelião contra a lei. Na verdade, as Forças Armadas destinam-se a proteger a pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.
Com a subida de Castello Branco ao poder, a Folha do dia 16 de abril não poupou elogios ao novo presidente em seu editorial. “É com satisfação que registramos ter seu discurso de posse reafirmado todas as nossas expectativas e revigorado a nossa esperança de que uma nova fase realmente se descerrou para o Brasil”.
Durante o governo Goulart, o jornal atacava o presidente e seu governo como uma ameaça aos direitos legais. Mas o editorial do dia seguinte ao golpe, “O sacrifício necessário”, defendia a necessidade de suprimir direitos constitucionais: “Nossas palavras dirigem-se hoje (...) aos que se acham dispostos ao sacrifício de interesses, de bens, de direitos, para que a nação ressurja, quanto antes, plenamente democratizada.”
No dia 3 de abril, o Estadão, estampou a seguinte manchete: “Democratas dominam toda a Nação”. É inegável que houve um árduo trabalho por parte dos jornais para desestabilizar o governo Goulart.
Tanto o Estadão quanto a Folha defenderam a deposição de um presidente eleito pelo povo e derrubado pelas Forças Armadas como “defesa da lei e do regime”. A imprensa paulistana, apresentando-se como porta-voz da opinião pública, saudou a instalação de um governo autoritário e ilegítimo como se fosse democrático e legal. Os aspectos éticos dessa “ação jornalística” e a falta de críticas – ou autocrítica – aos jornais e jornalistas é tema que merece reflexão.
Luiz Antonio Diasé professor da PUC-SP e autor de “Informação e Formação: apontamentos sobre a atuação da grande imprensa paulistana no golpe de 1964. O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo”. In:ODÁLIA, Nilo e CALDEIRA, João Ricardo de Castro (orgs.).  História do Estado de São Paulo: a formação da unidade paulista. São Paulo: Imprensa Oficial/Editora Unesp/Arquivo do Estado, 2010.

domingo, 18 de novembro de 2012

O que diria Raimundo Faoro ao PT

O que diria Raimundo Faoro ao PT

O que diria Raimundo Faoro ao PT

Lula e o ‘efeito borboleta’: O que diria Raymundo Faoro ao PT?


Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não científico”, “atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma”.
O olhar, ver e reparar no espelho da memória (des)oprimida, a vida teatral de cada ser vivente nas palavras, nos sons e nas imagens do pensamento sensível e simbólico de Augusto Boal.
O tema de traçar cenários é propício para trazer a reflexão de dois grandes Intérpretes do Brasil, Boal e Faoro, pois trata-se de um questão muito além do quantitativo científico, trata-se de possibilidades, do sistema complexo, do qualitativo e da especulação humano desde milênios, ou pré-humana na caverna rupestre.
Os primeiros povos que se tem informação de tentar se antecipar as possibilidades de cenários futuros, foram os Egípcios a cinco mil anos, ao monitor os três afluentes do rio Nilo, se a água estava limpa, meio turva ou muito turva, para traçar quais eram as possibilidades de enchentes das margens do rio Nilo e da área para o plantio do trigo.
Raymundo Faoro e a visão da complexidade no momento histórico, no momento em que a história está acontecendo. História é tempo passado e também tempo presente.
Raymundo Faoro era cauteloso e cético, com sorriso maroto-machadiano: “A única profecia válida é a retrospectiva”, mas suas prospectivas e análises de cenários eram brilhantes, como se pode checar em seus escritos. Isso “é do conhecimento até do mundo mineral”, há até quem o chamava de profeta, são exemplo memoráveis, como a brilhante análise nos dias seguintes a queda do muro de Berlim (1989), ele identificou no ato da dialética, que o fato era o ostracismo da América Latina e da ascensão e renascimento da Europa e Ásia, e consequentemente, queda do império americano, “se um cai o outro não permanece” (A Democracia Traída, 2008). Para termos algumas referências sobre as análises densas e profícuas de Faoro com outros pensadores, algumas comparações: Giovanni Arrighi, em Adam Smith in Beijing (2007), relata que o primeiro economista americano a perceber a importância da China foi Joseph Stiglitz em 2002. Joseph Stiglitz ocupa o topo do ranking entre os economistas, de acordo com a comunidade dos economistas. Peter Schwartz, o engenheiro e futurologista, entre os principais especialista americano em cenários, que trabalhou na Shell com o francês, Pierre Wack, no livro China´s Futures (2000), também deixou de captar as principais mudanças ocorrida na China nas décadas de 80 e 90 para sua análise de cenários.
Minha percepção e experiência intuem que hoje temos geração de professores que fazem a crítica ao Intérprete do Brasil, intelectual orgânico e outsider da academia, Raymundo Faoro, que aparenta ser uma mera reprodução, de quem ouviu a critica de seus professores quando era estudante. Se o atual professor leu ou não Raymundo Faoro, é apenas mais um detalhe, de uma leitura enviesada: “Alunos forever” (artigo de Paulo Nogueira Batista Jr., FSP, Caderno B p:2, 04-09-2003). Somos uma sociedade em que a mediocridade é institucionalizada, se não em tudo, em quase tudo. Será que, ao sul do equador, a nobreza realmente vem do povo?
Lula e o ‘efeito borboleta’:
Para trazer o assunto aos nossos dias, o companheiro Lula e a matemática do caos, ‘o efeito borboleta’ nas eleições de São Paulo em 2012, ou no Brasil em 2010 com Dilma (ex PDT). Diante de um cenário que não está escrito em lugar algum, só na cabeça do “sapo barbudo”, ele mexe, estrategicamente uma peça no tabuleiro do xadrez, na qual os adversários, e até mesmo correligionários, só irão entender dez ou mais jogadas à frente, já no desenrolar do jogo, em seu segundo tempo, aí meus caros, “Inês é morta”.
Como mencionou em artigo recente o Nassif, O xadrez de Lula(28-10-12), ou como diz Fornazieri, “mito determinante das eleições,.., o ponto determinante é a conjuntura. Há conjuntura de continuidade e conjuntura de mudança.”
A nossa intelectualidade cartesiana e medíocre de plantão na mídia e o ‘academissismo’ da ciência da certeza, simplesmente odeia essa esperteza inerente a evolução de todo ser humano, parafraseando Popper, da ameba a Lula.
Assim como considero assertiva a colocação do Nassif (já manifestado em posts anteriores), sobre o animal político Lula: “No caso do PT, houve a renovação – com Dilma e, agora, com Haddad – exclusivamente devido ao enorme poder que Lula desenvolveu internamente no partido, especialmente após o esvaziamento da liderança de José Dirceu, após o episódio do ‘mensalão’.”
Assim como considero também importantíssimo a colocação de André Singer sobre o lado neoliberal do governo Lula (bem mais interessante do que o refrão uníssono da companheirada: “temos um projeto de país”): “O primeiro mandato misturou políticas díspares. De um lado deu continuidade ao tripé neoliberal (metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário). Teve efeitos nefastos, na quebradeira da cadeia produtiva de diversos setores industriais. Em certa medida ainda está presente na política atual, diz Singer.... Na outra ponta, Lula ganhou espaço político para políticas sociais exatamente opostas ao ideário neoliberal, que consistiram em distribuir renda para setores mais necessitados. Mas considera que o modelo lulista esgotará nos grandes centros urbanos, que exigirão muito mais recursos do que as quireras distribuídas pelo Bolsa Família.Sistema de saúde que dê conta de uma população como SP, exige muito dinheiro.”
Raymundo Faoro disse, após as eleições da Erundina em São Paulo, e também após o segundo turno em 1989 com Collor e Lula, “todo o jogo político de agora em diante vai girar em volta do PT, e a reação ao petismo virá, o estamento ainda não está preparado, mas virá e ela será difícil, violento”,..., o PSDB, “eles se definem como um partido de centro-esquerda, mas na verdade é um partido de centro”. Continuando, Raymundo Faoro lembra a nossa história política partidária, do pós-guerra, “Faoro achava fundamental o PT manter a lealdade ao projeto que o fez nascer e não crescer a qualquer custo. Isso seria uma barreira à fluidez que tomou conta do PTB de Vargas e do PMDB de Ulysses. O entrevistado liga o alerta: Se o PT conseguir esta lealdade, terá condições de superar todas as armadilhas que vêm por aí” (1989. A Democracia Traída, 2008, p: 125). Vale dizer, nos anos 90, ocorreu o mesmo com o suposto partido que se definia e era definido pelo Estamento, como de centro esquerda e de quadros, os tucanos do PSDB.
Nas eleições de 2006 e após, nos debates e trocas de email com os amigos engenheiros (que adoram uma planilha, como eu), evoluindo da analise de Rubem Alves que escreveu artigo em 2002, comparando Lula com Abraham Lincoln, comparei Lula a Thomas Jefferson, pois o “Time” de Thomas Jefferson governou os EUA de 1801 a 1828 (Jefferson morreu em 1926).
Mas lembrando Faoro, tenho que “ligar o alerta”, o cenário já é outro, e o momento político aparenta estar entrando numa nova fase, com o PT mostrando-se como é, quando se olha além da cortina de fumaça e da névoa, quando se olha não nas espumas na superfície do rio , mas quando se mergulha no fundo, vê-se, menos o PT ‘Capitalismo de Estado’ e mais mercadista como cita André Singer. Se o Lula, como disse Vladimir Safatle, “... percebeu que era possível desconcentrar renda e criar um processo de ascensão social sem acirrar de maneira radical conflitos de classe. O tempo mostrou que ele não estava errado”, (Revista CartaCapital, edição N:706, 18-07-12, pág. 52-53), o tempo mostra hoje que a ascensão social é uma mera migalhas de pão, e o subproletário sabe que não é classe média, mas deseja, quer e vai cobrar a promessa.
Para essa nova fase de enfrentamento, “mudança de classe”, uma tese de Raymundo Faoro de nossos dias: “A Questão Nacional e a Modernização” (de 31 de março de 1992).
O animal político Lula vai ter que se reinventar, terá Lula e o PT condições de se manter no poder e na centro esquerda, ou veremos a "A terceira alma do PT: o caminho para a centro-direita?”, ou como disse Faoro à Mino Carta, sobre o Governo Lula em abril de 2003: “não espere nada desse Governo, não vai dar em nada.”?

Um país singular | Carta Capital

Um país singular | Carta Capital

Um país singular

Mino Carta
A mídia nativa celebra com euforia futebolística a condenação de José Dirceu e companhia. Não cabe surpresa, tampouco discutir a importância do evento e a dimensão das penas. Limito-me a perguntar aos meus caridosos botões como conseguirá José Genoino pagar a multa de 468 mil reais. Muito dinheiro para um remediado à beira da pobreza, e esta é verdade factual. Quem sabe o Supremo pudesse ter poupado da multa o ex-presidente do PT para cobrar em dobro Dirceu, e até mais: o ex-chefe da Casa Civil sabe como e onde arrumar recursos.
Genoino. Antes vítima, até dos companheiros, do que réu. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Não custa lembrar que, conforme a afirmação de CartaCapital formulada desde o começo do enredo precipitado pela denúncia de Roberto Jefferson, o “mensalão” não foi provado. Neste espaço, mais uma vez, ponderei que outros crimes poderiam vir à tona, tão graves quanto. Nem por isso, aderimos às celebrações encenadas pelos jornalões como se a condenação de Dirceu e companhia representasse a vitória da mídia.
Entre as retumbantes primeiras páginas da terça 13, chama a atenção a da Folha de S.Paulo, com seu editorial desfraldado como uma bandeira. Aí se lê que o desfecho do escândalo resulta “das revelações da imprensa crítica”. Pois é, crítica. Quando convém. Somente agora a Folha se abala a recomendar que outros casos “sem demora” acabem em juízo, “a começar pelo das relações de Marcos Valério com o PSDB de Minas Gerais”. Santas palavras. Mas, por que não foram pronunciadas no momento certo, ou seja, quando os tucanos reinavam?
Não há mazela dos tempos do governo FHC que não tenha sido noticiada por CartaCapital. E o tucano amiúde arrastou suas asas na lama. Compra de votos a bem da reeleição de FHC, caso Banestado, o assalto da privataria. Sem contar o escabroso entrecho que se desenrolou em torno da desvalorização do real logo após a posse do príncipe dos sociólogos, enfim reeleito à sombra da bandeira da estabilidade. E o Brasil quebrou. Em que deram as “revelações” de CartaCapital? Em nada, absolutamente nada, recebidas pelo silêncio uivante da mídia nativa.
É uma longa tradição dos comunicadores da casa-grande, onde, de fato, moram, alguns no andar nobre, outros na mansarda. Omito referir-me aos anspeçadas, aos auxiliares, ao reportariado miúdo, estes pernoitam na calçada, na esperança, talvez, de entrar pela porta dos fundos. A tradição atravessou os lustros e resiste impávida, alicerçada na convicção de que acontecimentos não há se a mídia os ignora.
Difícil, se não impossível, achar mundo afora figurinos parecidos com o ­verde-amarelo. Onde encontrar uma imprensa do pensamento único, alinhada ao mesmo lado sempre que entende o privilégio ameaçado? País singular, o Brasil, submetido aos talantes e aos caprichos de uma sociedade feroz e covarde, sorrateira e jactanciosa. A ditadura que padecemos 21 anos a fio instalou-se com incrível nome de revolução e pretendeu realizar um feito inédito desde a Pedra de Roseta ao perpretar um simulacro de democracia. Ditadura é ditadura, é ditadura e ditadura, diria Gertrudes Stein. No Brasil não.
É do conhecimento até do mundo mineral que a ditadura brasileira mataria mais resistentes do que a argentina, a chilena e a uruguaia, se entendesse ser preciso. Mestra em tortura foi, a ponto de ministrar lições de sevícia Cone Sul adentro. Seus crimes contra a humanidade permanecem, porém, impunes, enquanto uma pretensa Comissão da Verdade ainda não disse a que veio e o mundo civilizado protesta em vão. Sempre me surpreendo quando hoje em dia ouço e leio que nossa ditadura foi militar. É um progresso em relação ao tempo em que era chamada de revolução, mas também neste caso tibieza ou parvoíce dão o ar da sua desgraça.
Quem quis a ditadura foram os vetustos donos do poder. A mídia, a mesma hoje em festa, lhes deu voz e os gendarmes, exército de ocupação, executaram a tarefa. Sem maior esforço, diga-se, pois a subversão em marcha denunciada pelos jornalões nunca foi além da retórica de meia dúzia. Tivemos, isto sim, as marchas das famílias dos privilegiados e dos aspirantes ao privilégio, prontos a endossar o golpe. Quem fala em ditadura militar continua a escamotear a verdade factual. Basta dizer ditadura, e ponto. Mesmo honrados cidadãos caem no lugar-comum sem perceber a sua própria tipicidade.
Tal é o Brasil. No Reino Unido acaba de demitir-se o diretor-geral da BBC por acusar falsamente um deputado por pedofilia. Aqui, só para citar um caso de acusação falsa, a revista Veja recebeu de Daniel Dantas um dossiê que aponta personalidades variadas, a começar pelo presidente Lula, como titulares de contas secretas em paraísos fiscais, o próprio banqueiro do Opportunity desmentiu, e a história mergulhou no oblívio. Aliás, petistas eméritos podem advogar para Dantas, o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos e o ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh. Ah, sim, DD já contou com o apoio do atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo

AJUFE E O MENSALÃo


A Associação dos Juízes Federais do Brasil - Ajufe, entidade de classe de âmbito nacional da magistratura federal, considerando o teor de nota pública emitida pelo Partido dos Trabalhadores - PT a propósito do julgamento da Ação Penal (AP) 470 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), vem manifestar-se nos seguintes termos:

1. O julgamento da AP 470 pauta-se pelo respeito aos princípios constitucionais garantidores de um processo penal justo, especialmente o contraditório e a ampla defesa.
Os princípios constitucionais citados pela AJUFE foram violados na ação penal 470 uma vez que o contraditório, quero dizer a defesa dos réus foi solenemente ignorada. Durante a oitiva da defesa inclusive, alguns juízes do Supremo cochilavam, numa atitude de deboche escancarada por fotos depois veiculadas pela mídia. O relator do processo adotou "ipsis literis" a tese da acusação, fatiando o julgamento para que o todo processual não demonstrasse a fragilidade das teses da PGR. O STF acatando a tese da PGR não desmembrou o processo, remetendo-o às instâncias inferiores para os acusados que não tinham foro privilegiado. O mesmo procedimento processual não adotou em relação à ação conhecida como "Mensalão" Tucano. Provas testemunhais colhidas na fase probatória foram solenemente ignoradas. Indícios se tornaram provas, o "deveria saber" se tornou regra e o malfadado Domínio do Fato, jusrisprudência estranha ao Direito pátrio foi usada sem nenhuma prova cabal. Um vexame absoluto!

2. Trata-se de julgamento técnico, tendo todos os votos sido devidamente fundamentados em seus aspectos fáticos e jurídicos, como determina a Constituição Federal.
Ministros do STF compararam a ação política de um partido ao PCC, alegaram em seus votos grave ameaça à democracia, ignoraram aspectos da contabilidade como ciência, viram dinheiro público em empresa privada e condenaram sem demonstrar com provas cabais quais valores do erário foram subtraídos. O que há de técnico e fático nisso? Saibam os senhores que o "juridiquês" já não mais nos impressiona, fruto de uma sociedade que avança educacionalmente, que lê muito mais do que antes e que não se deixa levar por argumentos pífios revestidos de sapiência jurídica. As provas não nos foram apresentadas ao menos em boa parte deste julgamento que entrará para a história do país, como frágil, influenciado de cabo a rabo pelo aparato midiático olipolizado e pontuado por declarações e aparições de membros do STF junto àqueles que queriam o julgamento coincidente com o calendário eleitoral e mais, com certa parcela da mídia alinhada à Casa Grande. O que dizer do Ministro Gilmar Mendes, que em pleno julgamento prestigia o lançamento de uma publicação marrom de um jornalista ( vulgo caneta) da Veja (revista comprovadamente envolvida por escutas telefônicas legais no caso Cachoeira), destinada a assacar contra o Partido dos Trabalhadores e seus membros adjetivos como ladrões, petralhas, bandidos e que tais? Agiu o Ministro Gilmar Mendes de acordo com o que se espera de um magistrado em termos de isenção e postura adequada ao cargo que ocupa? Ou a AJUFE acha que não sabemos deste fato? Pode o Ministro Marco Aurélio se manifestar publicamente dizendo que a ditadura foi um mal necessário, em meio a um julgamento em que proferiria seus votos contra José Dirceu e José Genoino, expoentes da luta contra esta mesma ditadura que o Ministro do STF disse ser um mal necessário? Aliás pode um Ministro do STF, guardião da Constituição Federal dizer de público que uma ditadura, que rasgou a constituição e violou direitos elementares, estuprou, torturou foi um mal necessário? Onde estamos AJUFE? Onde estamos senhores juízes federais?

3. É de se destacar, por necessário, que, dos ministros que participam do julgamento, oito foram nomeados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou pela presidenta Dilma Rousseff, o que comprova a independência desses ministros em relação a quem os nomeou.
Este argumento é o mais primário de todos e também vem sendo usado exaustivamente pela mídia que queria"sangue" no julgamento da ação penal 470. Copiaram dela e sem críticas? No entanto a despeito de sua primariedade, que repito desrespeita o conhecimento e a cidadania de quem acompanhou exaustivamente a ação 470, trata-se de um atestado de idoneidade institucional aos governos do PT, muito mais que probatório de conduta independente do STF, afinal temos no Brasil outros atores políticos, alguns até que se arvoram de poder, sem ter votos, como é o caso da mídia, que já disse explicitamente em mais de um dos seus convescotes que está fazendo o papel de virtual oposição, já que a oposição política anda catando cavacos por aí. Mas os cidadãos atentos, bem informados, leitores (não dos jornalões que criaram um mundo paralelo no Brasil) , exigem mais do que a independência em relação ao poder executivo, a independência em relação ao aparato midiático oligopolista, que solta gritinhos de horror, sempre que se discute a pluralidade dos meios de informação. E sabemos nós e vocês juízes federais, que uma mídia oligopolizada é o inverso do conceito de democracia. Ou os senhores ignoram que a pluralidade de vozes faz parte da democracia, afinal passaram pelos bancos das escolas onde se formaram em Direito e algo de Teoria do Estado, de Filosofia do Direito, de Sociologia do Direito, para além da dogmática jurídica deve ter lhes tocado a alma...

4. A independência da magistratura é garantia fundamental do Estado Democrático e os ministros do STF deram mostras disso, honrando o Poder Judiciário brasileiro.
A independência da magistratura não se provou no julgamento da ação 470 para boa parte dos brasileiros. Em verdade esta independência está sendo questionada pelos operadores do direito que atuaram na ação 470, os advogados de defesa dos réus e por amplos setores, que obviamente não têm espaço na mídia oligopolizada: cientistas políticos, cidadãos de bem, comentaristas políticos, estudantes de direito, políticos das mais diversas tendências, juízes, promotores, intelectuais, enfim, uma massa crítica bastante relevante, a menos que os senhores estejam fazendo a avaliação dessa independência à luz do que publicam os jornalões e revistas do nível de Veja...Se o fazem desta forma em sua avaliação, temo pelo Estado de Direito Democrático neste país, afinal o que nós cidadãos almejamos de nossos juízes federais é que julguem em sintonia com os anseios da população por progresso social, eliminação das iniquidades sociais e da injustiça que grava milhões neste país. E esses anseios não estão na pauta dos jornalões e nem de revistas como a Veja que se esmeram em representar interesses minoritários, reacionários, quando não (e à vista dos mps e do judiciário que não se pronunciam), preconceituosos, excludentes, racistas, sexistas, xenófobos e antinacionais.

5. A irresignação quanto às penas que vêm sendo aplicadas é perfeitamente compreensível dentro do contexto e, por essa razão, a crítica do PT deve ser recebida como expressão de inconformismo, no exercício da liberdade de expressão. Nada mais do que isso.
Qual contexto AJUFE? Qual contexto juízes federais? Se a crítica do PT à adoção de jurisprudência alemã interpretada de forma absurda de modo a isentar os juízes do STF de apresentar na fundamentação de suas sentenças provas factuais, documentais e testemunhos inquestionáveis é algo da democracia, porque então a nota dos senhores da AJUFE, já que trata se trata de direito fundamental garantido na CF? Direitos fundamentais exercidos democraticamente precisam ser objeto de contestação, como é o objeto desta nota da AJUFE? Se é nada mais do que isso, qual é a razão desta manifestação dos juízes federais representados pela AJUFE? Me expliquem, pois eu não entendi. 
6. A Ajufe acredita que o julgamento da AP 470 deve ser recebido dentro da normalidade do Estado Democrático
E será, entendendo-se o Estado Democrático de Direito com a amplitude que o caracteriza, ou seja, o direito constitucional de se insurgir contra sentenças injustas pelas vias judiciais e pela via política, ou seja, mediante a aceitação e incorporação da crítica, venha de onde vier, uma vez que juízes não são donos da verdade. A Ajufe que não venha com esta manifestação desejar que nos calemos diante do descalabro jurídico que foi o julgamento da ação 470. Estamos noutros tempos senhores juízes federais e parece que os senhores não entenderam isso ainda. O Brasil já não é mais de 30 milhões com comida, casa e trabalho. Almejamos um país civilizado e com a participação de todos os seus 200 milhões de habitantes. Não aceitamos mais corporativismos nefastos que defendam o indefensável. Sabemos que a política está presente milimetricamente em todas as nossas ações. Queremos juízes que sejam agentes de transformações sociais e não mero prolatadores de sentenças sem pé e nem cabeça. Queremos juízes que leiam o mundo e o país onde vivem sem os resquícios de sua posição de classe . Não aceitaremos um judiciário a reboque da mídia oligopolizada que defende interesses externos em oposição aos nacionais, que defendem milionários com Hcs cangurus e que mandam para a cadeia pretos, pobres e prostitutas. Nós não aceitamos mais este estado de coisas no âmbito do judiciário. Não aceitamos caixas pretas no judiciário, o poder mais infenso à transparência que existe no Brasil. Estamos fartos de suas rendinhas e capas pretas, de suas sentenças incompreensíveis ao mais pobres. Estamos fartos de Pinheirinhos e incêndios em favelas. Estamos fartos de mortes de jovens negros nas periferias de São Paulo e das grandes cidades do Brasil com sua complacência. Estamos fartos de sua inação inação a regulamentar os artigos da CF que tratam das empresas de comunicação do Brasil. Estamos fartos de processos que demoram 10 anos para serem solucionados e quando o são, seus interessados já morreram. Estamos fartos de manifestações como essa da AJUFE que nos informam solenemente e sem meias palavras de que lado estão os magistrados do Brasil!

Para aprofundar a discussão sobre crime organizado e PCC | Brasilianas.Org

Para aprofundar a discussão sobre crime organizado e PCC | Brasilianas.Org
Nassif acho interessante apontar uma questão que diz respeito não só ao PCC, mas também ao crime organizado mais sofisticado no Brasil, quero dizer, aquele controlado pelo grande capital e seu gerente, ou melhor, nosso "Robber Baron", Daniel Dantas. Sempre tive gosto por ler sobre crime organiado, Máfia e tutti quanti. Quando começaram a pulular biografias, filmes e documentários sobre a Cosa Nostra Siciliana e Americana, li e assisti o que pude. Também frequento o site IBGF do juiz Walter Maierovitch e tenho as seguintes questões a levantar:
1) Crime Organziado não sobrevive se não tiver tentáculos muito bem solidificados no Estado; A Cosa Nostra Italiana, cujo ápice a lideranaça de Tottó Riina demosntrou, tinha tentáculos no legislativo (Salvo Lima era o senador da Cosa Nostra), no executivo municipal (Vito Chanchimino era o prefeito da Cosa Nostra em Palermo) e no Judiciário. E aqui é que a porca torce o rabo. Poucos não se dão conta que bem antes de Riina assassinar Falcone e Borselino, ele conseguiu na Suprema Corte de Roma reverter todas as punições do "Maxxi Processo" de Palermo. Fez com que Falcone e Borselino fossem destituídos do "pool" anti-máfia; enfim desestruturou toda a tentativa de combate ao crime organizado.
2) É sabido que Julio Andreotti, primeiro ministro Democrata Cristão e também Betino Craxi primeiro ministro Socialista tinham vinculações com a Cosa Nostra. Ou seja, somente com forte influência nos orgãos decisivos do estado é que o crime organziado consegue supremacia. O greande capo da Cosa Nostra Americana John Gotti só foi preso e condenado pq seu braço direito Sammy "Bull" Gravano aceitou entrar para o sistema de proteção a testemunhas e abriu a boca para o então procurador Rudolf Giulianni e assim pegaram Gotti.
3) Trazendo para terras brasileiras essas argumentações temos o seguinte: Na esfera federal o Legislativo por conta própria jogou para debaixo do tapete a CPI do Banestado. E diga-se: todos, todos os partidos de comum acordo assim o fizeram. O STF concedeu dois habeas corpus a daniel Dantas e inviabilizou as operações que tentavam desestruturar o sistema de cooptação que Dantas criou no país. O mensalão, seja do PT ou PSDB, que na verdade não passa de operações de caixa dois procuraram viabilizar algo até certo ponto comum em política na sociedade capitalista: o Lobby.
4) Com relação ao PCC fica para mim muito forte o que disse à época o delegado Hélio Luz no documentário Notícias de uma Guerra Particular. Dizia ele sobre os traficantes do CV: Voc~es acham que o trasficante UÊ sabe manipular 5 milhões de dólares? Ele foi preso em um Hotel 5 estrelas pq é muito fácil descobrir um sujeito como ele em classe social diferente. Dizia mais: foi fácil prender todos osd líderes do tráfico pois quandos e sai do nicho do morro, eles não sabem nada de como funciona o crime. Trazendoi para o PCC: Muito pouco provável que Marcola tenha toda essa liderança para operar a grana que o PCC arrecada e determinar uma estrutura de exército particular para afrontar o Estado. O traficante colombiano Carlos Abadia qdo preso pela PF vaticinou: O Denarc é o centro do crime organziado em SP; subornei todos os policiais do departamento anti-drogas da Polícia Civil de SP.
Para pensar e refletir.

O Mensalão e a agenda setting: a "Matrix" na prática

O Mensalão e a agenda setting: a "Matrix" na prática

O Mensalão e a agenda setting: a "Matrix" na prática

Muito discutida e ainda pouco compreendida, a essência do filme “Matrix” (a hipótese da virtualidade do real) talvez já esteja presente no nosso dia-a-dia mais do que imaginamos. A pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira” feita por estudantes de jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi São Paulo como conclusão do curso “Estudos da Semiótica” apresenta a constatação de que a mídia corporativa não tem mais o poder de eleger presidentes ou forçar impeachments como no passado, mas ela é eficiente em estabelecer pautas e agendas como a do atual julgamento do chamado “Mensalão”.  Se a hipótese da agenda setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser uma construção a partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente midiático em que vivemos.

Virtuosismo tecnológico, capas pretas, bullet time e todo o visual ciberpunk marcaram as representações dos mundos virtuais em filmes como “Matrix”: humanos enredados nos véus da ilusão criada por computadores/demiurgos que nos escravizam. Mas descontando todo esse sensacionalismo hollywoodiano em torno da hipótese da virtualidade do real, podemos nos surpreender ao descobrir que a essência do tema de Matrix já está presente em nosso dia-a-dia, tão diluído nos temas das nossas conversas e na indústria de informação e entretenimento que nem nos damos conta: mais do que uma figura retórica, já há muito tempo experimentamos a Matrix na prática!
        
      Isso é o que demonstra a pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira”, trabalho de conclusão da disciplina Estudos da Semiótica da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi – UAM/São Paulo (veja video abaixo). O grupo formado pelos estudantes da graduação em Jornalismo Ana Carolina Cassiano, Cainã Ito, Camila Albino, Gustavo Carratte e Renata Corona analisou as capas e primeiras páginas dos principais veículos de imprensa de alcance nacional e chegou a uma constatação empírica: até o início do segundo semestre o foco dos veículos como jornais “O Globo”, “Folha de São Paulo”, “O Estado de São Paulo” e de revistas como “Veja”, “Isto É” e “Época” “estava concentrado nas repercussões das denúncias envolvendo o contraventor Carlinhos Cachoeira. O julgamento do chamado Mensalão ainda era pouco comentado”.


Quase nada de Cachoeira e
exaustiva cobertura do mensalão
       Com a proximidade das eleições municipais, esse foco midiático foi invertido: “quase nada de Cachoeira e exaustiva cobertura sobre o escândalo envolvendo o Partido dos Trabalhadores (...) Cachoeira permanecia envolvido em acusações, mas já não tinha seu rosto exposto por tanto tempo na TV, jornais, revistas e sites, tampouco era comentado nas rádios”.

          “Tomando como exemplo a revista Veja seis de suas capas no segundo semestre de 2012, quando já estavam próximas as eleições municipais, foram sobre o caso envolvendo o PT. Além destas, mais três tiveram destaque na capa, com chamadas para ler mais denúncias páginas adentro”.

          Para além dos evidentes exemplos de manipulação no enquadramento e seleção dos acontecimentos – desde a tendenciosa pergunta da pesquisa Datafolha no início de agosto (“os acusados do Mensalão deveriam ser enviados para a cadeia?”) e todo o exagero da cobertura que invertia os princípios básicos da Justiça (“que obriga os promotores a comprovarem a culpa do réu e não o contrário”) – a pesquisa associou a inversão da cobertura no segundo semestre ao fenômeno conhecido como “agenda setting” ou agendamento: a mídia não apenas manipula a realidade, mas, principalmente, altera a nossa percepção da realidade. Pode parecer uma diferença sutil a existente entre os termos “manipulação” e “percepção”, mas ela é decisiva por ser mais insidiosa e profunda.

A Hipótese do “agendamento”: já vivemos na Matrix


          Embora o conceito de “agenda setting” tenha sido formulada somente na década de 1970 pelos pesquisadores norte-americanos Maxwell McCombs e Donald Shaw em estudos que analisavam a influência das mídias nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 1968, seus princípios básicos começaram a ser traçados em 1922 pelas teses levantada pelo jornalista Walter Lippmann.

          Para Lippmann a opinião pública não reagia diretamente aos fatos do mundo real, mas vivia em uma espécie de “pseudoambiente” formado principalmente por “imagens em nossas cabeças” (LIPPMANN, W. Public Opinion). A mídia teria um papel central na estruturação desse pseudoambiente e fornecimento das imagens.

Em 1963 Bernard Cohen deu uma premissa moderna a essa ideia esboçada por Lippmann: “Na maior parte do tempo a imprensa pode não ter êxito em dizer aos leitores o que pensar, mas é espantosamente exitosa em dizer aos leitores sobre o que pensar” (COHEN, B. Press and Foreign Policy). Em outras palavras, a mídia seria péssima em impor conteúdos ou persuadir a opinião pública a tomar um posicionamento “A” ou “B”, mas ela seria ótima em criar uma hierarquia de temas supostamente com pertinência social para ser discutida.

Dessa maneira, Cohen destacou a onipresença da mídia como eficiente modificadora e formadora de opinião a respeito da realidade. Em consequência da pauta de temas criados pelas mídias o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia certos elementos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que as mídias incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público pode atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelas mídias aos acontecimentos, problemas e às pessoas. A pauta de fixação feita pelos meios de comunicação perdura no público. Os assuntos nela evidenciados serão comentados pelas pessoas que acabarão julgando os fatos de acordo com essa pauta e percebendo uma realidade social diferenciada.

O filme “Obrigado por Fumar” (Thank You For Smoking, 2005) apresenta didaticamente essa estratégia que está além da manipulação simples pela imposição de determinado posicionamento ideológico: se as pessoas querem ou não fumar cigarro, essa seria uma questão que a mídia teria muito pouca influência. Mas ela seria eficiente em fixar a pauta do tabagismo como tema pertinente para a opinião pública. O filme ironicamente apresenta como a indústria tabagista estaria por trás tanto de pesquisas que demonstrem os malefícios como as que refutam os danos maiores do cigarro. O que importa é que o tema tabagismo ganhe espaço e visibilidade midiática.

Guerra de percepção e sociedade do espetáculo


Pela hipótese da agenda setting não se trataria mais discutir se a mídia influencia ou não determinados conteúdos ideológicos, mas a forma como ela molda a percepção da própria realidade. A pesquisa do grupo de estudantes de jornalismo da UAM destaca: “a mídia já não tem força para decidir quem vai ser o próximo presidente, nem para eleger e forçar o impeachment como no caso de Collor. Mas isso não significa que a mídia corporativa não siga buscando seu intento, através da agenda setting, como agora ao conseguir colocar em pauta o mensalão do PT”.

O mais perturbador nessa hipótese é a de que se a questão da mídia não é de conteúdo (informação), mas de forma (pauta, agenda etc.) pouco importaria se durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal ocorresse uma reviravolta, as chicanes jurídicas fossem derrotadas e o mensalão fosse desconstruído diante das câmeras: o mal já teria sido feito após a percepção da opinião pública ter aceito a pertinência do tema “mensalão do PT” como hierarquicamente superior a outros temas.

Filme "Obrigado Por Fumar": um
exemplo didático de "agenda
setting"
A pesquisa da UAM define a guerra pelos agendamentos das pautas nas mídias como a própria natureza da sociedade do espetáculo: embora seus resultados sejam ideológicos, os meios de comunicação seriam pouco afeitos a ideologias, conteúdos ou informações (conscientização, formação, inculcação etc.). Essa eficiência de influência ideológica talvez tenha existido nas antigas sociedades de massa dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Hoje, com sociedades mais segmentadas e complexas onde a influência pessoal de líderes de opinião (não confundir com “formadores de opinião” das mídias) como filtros das mídias ganha mais força, a batalha passa a ser por agendas impactantes que alterem a percepção do que seja a realidade para as pessoas.

É claro que após o sucesso do agendamento de um determinado tema, os tradicionais mecanismos de manipulação da informação entram em cena, como ficou evidente na cobertura do caso do Mensalão e nos 18 minutos de espaço dado pelo Jornal Nacional da TV Globo para fazer um “resumo” do julgamento do STF. Isso seria um aspecto técnico-ideológico da edição da informação (que muitas vezes o público nem percebe criticamente) e que é mais compreendido por aqueles predispostos à opinião inquisitorial sobre o PT.

O mais importante é que, em uma sociedade do espetáculo, a conquista de uma pauta ou agendamento já é, em si, uma vitória ao fazer o público discuti-la seja a favor ou contra.

Um argumento contra a eficiência ou existência dessa hipótese seria que apesar de todo o agendamento do caso Mensalão desde 2005 na mídia Lula foi reeleito e fez seu sucessor, Dilma Roussef. Mas, poderíamos dizer: “é a economia, estúpido!”. Duas pautas contraditórias parecem disputar percepção da opinião pública: a moralista da corrupção versus a do crescimento econômico paradoxalmente partilhada até pela TV Globo, por exemplo, com o tema da “nova classe média” em novelas como “Avenida Brasil”.  

Se a hipótese da agenda setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser um constructu a partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente midiático em que vivemos. Essa talvez seja a essência do filme “Matrix”. Um filme muito discutido, mas ainda pouco compreendido.