Enriquecer não está entre as prioridades da doutora cubana Lourdes
Richardson Mann, selecionada para atuar pelo programa Mais Médicos em Cristal,
no Rio Grande do Sul. Especialista em atenção primária à saúde, a
médica da terra de Fidel Castro cede 90% do seu salário mensal a Cuba e
ao governo brasileiro e, mesmo assim, tem a convicção de que pode viver
bem com cerca de R$ 1.000 no pequeno município da Região Sul, de pouco
mais de 7,6 mil habitantes, sua nova casa pelos próximos três anos.
Nascida em Caimanera, província de Guantánamo, Lourdes passa, aos 42
anos, a imagem de uma mulher segura, confiante e focada no objetivo de
oferecer, pelas próprias mãos, saúde gratuita para a população mais
carente, sem condições de pagar por uma consulta particular.
Em entrevista ao G1, Lourdes Mann fala sobre seu
primeiro mês no país e suas impressões em um território bem diferente de
sua origem socialista. “O Brasil vive um problema de falta de caridade
humana. Falta amor ao próximo”, interpreta. Em relação à resistência da
classe médica ao Mais Médicos, ela não demonstra tanto espanto. “Não
vejo nada estranho nisso. É um programa novo, pouca gente conhece. Nós,
cubanos, estamos preparados para isso. Não viemos para enriquecer, temos
um conceito diferente, um conceito revolucionário. A vida vem
primeiro”, diz.
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A médica, mãe de três filhos, também relata a experiência vivida durante cinco anos na Venezuela, onde havia, à época, um programa
semelhante ao que é realizado hoje no Brasil. O período na terra de Hugo
Chávez ainda lhe ajudou a garantir a participação no programa
brasileiro.
Antes mesmo de chegar ao país, já estava familiarizada com os costumes
locais. Em Havana, onde morou por cinco anos entre uma viagem e outra,
ouviu clássicos de Roberto Carlos e o embalo do samba de Alexandre
Pires. Agora, nas horas vagas, além de falar com os filhos, tenta
aprender a sambar. “A comida é muito boa. A música também. Ainda não
escutei a música tradicional dos gaúchos. Gosto de samba. Minhas colegas
do posto de saúde estão me ensinando a sambar. Isso quando não temos
pacientes”, conta.
Abaixo, confira a entrevista com a médica cubana.
Você nasceu em Havana? Sempre pensou em fazer medicina?
Não nasci na capital, sou de Caimanera, província de Guantánamo. Estou
em Havana há cinco anos. Ou melhor, estava. Agora vivo em Cristal
(risos). Quando eu era criança, queria ser professora como minha mãe.
Mas depois, com 18 anos, tive uma inclinação forte para a medicina,
porque é uma carreira muito ampla, com várias possibilidades, muito
humanitária. Estudei por seis anos até me formar como médica.
Por que existem tantos médicos em Cuba?
No meu país, existe uma preocupação muito grande com as pessoas, com o
povo cubano. Todos cuidam de todos. Acho que a medicina tem esse poder
de ajudar as pessoas. Gosto de ajudar as pessoas. Por lá, a maioria
pensa assim. Existem muitos médicos formados em Cuba com foco na atenção
básica. Não me imaginaria, com a minha cor de pele, negra, cursando
medicina em outro país. No Brasil, vocês têm cotas...
O que mais você sabe sobre a saúde e a educação no Brasil?
Conheço muito pouco sobre a educação daqui. Sei muitas coisas sobre o
lado da saúde. Alguns dias atrás, por exemplo, atendi uma criança com
suspeita de apendicite, algo grave, portanto. Me orientaram a ligar para
o hospital mais próximo para saber se eles tinham vaga para internar
aquela criança. Em Cuba, casos como esse não precisam de formalidades,
de pedidos, para internação de urgência. Encaminhamos o hospital e o
atendimento é feito na hora porque ela não pode esperar. Corre riscos...
Pedir permissão para internar em casos de urgência? Isso não existe por
lá. Fiquei sabendo que pessoas entram na Justiça para conseguir um
leito aqui. É um absurdo. O Brasil vive um problema de falta de caridade
humana. É isso que falta para as pessoas. Falta amor ao próximo.
Como o Mais Médicos chegou até você? Qual é sua experiência profissional?
Tenho mais de 10 anos de experiência em atenção básica à saúde. Em
Havana, trabalhava em um consultório, em uma policlínica, como chamamos
em Cuba. Os hospitais são atenção secundária, assim como aqui. As
policlínicas são primárias, preventivas. Eles estavam procurando pessoas
com esse perfil para vir ao Brasil. O programa chegou em Cuba há mais
ou menos um ano. Mas foi uma coisa voluntária, uma opção que fiz, porque
já tinha realizado uma missão na Venezuela e ter experiência anterior
em outro país era um dos requisitos para se candidatar.
Missão na Venezuela?
Passei cinco anos da minha vida lá, entre 2004 e 2009. Estive em
Bolívar e Caracas. Não faz tanto tempo assim. Chavez tinha muitas ideias
liberais semelhantes ao que se vê hoje em dia em Cuba. A igualdade, a
vontade de eliminar a pobreza, de dar saúde a todos e educação ao povo.
Vi programas de habitação para comunidades carentes, centros de
diganósticos integrados, supermercados, tudo voltado à população pobre.
Foi uma experiência marcante. Quando terminei minha missão na Venezuela,
me mudei para Havana. Tive a possibilidade de comprar um apartamento e
fui para a capital. Tenho uma irmã que também vive lá, e ela se sentia
muito sozinha.
Lourdes mostra a cozinha do seu novo apartamento
(Foto: Caetanno Freitas/G1)
E como foi a preparação montada para os cubanos que chegaram ao Brasil em dezembro?(Foto: Caetanno Freitas/G1)
Éramos mais de 200 médicos. Fizemos uma escala em Manaus e depois fomos
a Vitória. Participamos de um curso para aprender português durante 21
dias. Aprendemos também sobre o sistema de saúde (SUS), como as coisas
funcionam por aqui. Foi uma passagem tranquila, muito boa. Lá definiram o
destino de cada um de nós. Essa parte não foi opcional porque ninguém
conhecia o país, então não importava muito para onde iríamos.
Você tem alimentação e habitação assegurada?
Quando cheguei aqui no Cristal já tinha um apartamento me esperando,
com cozinha, banheiro, um quarto e uma sala. Está bom. Fizemos um acordo
com o governo, onde doamos mais da metade do dinheiro que recebemos
para o povo cubano. Ficamos com mil reais, que é o suficiente. Cuba fica
com os R$ 10 mil e distribui ao governo brasileiro e me manda a minha
parte. Também recebemos ajuda com alimentação, dá uns R$ 500 por mês.
Para mim é o suficiente, não quero enriquecer. Quero ajudar as pessoas
daqui.
Como você está se sentindo? As pessoas lhe tratam bem?
Estou feliz. Todos me receberam muito bem. Dizem que sou bem-vinda.
Todos por aqui são muito hospitaleiros, receptivos. No posto de saúde,
todos colaboram comigo, precisam ter paciência por causa do português.
Ainda estou aprendendo. Tenho muito apoio da prefeitura também e de toda
comunidade.
Médica cubana atende nesta policlinica no Cristal
(Foto: Caetanno Freitas/G1)
Do que você está gostando mais?(Foto: Caetanno Freitas/G1)
A comida é muito boa. Muito parecida com a de Cuba. A música também.
Ainda não escutei a música tradicional dos gaúchos. Gosto de Roberto
Carlos, Alexandre Pires… Gosto de samba. Minhas colegas no posto de
saúde estão me ensinando a sambar. Isso quando não temos pacientes…
A maior dificuldade é o idioma?
Ah, com certeza. Eu tenho me esforçado, aprendemos muita coisa lá em
Vitória. Disseram que tínhamos de aprender rápido, mas é difícil. Sei de
alguns médicos cubanos que vieram para cá, ao Brasil, e pediram para
voltar porque não conseguiram aprender. Vocês falam muito rápido
(risos). Mas a comunicação é fundamental. Vou aprender, é questão de
tempo.
Você tem filhos? Como faz para fazer contato com sua família?
Sim, tenho três filhos, todos homens. Falo com eles pela internet.
Ernesto, 10 anos, Roberto, 16, e Rafael, 18. Meu pai, minha mãe e duas
irmãs também estão lá. Eu não pensava em sair de Cuba mais uma vez. Não
queria mais. A família entendeu quando decidi, os filhos maiores também.
O pequeno não. Ele não entende, sempre vai necessitar de sua mamãe por
perto.
Existe alguma dificuldade com a classe médica? Quando vocês,
cubanos, chegaram ao Brasil, houve uma reação por parte dos médicos
brasileiros contrários ao programa.
Não vejo nada estranho nisso. É um programa novo, pouca gente conhece.
Nós, cubanos, estamos preparados para isso. Não viemos para enriquecer,
temos um conceito diferente, um conceito revolucionário. A vida vem
primeiro. O restante é secundário. A riqueza, a casa, o conforto, o
glamour, tudo isso é secundário. Mas estamos preparados para essa
resistência. Desde que não aconteça nada que me ofenda, que me agrida…
Na Venezuela, houve resistência também. A situação era igual. Os médicos
venezuelanos não queriam colaborar com os cubanos...
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