Crime continuado e “abracadraba jurídico”
Sob o título “Mensalão e Crime Continuado: A Hora e a Vez da Impunidade?”, o artigo a seguir é de autoria de André de Vasconcelos Dias, Procurador da República em Minas Gerais. (*)
No julgamento da Ação Penal nº 470, vulgarmente chamado de “julgamento do mensalão”, o Supremo Tribunal Federal, após brilhante atuação no juízo de reconhecimento de culpa ou inocência dos réus, em alvissareiro divisor de águas na história do Poder Judiciário brasileiro, vem lamentavelmente claudicando na fase da dosimetria das penas, eivada de tantos equívocos e involuções jurisprudenciais. O mais grave e perigoso retrocesso, no entanto, ainda está em fase de gestação, e diz respeito ao chamado crime continuado. É que, nas últimas sessões de julgamento, o Ministro Marco Aurélio Mello, sob os aplausos dos Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, passou a sustentar que os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira seriam todos da mesma espécie, e que entre uns e outros seria possível a extensão dos benefícios da ficção jurídica do crime continuado, que permite a aplicação da pena de somente um desses crimes, com o mero acréscimo que varia de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços). Como se esclarecerá na seqüência, tal proposta, a um tempo: (a) contraria a jurisprudência consolidada pelo STF há mais de 30 anos; (b) não encontra suficiente respaldo no texto da lei; (c) ainda que não seja (e não é) esta a intenção dos ilustres ministros, representará fator de impunidade dos crimes do colarinho branco.
Ao contrário do que fazem crer alguns jurisconsultos, a compreensão do problema não depende da iniciação do leitor na obscurantista seita jurídica, pois a questão é de meridiana clareza, basta que se saiba ler, ou pouco mais que isso. Acerca do instituto legal do crime continuado, diz o art. 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”. Desde 1980, a jurisprudência do STF firmou-se no sentido de que crimes da mesma espécie são aqueles previstos no mesmo tipo legal, isto é, mesmo crime (por exemplo, homicídio, seqüestro, roubo, estupro, etc). De alguns anos para cá, abalizadas vozes do STF, como a do Min. Gilmar Mendes e a do próprio Min. Marco Aurélio, têm sustentado, com boa dose de razão, que o instituto da continuidade delitiva possa ser aplicado, em tese, aos conjuntos de crimes que tenham o mesmo bem jurídico tutelado, isto é, o mesmo interesse protegido pela lei penal (p. ex., vida, honra, patrimônio, liberdade sexual, saúde pública, etc). Seja como for, os requisitos legais de semelhantes condições de tempo, lugar e modo de execução continuam a ser de observância obrigatória pelo órgão julgador. Assim, por exemplo, seria em tese possível conceber a continuidade delitiva quando, havendo identidade de contexto temporal e de local, o agente, pela mesma via escrita ou falada, praticasse os crimes de calúnia, injúria e difamação; ou consumasse de forma semelhante um homicídio e um infanticídio; ou ainda, pela mesma sistemática, perpetrasse distintos crimes de falsificação de documentos.
No entanto, parece claro que a solução preconizada pelo Min. Marco Aurélio no “julgamento do mensalão” esbarra na diversidade de bens jurídicos tutelados. É que, nos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato, a lei penal defende o interesse da Administração Pública. Já no crime de lavagem de dinheiro, tutelam-se uma multiplicidade de interesses que se reúnem em torno da preservação da Administração da Justiça. E os crimes de gestão fraudulenta de instituições financeiras e de evasão de divisas visam a salvaguardar o Sistema Financeiro Nacional. Não havendo, pois, entre uns e outros delitos, coincidência de bens jurídicos protegidos pela lei penal, não há como cogitar a aplicação do excepcional benefício legal do crime continuado.
Além disso, e acima de tudo, a solução ora criticada encontra óbice intransponível na absoluta diversidade de modo de execução de uns e outros delitos. Até hoje, a Suprema Corte vem (ou vinha) sendo bastante criteriosa na aferição do requisito legal do semelhante modo de execução do crime para efeito do benefício legal. Assim, por exemplo, recentemente, o STF negou reconhecimento de crime continuado ao autor de três crimes de furto, porque um deles fora cometido com rompimento de obstáculo para subtrair um arreio de montaria; no segundo, o agente aproveitou-se do descuido da vítima para subtrair-lhe um televisor; no terceiro, o agente valeu-se da calada da noite para surrupiar uma ovelha. E olha que, em todos esses casos, a ação típica criminosa é a mesma prevista no art. 155 do Código Penal, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Mas, e agora? Seria possível considerar como semelhante o modo de execução dos distintos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato? Ou ainda entre os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira e evasão de divisas? À toda evidência, a resposta é negativa.
É que, por exemplo, para meter a mão no dinheiro público, isto é, para praticar o delito de peculato, o agente público, sozinho ou em conjunto com agentes privados, deve realizar a conduta descrita no art. 312 do Código Penal, qual seja, “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. Por outro lado, ao oferecer ou pagar propina a um funcionário público, o agente pratica o crime de corrupção ativa, tipificado no art. 333 do Código Penal, que prevê conduta inteiramente diversa, qual seja, “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Já o funcionário público que pede ou recebe propina pratica o crime de corrupção passiva, que, nos termos do art. 317 do Código Penal, caracteriza-se pela ação de “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Como se pode ver, o modo de execução desses delitos é radicalmente distinto, o que, nos termos da lei, impede a aplicação do benefício legal do crime continuado. Vejam-se os exemplos concretos do “julgamento do mensalão”: a corrupção de alto funcionário do Banco do Brasil deu-se pela promessa, aceitação, pagamento e recebimento de propina no oculto e na surdina. Já o desvio de muitas dezenas de milhões de reais deu-se mediante o pagamento ostensivo de simulados serviços de publicidade e de explícita apropriação de recursos públicos do fundo visanet. São ações criminosas que se executaram de formas completamente díspares. Não há, portanto, “brechas da lei”.
A adoção dessa nova tese não se restringe, como poderia supor o incauto, ao “julgamento do mensalão”. Não, em absoluto. O buraco é mais embaixo, a questão é muito mais grave do que se poderia imaginar. Trata-se da abertura de precedente, a repercutir negativamente em milhares de processos, inclusive aqueles com condenação transitada em julgado, no juízo da execução penal. De Lalau a Cachoeira, praticamente todos os criminosos do colarinho branco, envolvidos nos terríveis escândalos de corrupção que diuturnamente assombram o Brasil, serão graciosamente premiados, como nunca antes na história desse país. Eis o efeito prático desse abracadabra jurídico: doravante, pelas dezenas de crimes distintos que cometessem (peculatos, corrupções ativas e passivas, lavagens de capitais, gestões fraudulentas de bancos, evasões de divisas, etc), os réus receberiam a pena por um único desses crimes, com o singelo acréscimo de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) – ou, na peculiar visão do Min. Lewandowski, aumento máximo de 1/3 (um terço). O resultado disso, embora certamente não querido pelos ministros, atende pelo nome de IMPUNIDADE. Imagino que, a esta altura, milhares de delinqüentes do poder político e econômico da terra brasilis já devem estar na expectativa de se esbaldarem em farta provisão de champagne e de estourarem um arsenal de fogos de artifício. O brinde da impunidade e o festival pirotécnico da explosão da delinqüência do poder só dependem do veredicto final do STF.
Ao cabo, exsurgem alguns questionamentos. Pode o STF, após mais de três décadas negando as pretensões dos miseráveis autores de furtos e roubos que batiam à sua porta, mudar sua jurisprudência justo agora que estão sob julgamento algumas das pessoas mais ricas e poderosas da República? Pode o STF dar saltos triplos carpados hermenêuticos, isto é, fazer mágica jurídica, para contornar a exigência legal de identidade de bens jurídicos protegidos e de similitude do modo de execução dos crimes para se que se possa conceder a benesse do crime continuado? Pode o STF desconsiderar os efeitos catastróficos dessa tese em matéria de prevenção e repressão da criminalidade dos poderosos, a predizer um sombrio quadro de impunidade geral? A resposta, para usar o jargão de Suas Excelências, é desenganadamente positiva: à falta de um órgão superior com poder de corrigir os erros do STF, ainda que os mais primários, seus ministros são factualmente onipotentes, eles podem, podem tudo. E o Sistema de Justiça Criminal Brasileiro também pode se tornar ainda mais elitista, chafurdando-se cada vez mais em seu universo de faz-de-conta da efetiva punição dos gravíssimos crimes praticados pelos donos do poder político e econômico, e, não por acaso, esse sistema é qualificado, ao criterioso olhar externo, como risível.
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(*) André de Vasconcelos Dias é Procurador da República. Ex-Promotor de Justiça/MG (2003-2005). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
No julgamento da Ação Penal nº 470, vulgarmente chamado de “julgamento do mensalão”, o Supremo Tribunal Federal, após brilhante atuação no juízo de reconhecimento de culpa ou inocência dos réus, em alvissareiro divisor de águas na história do Poder Judiciário brasileiro, vem lamentavelmente claudicando na fase da dosimetria das penas, eivada de tantos equívocos e involuções jurisprudenciais. O mais grave e perigoso retrocesso, no entanto, ainda está em fase de gestação, e diz respeito ao chamado crime continuado. É que, nas últimas sessões de julgamento, o Ministro Marco Aurélio Mello, sob os aplausos dos Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, passou a sustentar que os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira seriam todos da mesma espécie, e que entre uns e outros seria possível a extensão dos benefícios da ficção jurídica do crime continuado, que permite a aplicação da pena de somente um desses crimes, com o mero acréscimo que varia de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços). Como se esclarecerá na seqüência, tal proposta, a um tempo: (a) contraria a jurisprudência consolidada pelo STF há mais de 30 anos; (b) não encontra suficiente respaldo no texto da lei; (c) ainda que não seja (e não é) esta a intenção dos ilustres ministros, representará fator de impunidade dos crimes do colarinho branco.
Ao contrário do que fazem crer alguns jurisconsultos, a compreensão do problema não depende da iniciação do leitor na obscurantista seita jurídica, pois a questão é de meridiana clareza, basta que se saiba ler, ou pouco mais que isso. Acerca do instituto legal do crime continuado, diz o art. 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços”. Desde 1980, a jurisprudência do STF firmou-se no sentido de que crimes da mesma espécie são aqueles previstos no mesmo tipo legal, isto é, mesmo crime (por exemplo, homicídio, seqüestro, roubo, estupro, etc). De alguns anos para cá, abalizadas vozes do STF, como a do Min. Gilmar Mendes e a do próprio Min. Marco Aurélio, têm sustentado, com boa dose de razão, que o instituto da continuidade delitiva possa ser aplicado, em tese, aos conjuntos de crimes que tenham o mesmo bem jurídico tutelado, isto é, o mesmo interesse protegido pela lei penal (p. ex., vida, honra, patrimônio, liberdade sexual, saúde pública, etc). Seja como for, os requisitos legais de semelhantes condições de tempo, lugar e modo de execução continuam a ser de observância obrigatória pelo órgão julgador. Assim, por exemplo, seria em tese possível conceber a continuidade delitiva quando, havendo identidade de contexto temporal e de local, o agente, pela mesma via escrita ou falada, praticasse os crimes de calúnia, injúria e difamação; ou consumasse de forma semelhante um homicídio e um infanticídio; ou ainda, pela mesma sistemática, perpetrasse distintos crimes de falsificação de documentos.
No entanto, parece claro que a solução preconizada pelo Min. Marco Aurélio no “julgamento do mensalão” esbarra na diversidade de bens jurídicos tutelados. É que, nos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato, a lei penal defende o interesse da Administração Pública. Já no crime de lavagem de dinheiro, tutelam-se uma multiplicidade de interesses que se reúnem em torno da preservação da Administração da Justiça. E os crimes de gestão fraudulenta de instituições financeiras e de evasão de divisas visam a salvaguardar o Sistema Financeiro Nacional. Não havendo, pois, entre uns e outros delitos, coincidência de bens jurídicos protegidos pela lei penal, não há como cogitar a aplicação do excepcional benefício legal do crime continuado.
Além disso, e acima de tudo, a solução ora criticada encontra óbice intransponível na absoluta diversidade de modo de execução de uns e outros delitos. Até hoje, a Suprema Corte vem (ou vinha) sendo bastante criteriosa na aferição do requisito legal do semelhante modo de execução do crime para efeito do benefício legal. Assim, por exemplo, recentemente, o STF negou reconhecimento de crime continuado ao autor de três crimes de furto, porque um deles fora cometido com rompimento de obstáculo para subtrair um arreio de montaria; no segundo, o agente aproveitou-se do descuido da vítima para subtrair-lhe um televisor; no terceiro, o agente valeu-se da calada da noite para surrupiar uma ovelha. E olha que, em todos esses casos, a ação típica criminosa é a mesma prevista no art. 155 do Código Penal, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Mas, e agora? Seria possível considerar como semelhante o modo de execução dos distintos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato? Ou ainda entre os crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira e evasão de divisas? À toda evidência, a resposta é negativa.
É que, por exemplo, para meter a mão no dinheiro público, isto é, para praticar o delito de peculato, o agente público, sozinho ou em conjunto com agentes privados, deve realizar a conduta descrita no art. 312 do Código Penal, qual seja, “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. Por outro lado, ao oferecer ou pagar propina a um funcionário público, o agente pratica o crime de corrupção ativa, tipificado no art. 333 do Código Penal, que prevê conduta inteiramente diversa, qual seja, “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Já o funcionário público que pede ou recebe propina pratica o crime de corrupção passiva, que, nos termos do art. 317 do Código Penal, caracteriza-se pela ação de “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. Como se pode ver, o modo de execução desses delitos é radicalmente distinto, o que, nos termos da lei, impede a aplicação do benefício legal do crime continuado. Vejam-se os exemplos concretos do “julgamento do mensalão”: a corrupção de alto funcionário do Banco do Brasil deu-se pela promessa, aceitação, pagamento e recebimento de propina no oculto e na surdina. Já o desvio de muitas dezenas de milhões de reais deu-se mediante o pagamento ostensivo de simulados serviços de publicidade e de explícita apropriação de recursos públicos do fundo visanet. São ações criminosas que se executaram de formas completamente díspares. Não há, portanto, “brechas da lei”.
A adoção dessa nova tese não se restringe, como poderia supor o incauto, ao “julgamento do mensalão”. Não, em absoluto. O buraco é mais embaixo, a questão é muito mais grave do que se poderia imaginar. Trata-se da abertura de precedente, a repercutir negativamente em milhares de processos, inclusive aqueles com condenação transitada em julgado, no juízo da execução penal. De Lalau a Cachoeira, praticamente todos os criminosos do colarinho branco, envolvidos nos terríveis escândalos de corrupção que diuturnamente assombram o Brasil, serão graciosamente premiados, como nunca antes na história desse país. Eis o efeito prático desse abracadabra jurídico: doravante, pelas dezenas de crimes distintos que cometessem (peculatos, corrupções ativas e passivas, lavagens de capitais, gestões fraudulentas de bancos, evasões de divisas, etc), os réus receberiam a pena por um único desses crimes, com o singelo acréscimo de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) – ou, na peculiar visão do Min. Lewandowski, aumento máximo de 1/3 (um terço). O resultado disso, embora certamente não querido pelos ministros, atende pelo nome de IMPUNIDADE. Imagino que, a esta altura, milhares de delinqüentes do poder político e econômico da terra brasilis já devem estar na expectativa de se esbaldarem em farta provisão de champagne e de estourarem um arsenal de fogos de artifício. O brinde da impunidade e o festival pirotécnico da explosão da delinqüência do poder só dependem do veredicto final do STF.
Ao cabo, exsurgem alguns questionamentos. Pode o STF, após mais de três décadas negando as pretensões dos miseráveis autores de furtos e roubos que batiam à sua porta, mudar sua jurisprudência justo agora que estão sob julgamento algumas das pessoas mais ricas e poderosas da República? Pode o STF dar saltos triplos carpados hermenêuticos, isto é, fazer mágica jurídica, para contornar a exigência legal de identidade de bens jurídicos protegidos e de similitude do modo de execução dos crimes para se que se possa conceder a benesse do crime continuado? Pode o STF desconsiderar os efeitos catastróficos dessa tese em matéria de prevenção e repressão da criminalidade dos poderosos, a predizer um sombrio quadro de impunidade geral? A resposta, para usar o jargão de Suas Excelências, é desenganadamente positiva: à falta de um órgão superior com poder de corrigir os erros do STF, ainda que os mais primários, seus ministros são factualmente onipotentes, eles podem, podem tudo. E o Sistema de Justiça Criminal Brasileiro também pode se tornar ainda mais elitista, chafurdando-se cada vez mais em seu universo de faz-de-conta da efetiva punição dos gravíssimos crimes praticados pelos donos do poder político e econômico, e, não por acaso, esse sistema é qualificado, ao criterioso olhar externo, como risível.
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(*) André de Vasconcelos Dias é Procurador da República. Ex-Promotor de Justiça/MG (2003-2005). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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